Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco | Giulio Argan

Giulio Carlo Argan (1909-1992) certamente constitui-se como uma das raras exceções onde a atuação política no exercício de cargos públicos não comprometeu a vida intelectual. Prefeito de Roma entre 1976 e 1979, senador eleito pelo Partido Comunista italiano em 1983 – cargo que exerceu por duas legislaturas – e catedrático de História da Arte Moderna na Universidade de Roma a partir de 1959, foi dos mais produtivos dentre os historiadores da Arte de sua geração, que inclui nomes como Ernst H. Gombrich, H. W. Janson e André Chastel. Seus estudos se estenderam por uma gama enorme de temas, que vão do Trecento italiano à Bauhaus, do Românico à Arte Moderna, de Fra Angelico a Caravaggio. Na verdade, alguns de seus livros são obras fundamentais quando se fala de Historiografia e Crítica de Arte produzida no século XX: História da Arte como História da Cidade[2]; Clássico Anticlássico[3]; Arte Moderna [4] e História da Arte Italiana[5] são apenas alguns de seus principais trabalhos, numa extensa lista iniciada ainda na década de 30.

Depois de quase vinte anos desde sua primeira edição italiana, finalmente os leitores brasileiros podem dedicar-se à tarefa de vencer as mais de quinhentas páginas de Imagem e persuasão, coletânea de ensaios de Argan sobre o Barroco, organizada por Bruno Contardi e publicada em 1986 pela Feltrinelli, em Milão. Aqui, a obra foi traduzida competentemente por Maurício Santana Dias e recebeu uma respeitável edição da Companhia das Letras.

Como toda coletânea, aliás, esta obra de Argan tem seus momentos altos e baixos. Seu principal mérito é reunir, num mesmo volume, ensaios esparsos do autor, quase todos publicados anteriormente em revistas especializadas e periódicos científicos de pequena circulação e difícil acesso, especialmente para pesquisadores brasileiros. Talvez o primeiro problema para o leitor seja o próprio volume do livro, que impossibilita o manuseio relaxado de uma leitura despreocupada, cujo objetivo seja apenas a fruição, sem anotações ou sublinhados a destacar passagens do texto: o peso de suas páginas obriga que se abra o livro sobre uma mesa. O segundo, infelizmente mais comum em obras de História da Arte não só em plagas tupiniquins, é a reunião das ilustrações em cadernos – no caso, dois, com a maior parte das reproduções em policromia -, afastando-as do trecho em que são citadas ou explicadas. Para os iniciados nesse campo de estudos não há tanto melindre, pois quase sempre se tratam de obras conhecidas, mas há que se pensar também no leitor que ainda não construiu uma memória visual que o auxilie na leitura e compreensão dos conceitos construídos por Argan. Esse inconveniente se torna mais evidente nos ensaios que tratam de artistas menos conhecidos – ou mesmo desconhecidos – do público brasileiro, como os arquitetos Guarini, Bernardo Vittone e Benedetto Alfieri, ou o cenógrafo-arquiteto Filippo Juvarra, dos quais, a propósito, não há reprodução de obra alguma nas páginas de Imagem e persuasão.

Outro detalhe a se questionar é, também, o não-desmembramento do livro em dois ou mesmo três volumes, de forma a democratizar o acesso do leitor a esse objeto ainda tão dispendioso no Brasil. Na verdade, o principal ensaio do livro, “A Europa das Capitais”, se trata de obra autônoma lançada por Argan como livro ainda em 1964, em edição da Fabbri-Skira, de Milão, que o reeditou em 2004. Esse texto, em especial, reúne e resume as principais idéias de Argan sobre o Barroco e o século XVII na Europa. O leitor, aliás, deveria iniciar sua aventura neste livro por esse ensaio, pois vários conceitos e desdobramentos teóricos presentes em suas 140 páginas são imprescindíveis para a compreensão dos outros textos que o acompanham.

