Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

Ailton Krenak, 66 anos, filósofo, escritor, jornalista, ativista e líder do povo krenak, é considerado um dos mais importantes pensadores brasileiros. Desde o seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte em 1987, o intelectual indígena luta pelos direitos dos povos tradicionais indígenas, por política socioambiental e medidas assertivas sobre proteção ao planeta Terra.

Ideias para adiar o fim do mundo, publicado pela Companhia das Letras, é a adaptação de duas palestras e uma entrevista realizadas em Portugal, entre 2017 e 2019. O autor explica que o título do livro é uma provocação e conta que surgiu a partir de um convite para participar de um encontro sobre desenvolvimento sustentável em Brasília. Estando envolvido com atividades no quintal de sua casa, Krenak explica que, ao receber a ligação, soube que precisava dar um título a sua palestra e, de imediato, pensou nesse que, mais tarde, daria também nome a esta obra aqui resenhada.

O livro é dividido em três partes: “Ideias para adiar o fim do mundo”, que dá nome à obra; “Do sonho e da terra”; e, por último, “A humanidade que pensamos ser”. Em entrevista a Massuela e Weis (2019), Krenak afirma que “estamos num fim de mundo. Pelo menos desse mundo que todo mundo acha que pode saquear”. E se pergunta: “quantas Terras vamos ter que consumir até essa gente entender que está no caminho errado?”.

Na primeira parte do livro, Krenak já anuncia que brancos colonizadores europeus saíam para o resto do mundo sustentando a lógica de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível chamada civilidade. Ele traz para discussão um dos dualismos assimétricos fruto da herança da modernidade: Homem x Natureza. Krenak (2019, p. 16-17) explica que “fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza”.

Para se fazer uma leitura crítica de tal binômio, segundo Descola e Pálsson (2001, p. 23), é preciso “[i]r más allá el dualismo [porque] abre[n] un paisaje intelectual completamente diferente, un paisaje en el que los estados y las sustancias son sustituidos por procesos y relaciones”. São alternativas conceituais sobre as fronteiras sinuosas e porosas que articulam os humanos e não humanos em um mesmo eixo de coconstituição, na visão de Serna e Del Cairo (2016).

Por séculos o pensamento ocidental teve uma visão antropologizante, ou seja, viu a natureza como fonte de recursos para a satisfação das necessidades humanas. Cultura e natureza são duas dimensões diferentes e antagônicas entre si. Para Krenak (2019, p. 17), uma está dentro da outra. “O cosmo é a natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”.

Ainda na primeira parte do livro, ele faz referências à obra A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), do líder yanomami David Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. Ele diz que o livro tem o potencial de mostrar como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial, em que tudo ganha sentido. As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta.

No final do primeiro capítulo, ao ser questionado sobre como os índios iriam sobreviver diante dessa crise ecológica, Krenak explica que há quinhentos anos os índios estão resistindo. Agora, ele está preocupado com os brancos, como eles vão escapar dessa situação.

Já na segunda parte da obra, chamada “Do sonho e da Terra”, Krenak faz uma crítica a um pensamento que até hoje vive na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros, ao explicar

que

na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais – sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, […] é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza. (Krenak, 2019, p. 41)

Para mostrar o lado verdadeiro dessa história, ele traz o exemplo do rio Doce, que os krenaks chamam de Watu (os krenaks são uma comunidade indígena situada na região do vale do rio Doce, em Minas Gerais). Esse rio está todo coberto de lama tóxica, que desceu de uma barragem (do fundão da mineradora Samarco, em novembro de 2015) de contenção de resíduos (cerca de 45 milhões de metros cúbitos de rejeitos de mineração de ferro), o que os deixou órfãos. Segundo o autor, para os krenaks, o rio Watu é alguém da família, como um avô, e não um recurso natural, e essa comunidade está acompanhando esse rio em coma até agora. Para Krenak, esse crime não pode ser chamado de acidente, pois atingiu suas vidas de maneira radical, colocando-os na real condição de um mundo que acabou.

Mais adiante, nesse capítulo, o Antropoceno é visto por Krenak como conclusão ou compreensão de estarmos vivendo numa era que soa como um alarme nas nossas cabeças. O termo em destaque foi lançado nos anos 1980 pelo biólogo Eugene F. Stoermer e popularizado nos anos 2000 pelo químico holandês Paul J. Crutzen, ao escreverem um artigo que foi traduzido por Mendes (2020), afirmando que estamos de passagem do Holoceno para o Antropoceno.

