Imigração no tempo presente: experiências de vida e direitos humanos no Brasil/Revista Transversos/2022

A temática da imigração tem obtido grande repercussão nos meios de comunicação de massa, que, com frequência, têm noticiado esse fenômeno e seus desdobramentos no tempo presente. Embora o assunto remonte, no tempo e no espaço, a séculos anteriores, durante o período da grande imigração, na contemporaneidade, esse movimento tem se revestido de inúmeras preocupações. A grande mídia tem publicado matérias que aludem os impactos dos deslocamentos para o Brasil e suas implicações para a sociedade. Aponta-se para uma noção de crise migratória sem precedentes, motivada por questões que dizem respeito ao racismo e à xenofobia, além dos problemas que envolvem acolhimento a imigrantes, reconhecimento de cidadania e direitos humanos.

Para Abdelmalek Sayad (1998), as razões que têm motivado o deslocamento de indivíduos na atualidade se devem à busca por melhores condições de vida e de trabalho, explicação que, para esse autor, produz uma ilusão permanente, em relação à oferta de empregos no país para onde se imigra. Essas justificativas que se revestem de explicações de caráter econômico, segundo ele, ocultam fatores de natureza política, podendo, inclusive, ser este um outro motivo para emigrar.

A opção pela emigração é um ato consciente. Dessa maneira, considera-se que as decisões da partida são, por vezes, motivadas por razões como o desemprego, a pobreza, as crises econômicas e políticas, as guerras civis, as situações de violação de direitos humanos e os desastres naturais. Dessarte, é imprescindível distinguir as migrações voluntárias e involuntárias, devido aos problemas enfrentados pelos imigrantes e refugiados na atualidade, no que diz respeito às políticas de Estado que ora permitem, ora proíbem a entrada de estrangeiros em seus territórios.

Em relação ao Brasil, o país se insere na dinâmica migratória, como uma alternativa procurada por imigrantes oriundos de países do Oriente Médio, da África e do próprio continente americano. Investigar as razões pelas quais o território brasileiro é destino desses estrangeiros reforça a importância de se debruçar sobre essa temática na atualidade. Em uma sociedade reconhecidamente multiétnica como a brasileira, é dever social evidenciar essas questões, a fim de promover um diálogo que reconheça a diversidade cultural e a contribuição que esses indivíduos proporcionam para a nação.

Atualmente, muitos pesquisadores nacionais e internacionais têm se dedicado a essa problemática para o Brasil. As análises têm privilegiado: a noção de crise humanitária, que evidencia a relação entre imigração e direitos humanos, bem como a presença de indivíduos em áreas fronteiriças e os processos de interiorização dos refugiados no país; o fluxo de crianças e mulheres vulneráveis, a violência e a precarização do trabalho do imigrante, em meio às interfaces desse mesmo processo. Os textos que compõem este dossiê caminham nessa direção, não apenas cumprindo o papel das ciências humanas na conscientização de ações que exponham/denunciem atitudes de racismo e xenofobia, mas também auxiliando no diálogo com os poderes públicos, na elaboração de políticas destinadas aos imigrantes e refugiados no país.

Em Narrativas de um imigrante haitiano: experiências de organização e resistência, Karla Pádua e Ana Paula Santana analisam a imigração haitiana na última década deste século, a partir das narrativas de Fedo Bacourt, haitiano que deixou seu país, após o terremoto que abalou a cidade, em 2010. Fundador da União Social dos Imigrantes Haitianos (U.S.I.H.), primeira associação desse grupo no Brasil, Bacourt apresentou, em seu relato, os dilemas vividos pelos imigrantes haitianos no território brasileiro, em relação às questões socioeconômicas e ao reconhecimento dos direitos humanos. O artigo reflete sobre o fenômeno migratório na contemporaneidade e os desafios que são impostos à política brasileira, como a necessidade de políticas públicas voltadas para o acolhimento e incorporação desses imigrantes à sociedade.

No artigo La presidencia pro-témpore de Brasil en el proceso de Quito; ¿es posible alcanzar una gobernanza migratoria regional?, Luis Santiago Manzano e Marco Antonio Granja refletem sobre a atual crise na Venezuelana e seus impactos regionais, sobretudo no incremento significativo dos fluxos migratórios para os países sul-americanos e como os países da região, a partir do chamado Processo de Quito, em 2018, procuraram se articular, para desenvolver respostas conjuntas à crise e assegurar a acolhida dos venezuelanos, numa perspectiva da garantia dos direitos humanos.

Vania Heredia, em seu artigo Migrações internacionais numa cidade média brasileira no século XXI, analisa as migrações internacionais para Caxias do Sul, na atualidade. A cidade que foi destino de muitos imigrantes italianos durante os séculos XIX e XX, mas também de migrantes nacionais, vem recebendo, nos últimos anos, levas migratórias de haitianos, senegaleses, ganeses e, posteriormente, latinos. Compreendeu-se que os grupos analisados se dirigem a esse município atraídos pela oferta de trabalho, que os absorve como mão de obra, estímulo à vinda de tantos outros migrantes para o local.

Ainda em relação a Caxias do Sul, Cristiane Fortes, Lia Monteiro e Franciele de Oliveira propõem um estudo sobre as Trajetórias migrantes: jeitos de ser e estar no mundo de Demba Sokhna. As autoras analisam a história de vida do imigrante senegalês Demba Sokhna, que se radicou no Brasil em 2013, suas experiências de vida, estratégias de sobrevivência na cidade sulista, bem como seus projetos de vida no país.