Construindo uma teoria sobre o Barroco

Talvez uma das principais idéias de Argan sobre o Barroco seja justamente aquela com que ele abre o prefácio de Imagem e persuasão: a de que foi o Barroco que inventou a modernidade, na medida em esta passou a ser vista como qualidade essencial da produção cultural do século XVII em diante. Depois de 1600, o artista devia atender à demanda do público, estar em dia com as novas tendências, ser moderno. Mais ainda, Argan também sustenta que foram os artistas barrocos os primeiros a compreender a Arte como “cultura, nada mais que cultura” (p. 8).

Para Argan, a grande distinção da Era Barroca, em termos históricos, é que a Europa tornou-se o continente das capitais, em contraposição à medieva Europa das catedrais ou mesmo à renascentista Europa dos burgos e cidades. Esse conceito, que Argan aprofunda em “A Europa das Capitais”, na verdade tem vários desdobramentos. Dentre eles, talvez o mais evidente seja a definitiva associação da arte barroca com o poder de Estado, especialmente onde estavam a se firmar os nascentes Estados nacionais europeus e, por extensão, no âmago da Igreja Romana, ávida por redimensionar seu lugar-no-mundo após o espanto da Reforma.

Assim, Argan argumenta que a transformação da relação entre o homem e o universo que se deu no século XVII teve como causas não só as revoluções filosófica de Descartes e científica de Galileu, mas principalmente a crise religiosa do século XVI, que desarticulou as bases sobre as quais se assentava a própria vida cotidiana. Nesse contexto, o Barroco firma-se como arte da Igreja Romana justamente pela necessidade dogmática e prática de sistematização e demonstração de fatos da História cristã como exemplos edificantes aos fiéis. Na Igreja Romana da Contra Reforma, a arte tem algumas funções bem definidas: estimular a devoção, servir de caminho para a salvação através dos atos inspirados pelos santos e, por fim, transmitir mensagens catequizantes aos ainda pagãos através de imagens.

Desse modo, Argan afirma que toda a arte do século XVII “é animada por um espírito de propaganda” (p. 60), pois a linguagem alegórica reduz conceitos a imagens, atribuindo-lhes uma força demonstrativa que atinge diretamente a sensibilidade do espectador: para a Igreja Romana, “o principal objetivo da imagem é induzir no fiel o estado de ânimo e a atitude modesta e humilde que ele deve assumir para dirigir-se a Deus” (p. 103).

Na visão de Argan, portanto, o Barroco conduz a uma indefinição das fronteiras entre as várias artes, posto que pintura, escultura e arquitetura tornam-se extremamente complementares e imprescindíveis umas às outras, pois sua junção na apoteose barroca potencializa suas possibilidades alegóricas. Nesse sentido, a catedral de S. Pedro, em Roma, torna-se uma demonstração emblemática dessa relação entre espaço arquitetônico, decoração artística e representação alegórica: sua cúpula, “representação ideal da autoridade da Igreja, que domina e protege o mundo” (p. 84), eleva-se não só sobre o templo, mas também sobre todos os fiéis da face da Terra; a colunata de Bernini cercando a grande praça à frente do templo é a transposição alegórica, em pedra, do grande abraço da Igreja Romana, que se dispõe a acolher a todos os fiéis; o baldaquino gigantesco do altar traz o ritual cotidiano das procissões para dentro da nave, elevando-o a um patamar celeste.

Mesmo no campo urbanístico o Barroco, segundo Argan, interfere diretamente na organização das cidades européias, pois traduz através de monumentos aquilo que Lewis Mumford definiu como “ideologia do poder”, especialmente através da criação de duas novas soluções arquitetônicas profusamente instauradas nos maiores centros europeus ao longo do século XVII: a praça [6] e a avenida, ambas palcos privilegiados para a apoteose barroca de procissões religiosas e triunfos cívicos.

A noção de centro e periferia, tão cara a Carlo Ginzburg em um ensaio clássico sobre a arte italiana [7], também está presente em Imagem e persuasão. Para Argan, enquanto o renascimento representou o apogeu da civilização urbana, o Barroco representa a ascensão dos Estados Nacionais e, conseqüentemente, uma centralização de poderes que se cristaliza no aparato de Estado e na vida cotidiana das capitais, estabelecendo diferenças entre a arte e a cultura desses centros urbanos e as das províncias, sempre periféricas em relação às da metrópole. É justamente seguindo esse raciocínio que Argan identifica o Barroco no Novo Mundo como um fenômeno periférico, mas que mantém o caráter de monumentalidade e que se liga diretamente à visibilidade da autoridade, seja ela do Estado ou da Igreja Romana, chegando à persuasão simbólica através da ostentação.

