Historiografia contemporânea em perspectiva crítica | Jurandir Malerba

Apresentar os caminhos do pensamento histórico e de sua escrita no século XX. Esta é a proposta da obra aqui resenhada. Obviamente, o século XIX não pode ser deixado de lado, pois dele procede a matriz historicista, metódica, cientificista que transformou a história numa área acadêmica. Como demonstram diversos capítulos do próprio livro, essa matriz foi universalizada conjuntamente com a expansão da cultura ocidental européia.

Uma das grandes contribuições dos organizadores foi, todavia, demonstrar campos historiográficos muito além do eixo europeu. Ele está presente, claro, nos artigos sobre a recente movimentação historiográfica na França pós-crise dos Annales, no excelente texto acerca da historiografia alemã, nas análises da micro-história italiana, do pensamento histórico espanhol e lusitano. Mas há também estudos sobre as novas tendências da historiografia russa e, especialmente, uma destacada ênfase na produção latino-americana. Em outras palavras, em que pese a influência européia sobre as outras regiões, ela, a Europa, se torna provicializada no decorrer da leitura.

Verdade que se nota na obra uma ausência completa da produção africana, e o extremo oriente só aparece de passagem. Dada a importância na história e na historiografia da América Latina, também sentimos falta de uma reflexão acerca do pensamento histórico norte-americano. Curiosamente, há no livro certa ênfase na influência do marxismo, com artigos sobre a produção histórica em Cuba, sobre a história social no Brasil, um tratando dos “fundadores” da historiografia marxista latino-americana e o artigo já referido sobre a Rússia. Será por que, para um dos organizadores, Marx foi o primeiro a criar um “projeto ou tentativa sistemática de fundar uma verdadeira ciência da história” (p. 14)? De qualquer modo, não se pode negar as contribuições das idéias marxianas, seja em nível continental, seja global.

Precisemos, então, o que os organizadores entendem por abordagem historiográfica. A definição geral aparece no prefácio, sendo considerada o “estudo compreensivo – e comparativo – das transformações que experimentaram conceitos, teorias, métodos, perspectivas e os produtos resultantes do ofício dos historiadores”. Seguem-se algumas características metodológicas ressaltadas, como a inserção de “tais obras e autores nos sucessivos contextos historiográficos, intelectuais, sociais, políticos”; a reconstrução crítica dos “principais pontos de convergência, filiações, influências, empréstimos e redes de circulação”; a busca de “resgatar as filiações intelectuais dos diversos autores dentro de uma determinada tendência ou corrente (…) bem como os processos de intercâmbio, aclimatação e transferência cultural de perspectivas”; o estabelecimento, com precisão, dos “vínculos sutis de mediação que conectam aqueles vários elementos” (p. 9).

Não seria o caso de analisar aqui, nesta rápida resenha, a definição dada. Destacaremos apenas dois aspectos marcantes que apresenta. Primeiro, seu aporte com a história social do pensamento histórico. Incrivelmente, as novas perspectivas de estudo historiográfico, enfatizando as tramas da narrativa ou a relação entre escritura, experiência e temporalidade, foram deixadas de lado. A questão central estaria em contextualizar obra e autor. O segundo aspecto é certa ênfase institucional e acadêmica. A recente agenda investigativa das múltiplas relações entre escrita do passado e memória histórica está bem pouco representada nos artigos.

Uma exceção surge no último capítulo, tratando da “história cognitiva” e da “história normativa” na historiografia brasileira (p. 351 seq.). O autor parte desses conceitos para referir-se à oposição entre saber e ética, respectivamente, nos estudos históricos. A historiografia de cunho positivista pretendia estar abstraída de qualquer compromisso social, porém, como percebe bem o articulista, as implicâncias ideológicas da suposta neutralidade são inúmeras. As duas tipologias, se defende, deveriam ser inter-relacionadas e não postas em oposição.

Idéia semelhante poderia ser afirmada em relação às chamadas “tendências pós-modernas” de análise historiográfica e a mais tradicional, ligada à história social das idéias, apresentada neste livro. Em nada elas seriam opostas em si mesmas, podendo, com relativa tranqüilidade, enriquecerem-se mutuamente.

Talvez tenhamos exagerando um pouco. Um programa tão amplo de abordagem, como o colocado na definição dada, dificilmente é cumprido. Além disso, como toda obra coletiva, os autores o incorporam em seus textos de maneira apenas parcial. O ganho deste livro foi traçar um amplo panorama dos movimentos historiográficos recentes em diversos países, incutindo-nos essa relatividade saudável, uma conseqüência positiva do fim das narrativas mestras e da crise dos grandes paradigmas.

A pluralidade contextual, portanto, segue pari passu à padronização de autores e métodos de referência quase obrigatória. Ambas estão demonstradas fartamente nos diferentes capítulos. O novo, talvez, seja uma redistribuição de poderes que nos encaminha mais para o diálogo, para a troca de experiências, para o descentramento cognitivo que rejeita os modelos e conceitos prontos na reflexão acerca da presença do passado.


Resenhista

Eduardo Gusmão de Quadros – Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Goiás.


Referências desta Resenha

MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre. (Orgs.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru, SP: EDUSC, 2007. Resenha de: QUADROS, Eduardo Gusmão de. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.10, n.17, p.205-207, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

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