Historiografia em tempos de urgência: do horizonte de expectativas ao fechamento das esperanças | História e Cultura | 2021

Durante uma entrevista concedida à Véronique Mortaigne em 2005, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss – então com 97 anos – quando perguntado sobre o futuro, respondeu:

Não me pergunte nada desse gênero. Estamos num mundo ao qual já não pertenço. O que conheci, o que amei, tinha 2,5 bilhões de habitantes. O mundo atual conta com 6 bilhões de seres humanos. Ele não é mais o meu. E o do amanhã, povoado por 9 bilhões de homens e mulheres – mesmo se for o pico de população, como nos asseguram para nos consolar -, proíbe-me qualquer previsão… (LEVI-STRAUSS, 2011, p. 57).

Ao longo de sua vida, o mundo se transformou de maneira tão radical que o antropólogo se viu sem referenciais confiáveis para propor qualquer previsão futura. A ascensão definitiva da lógica neoliberal no século XXI, o monopólio, a virtualização e a constatação do colapso ambiental em curso deram forma a um período radicalmente diferente de tudo o que os seres humanos viveram até aqui. Inclusive, no que tange à própria percepção e relação com o tempo. A velocidade e a natureza dessa transformação apagou e planificou os mais diversos anseios revolucionários até então familiares. Nesse sentido, pode-se falar na emergência de um novo tipo de regime de historicidade – para usar o termo cunhado por Hartog (2013) – cuja marca indelével é a crise na própria ordem do tempo. O passado não serve mais como experiência construtiva e “o futuro torna-se inimaginável” (BERARDI, 2019), como observou Levi-Strauss.

Em vista disso, o presente dossiê reuniu textos diversos que dialogam entre si e articulam, a partir de enfoques distintos, debates sobre como as transformações geográficas, políticas, tecnológicas, emocionais, econômicas, científicas, comportamentais, etc., que interferem no tipo de historiografia produzida em uma época marcada pela urgência.

Rodrigo Amboni analisa como a tecnologia e, sobretudo, como o monopólio informacional ideologicamente orientado para o lucro, enfraquece nosso poder cognitivo e nossa capacidade de associação. O artigo atualiza as reflexões de Walter Benjamin para delinear os traços do empobrecimento imaginativo e narrativo contemporâneo. Os conceitos de “ciberespaço” e “cibertempo” formulados por Franco Berardi são apresentados para discutir como o acelerado fluxo de informações fragmentadas, com o qual somos bombardeados cotidianamente, paralisa e anestesia os vínculos com a experiência, visto que não há tempo para processá-la e organizá-la.

O segundo artigo apresenta uma reflexão teórica que põe em xeque a própria historicidade da escrita historiográfica. João Paulo Rossati defende a abertura na concepção de tempo e de sujeito como condição necessária para o trabalho do historiador e apresenta a ideia “novo tempo do mundo”, proposta pelo filósofo Paulo Arantes, para lidar com a sensação fratura temporal – tal qual a metáfora do filme Feitiço do Tempo (1993) – marcada pela expectativa decrescente de futuro. Outro conceito central do texto é a noção de “ontologia em situação” de Ian Hacking, empregado como ferramenta de compreensão para as relações entre a contingência e a historiografia.

O artigo seguinte escrito por Eduardo A. Escudero destaca a necessidade do engajamento do historiador contemporâneo na construção de uma “epistemologia desmistificadora” capaz de reconduzir o texto histórico a um estatuto socialmente relevante. Nesse sentido, critica a “hiperespecialização” das pesquisas e a limitação dos escopos acadêmicos pouco comprometidos com a articulação, compreensão e intervenção em fenômenos globais. Todavia, Escudero alerta que a necessidade de retorno da macro-história não deve ser confundida com o reforço da figura do sujeito histórico universal eurocêntrico. Pelo contrário, o argumento do autor é que essa exigência de superação dos escritos fragmentários passa fundamentalmente pelo pensamento decolonial, suas novas epistemes e possibilidades de leitura e interpretação histórica.

Na sequência, o estudo de João Camilo G. Portal reflete sobre o lugar do testemunho no processo de escrita da história. A partir da análise da obra de Svetlana Alexievich, o autor discorre sobre a responsabilidade da escuta e da hospitalidade que subjaz o gesto de coletar testemunhos a respeito de situações traumáticas do passado. Assim, o historiador atua como uma “testemunha de segundo grau” (RICOEUR, 2012), ao imaginar e transcrever a memórias de trauma colhidas – transformando-as e sendo por elas transformado. O artigo destaca ainda a potência política da temporalidade da derrota e do inconcluso como contraponto à temporalidade da história que sempre vence – a história dos homens poderosos. Nesse sentido, o texto defende que a renovação disciplinar da prática historiográfica deve ser acompanhada de uma reformulação dos códigos linguísticos e práticas discursivas, de modo que não só a testemunha mas aquele que a escuta e a acolhe, passem a ser considerados criadores de significado.

Por fim, Vicente da Silveira Detoni analisa como a ampliação das condições de produção de histórias promovida pela expansão de espaços virtuais, como o Twitter, deram nova forma às disputas de poder e autoridade que sempre envolvem os usos dado passado. Detoni examina estratégias adotadas pelas das novas forças de direita, tais como o protagonismo histórico conferido às princesas imperiais e a apropriação do passado imperial e de datas cívicas como a Independência. De forma geral, o autor defende que a transformação do público consumidor e produtor de histórias acirrou conflitos políticos que se apropriam do passado, processam-se no presente e definem o futuro. Assim, a crise do sistema de mediadores realoca a questão da necessidade de historiadores e historiadoras participarem ativamente da disputa de quem pode falar sobre o passado. Nesse sentido, sugere que o bicentenário da Independência em 2022 será um momento crucial para este desafio.


Organizadores

Alice Fernades Freyesleben

Luiz Alexandre Pinheiro Kosteczka


Referências desta apresentação

FREYESLEBEN, Alice Fernades; KOSTECZKA Luiz Alexandre Pinheiro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.10, n.1, p.10-12, jul. 2021. Acessar publicação original [DR]

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