No entanto, Argan entende que o Barroco latino-americano perde o caráter intrinsecamente alegórico do estilo por aproximar-se da linguagem e do imaginário populares, o que lhe retira sua força – trata-se, a meu ver, de ponto de vista equivocado sobre a complexidade que as manifestações barrocas atingiram tanto na América portuguesa quanto na espanhola. Penso que numa análise menos superficial, é possível afirmar que as obras tropicais estão, para o Barroco europeu, tal como a arte das pequenas cidades italianas dos séculos XIV e XV para a arte de Veneza, Florença ou Roma [8], por exemplo. Mas Argan não busca compreender a periferia: seu intento é desvendar a matriz, perceber o que fez do Barroco europeu esse amálgama entre retórica e arquitetura, imaginação e sentimento, devoção e monumentalidade.

Alguns outros ensaios, assim como “A Europa das Capitais”, se destacam em Imagem e persuasão: “A Arquitetura Barroca na Itália”, publicado originalmente em 1957, e “A Arquitetura Romana do Início do Século XVII” desvendam as bases estruturais do estilo que, depois, seria filtrado pela cultura ibérica e chegaria ao Brasil colonial. Há também ensaios sobre Francesco Borromini, que na Roma do século XVII disputava espaços, influência e prestígio com seu rival, Gian Lorenzo Bernini. Argan trata de Borromini em dois textos específicos, de Bernini em um terceiro e da relação entre os dois arquitetos num outro. O Barroco na França, nos Países Baixos e na Inglaterra também é lembrado, e uma pequena pérola se destaca no maciço livro: três páginas apenas tratando de Las Meninas, de Velázquez.

Vários outros pequenos ensaios, sobre Caravaggio, sobre Guido Reni e sobre Tiepolo – entre os artistas mais conhecidos – ao lado de textos analisando construções específicas na Itália tornam essa coletânea de Giulio Carlo Argan uma obra indispensável para a compreensão do Barroco como a fonte artística e cultural de onde surgiu a modernidade.

Nós próprios, que vivemos em meio a um turbilhão de contrastes e imagens que quase nos sufocam no dia-a-dia, poderíamos compreender melhor a contemporaneidade se buscássemos, no Barroco, a origem de discursos visuais que se tornaram também, nas palavras de Argan, “um modelo de comportamento” (p. 103). Especialmente a sociedade colonial que se construiu nas Américas foi erguida a partir dessas imagens, o que nos faz, por extensão, uma conseqüência desse processo histórico.

Notas

2. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução de Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1992. [Primeira edição italiana: Storia dell’arte come storia della città. Roma: Riuniti, 1983.]

3. ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Tradução de Lorenzo Mammí. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. [Primeira edição italiana: Classico anticlassico: il Rinascimento da Brunelleschi a Bruegel. Milano: Feltrinelli, 1984.]

4. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [Primeira edição italiana: L’arte moderna: dall’Illuminismo ai movimenti contemporanei. Firenze: Sansoni, 1970.]

5. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana. 3 vols. Tradução de Vilma de Katinsky. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. [Primeira edição taliana: Storia dell’arte italiana. 3 voll. Firenze: Sansoni, 1968-70.]

6. A praça barroca é uma solução arquitetônica muito diferente da praça medieval, que resistira até então nas cidades européias e tinha funções mais ligadas às práticas comerciais esporádicas – ou mesmo permanentes – das feiras.

7. GINZBURG, Carlo. A arte italiana. In: _________. A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 05-117.

8. GINZBURG, A arte italiana, p. 31-35.


Resenhista

Carla Mary S. Oliveira – Historiadora, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.


Referências desta Resenha

ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Organização de Bruno Contardi. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Resenha de: OLIVEIRA, Carla Mary S. Construindo teorias sobre o barroco. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 13, p. 159-162, jul./dez. 2005. Acessar publicação original [DR]

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