Danowski e Viveiros de Castro (2014) explicam que o termo compõe uma proposta que aponta para uma época no sentido geológico, mas também para o fim de uma “epocalidade”, no que concerne à espécie humana. Assim, alguns pesquisadores veem a humanidade como uma força da mesma amplitude de outras forças geofísicas modificadoras dos sistemas da Terra.

Krenak corrobora esse pensamento ao afirmar que

se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitam prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante do dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver. (Krenak, 2019, p. 46-47)

Assim, é preciso repensar essa ideia de humanidade,

que exclui todas as outras e todos os outros seres e que não reconhece que o rio que está em coma é também nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra. (Krenak, 2019, p. 47-48)

Quanto a essa situação, alerta-nos a filósofa Alyne de Castro Costa que

se a crise ecológica desencadeou uma crise epistemológica e civilizacional, denunciando que a ontologia moderna, longe de constituir uma universalidade organizativa, apresenta(va) apenas um mundo (ainda que muito poderoso) entre muitos, o Antropoceno invoca a necessidade de abrirmos espaço para novas concepções e teorias de conhecimento em que vida e não vida não sejam os operadores-padrão de distinção ontológica (e nem que tal distinção continue acarretando a desqualificação de outros povos e de outros conhecimentos como “primitivos” ou “irracionais.” (Costa, 2016, p. 143)

Na última parte do livro, “A humanidade que precisamos ser”, Krenak dá continuidade à discussão sobre o Antropoceno ao dizer que ele tem um sentido incisivo sobre nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e humanidade é a maneira mais profunda do Antropoceno. “O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder”. Ao explicar que todas as histórias antigas chamam a Terra de mãe, Pachamama, Gaia, Krenak (2019, p. 60-61) nos chama a atenção para o fato de que não podemos ficar apáticos, insensíveis diante de um problema tão grave. Não podemos ofender a Terra sem nos ofender! Quando falamos Terra, estamos falando na possibilidade de vê-la de forma objetiva como planeta, como Pachamama (mãe-Terra) dos povos ameríndios dos Andes centrais, com sua fertilidade a nos dar tudo de que precisamos, mas também como Gaia.

Na mitologia grega, Gaia é entendida como elemento primordial e latente de uma potencialidade geradora imensa. Se ela pôde incitar os gigantes a empilharem as montanhas na intenção de escalar o céu e invadir o Olimpo, o que ela não pode fazer ou nos dizer?

Com Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak, além de produzir uma reflexão sobre como reconhecer e incluir textualmente agenciamentos não humanos em nossas pesquisas, do ponto de vista teórico-metodológico, nos traz um exercício de escuta para ouvirmos o “inaudível”. É preciso se abrir para outras experiências de mundo, aprender com outros professores e professoras, aprender com outros corpos, com outras espécies de vida. O desafio é nos protegermos de forma coletiva, nos aproximando da natureza, porque também somos ela.


Referências

COSTA, Alyne de Castro. Virada geo(nto)lógica: reflexões sobre vida e não vida no Antropoceno. AnaLógos, Rio de Janeiro, v. 1, p. 140-150, 2016.

DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2014.

DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli. Introducción. In: ______. Naturaleza y sociedad: perspectivas antropológicas. México, DF: Siglo XXI Editores, 2001. p. 11-36.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MASSUELA, Amanda; WEIS, Bruno. O tradutor do pensamento mágico. Cult, São Paulo, v. 22, n. 251, p. 10-17, nov. 2019.

MENDES, João. O “Antropoceno” por Paul Crutzen & Eugene Stoermer. Anthropocenica. Revista de Estudos do Antropoceno e Ecocrítica, [s.l.], v. 1, 2020. DOI: 10.21814/anthropocenica.3095. Disponível em: https://revistas.uminho.pt/index.php/anthropocenica/article/view/3095. Acesso em: 12 dez. 2020.

SERNA, Daniel Ruiz; DEL CAIRO, Carlos. Los debates del giro ontológico en torno al naturalismo moderno. Revista de Estudios Sociales, n. 55, p. 193- 204, 2016.


Resenhistas

Aurino Lima Ferreira – Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor associado do Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais da UFPE, Brasil. E-mail: [email protected]

Gustavo Jaime Filizola – Mestre em Educação, Culturas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Doutorando em Educação pela UFPE, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: FERREIRA, Aurino Lima; FILIZOLA, Gustavo Jaime. Acervo. Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 1-5, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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