Em Crianças e adolescentes refugiadas no Rio de Janeiro: quais políticas? Ariane Rego de Paiva e Marileia Inoue apontam para a necessidade de políticas públicas voltadas para o atendimento de crianças e adolescentes refugiados na cidade do Rio de Janeiro, reconhecendo que não há programas de assistência para essa faixa etária. Nesse sentido, os espaços educativos tornam-se locais de atendimento para esses indivíduos, que necessitam de integração à sociedade. Em muitos casos, observou-se que falta maior preparo por parte dos educadores no acolhimento desses refugiados. Daí, a necessidade de ações voltadas para lhes garantir o acesso aos seus direitos civis.

Em Refugiados congoleses em cidades periféricas: um estudo de caso, Julianna Oliveira e Rui Aniceto Fernandes refletem sobre os deslocamentos forçados no tempo presente e o processo de construção de identidades étnicas no município de São Gonçalo, em especial no bairro Jardim Catarina. Partindo dos relatos de uma refugiada congolesa, Luzolo Antoinete, foi possível compreender as motivações para deixar a República Democrática do Congo, país que vivencia constantes guerras civis, em busca de refúgio no Brasil. O texto expõe ainda toda a tramitação jurídica envolvendo o reconhecimento do status quo de Luzolo e de seus filhos, bem como as redes de acolhimento e o processo de integração à sociedade brasileira, em especial a fluminense.

Seguindo a proposta do dossiê, que é refletir sobre as migrações na contemporaneidade, Giselle Nicolau, na seção Experimentações, espaço diferenciado da Revista Transversos, e que valoriza publicações que estão além dos artigos acadêmicos, apresenta, em Costurando narrativas do tempo presente: a trajetória de africanos no Rio de Janeiro, os primeiros passos de sua pesquisa sobre a presença de imigrantes e refugiados vindos de nações do continente africano para um país sulamericano. Por meio dos relatos, é possível mergulhar em realidades distintas, compreendendo as motivações da partida, a vivência em seus respectivos países e, por fim, suas esperanças e dilemas no Brasil.

Além dos artigos, o tema da imigração no tempo presente mobiliza outra sessão da presente edição. Luís Reznik, coordenador do Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores (CMIIF), entrevista Rosana Baeninger, coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo. A conversa, que foi realizada em 14 de junho de 2022, online, em uma live no Instagram (@cmiif.uerj), se insere no Projeto “Terças na Hospedaria”, em que foram realizadas entrevistas com especialistas em imigração, entre os anos 2020 e 2022, pelo Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores. Intitulada Imigração e Refúgio, o diálogo trata de questões conceituais e teóricas sobre os refugiados, as legislações e estatutos que vigoram no país, e como o Brasil se comporta diante desse processo de ordem mundial.

Em suma, trazer a imigração para o centro dos debates significa reconhecer a inexauribilidade do tema, que se reveste de especial importância na atualidade, marcada pelos impactos do capitalismo e da globalização, pelas crises econômicas e políticas, pelos conflitos armados e pelas questões climáticas, que impulsionam os seres humanos a se deslocarem. O fato de o Brasil se inserir na dinâmica migratória como um país possível, e não desejado, estimula ações de inclusão dessas discussões na agenda do país, envolvendo o Estado e a população, com vistas a pensar em políticas públicas voltadas para a acolhida e a integração desses indivíduos à sociedade brasileira.


Organizadores

Giselle Pereira Nicolau – Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira. Possui doutorado em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense (2018), com bolsa sanduíche na École de Hautes Études en Sciences Sociales (2017). Atua nas áreas de Brasil Império e República, Migrações, História Política, Biografia e Historiografia. Além disso, a pesquisadora/professora possui mestrado (2012) e graduação (2009) em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde desenvolveu pesquisas que contemplavam temas sobre: Cultura Política, os Usos do Biográfico na Escrita da História, Teatro, Imigração Urbana para o Rio de Janeiro, em especial a francesa, e Ensino de História. E-mail: [email protected]

Lená Medeiros de Menezes – Professora Emérita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Titular de História Contemporânea e Pesquisadora Visitante do Programa de Pósgraduação em História da mesma Universidade, tendo recebido, no ano de 2015, a medalha da Ordem de Mérito José Bonifácio da UERJ e o título de Grão-Mestre da referida Ordem. É Doutora em História Social pela USP (1995), com Pós-doutorado na PUC-SP (2007), Mestre em História Social das Ideias pela UFF (1985), Especialista em História da América pela UFF (1983) e Licenciada em História pela UERJ (1969). Tem larga experiência de docência e pesquisa na área de História, dedicando-se à investigação das seguintes temáticas: movimentos migratórios, imigração urbana (ênfase ao Rio de Janeiro e às imigrações francesa e portuguesa), expulsão de estrangeiros, movimento operário, anarquismo, prostituição e tráfico internacional de mulheres, estudos de gênero, imprensa e discurso midiático, imagens e representações, relações internacionais. Escreveu inúmeros artigos e capítulos de livros, publicados no Brasil e no exterior, com destaque para Portugal, Espanha e França. Fundou e coordena o Laboratório de Estudos de Imigração (LABIMI), vinculado aos Programas de Pós-graduação em História e de Relações Internacionais da UERJ.  E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

NICOLAU, Giselle Pereira; MENEZES, Lená Medeiros. Apresentação. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 26, p. 6-10, 2022.  Acessar publicação original [DR/JF]

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