Novos paradigmas de desenvolvimento para a América Latina: (re)emergência étnica e resistência indígena no tempo presente | Revista Transversos | 2022

Servico de Protecao aos Indios. Criancas Parintintins ouvindo gramofone Posto Antonio Paulo 1926 Imagem Arquivo Nacional
Serviço de Proteção aos Índios. Crianças Parintintins ouvindo gramofone, Posto Antônio Paulo, 1926 | Imagem: Arquivo Nacional

A urgência de um debate sobre o modelo de desenvolvimento implementado na América Latina vem sendo pautada por movimentos sociais com liderança dos povos originários. Esses movimentos têm alcançado recentemente plataformas políticas importantes, fazendo com que as pautas dos movimentos étnicos estejam na ordem do dia em toda a América Latina. O processo de formação de uma nova Constituinte no Chile, em especial, vem mostrando as possibilidades de aplicação do pensamento anti-colonial e decolonial na política a partir da defesa de um novo modelo econômico e de sociedade baseado na ideia do bem viver. Além disso, no Brasil os povos originários vêm sendo importantes atores políticos a evidenciar o esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico baseado apenas na exploração do meio ambiente.

O processo de (re)emergência étnica consiste em elemento central na configuração do atual cenário político latino-americano. Embora desde meados da década de 1950 muitos Estados republicanos tenham incorporado os indígenas formalmente à categoria de “cidadãos”, tal mudança baseou-se a princípio na conversão destes em mestiços e/ou em sua assimilação à cultura ocidental capitalista. O surgimento de movimentos sociais de base étnica voltados ao questionamento das características monoétnicas, monoculturais, excludentes e racistas dos países da América Latina é algo mais recente, remontando a meados da década de 1970. Ao lançar luz sobre a permanência das estruturas coloniais de dominação, passam a relativizar os verdadeiros alcances obtidos pelas independências e pelo processo de formação dos Estados nacionais no continente. Desde então, questionam os discursos de poder legitimadores da dialética “colonizador-colonizado”, elaboram discursividades próprias, que se distanciam do caráter universal reivindicado pela história ocidental, e buscam a recuperação de modelos organizativos ancestrais, que também sejam reconhecidos e englobados pela política institucional ocidental. Leia Mais

Escravidão e liberdade no Brasil independente | Revista Transversos | 2022

O ano de 2022 é marcado pelas celebrações dos centenários de importantes eventos da História do Brasil, entre eles os 200 anos da Independência política e os 100 anos da Semana de Arte moderna. O mote dos centenários também deve ser usado para celebrar a vida de duas personalidades negras da nossa cultura: os 100 anos da sambista Dona Ivone Lara e os de morte do escritor Lima Barreto. Essas últimas efemérides nos remete a uma população negra pouco valorizada nas celebrações dos grandes eventos, um reflexo do último século da história do Brasil. Um país recém saído da escravidão e que procurava construir uma identidade que não poderia ser remetida a um passado, colonial e escravista. Em 1822 a independência ocorreu sem abalar a estrutura escravista e nem questionar o lugar social e político de homens e mulheres, negros e pobres. Em 1922, ao rememorar essa independência, a República reproduziu o esquecimento, e não lembrou dos egressos da escravidão e seus descendentes, que ocupavam as ruas das cidades brasileiras trabalhando e tentando sobreviver cultural e politicamente no regime republicano, apesar das crônicas de Barreto que alertavam para a crescente desigualdade social e a falta de oportunidades para homens como ele, negro e da periferia da República. Em 2022 é preciso lembrar e discutir o passado em dois tempos, o da independência e durante o Império, e o da República, que celebrou os cem anos da independência no pós-abolição.

Ao pensarmos nos diferentes tipos de eventos que ocorreriam em 2022 para celebrar o bicentenário da independência, achamos importante organizar um dossiê que desse espaço para a publicação de pesquisas que pensem a escravidão e o pós-abolição, temas distantes dos eventos oficiais organizados por instituições públicas e pelo governo federal. Diante disso, esse dossiê representa um esforço em pensar o pós-abolição articulado aos 100 anos da independência, e o passado escravista, principalmente sob o viés da luta de homens e mulheres escravizados. Temáticas fundamentais para compreender a história do Brasil e suas conexões. Se a liberdade e a independência que se celebravam em 1922 não os mencionam, ao mesmo tempo eles propunham outras formas de celebrar a vida, seja na cultura com o nascimento do samba, seja por meio da história e da literatura, dentre outras maneiras. Nesse sentido, os artigos publicados nos fornecem elementos para perceber, nuances de um pano de fundo no qual foi assentada a independência do Brasil, onde esses sujeitos emergem percorrendo caminhos áridos em busca de sua cidadania. Entre as questões trazidas pelos pesquisadores talvez uma ganhe maior destaque – as limitações da liberdade – e as estratégias legais e políticas para guiar os destinos dos ex-cativos diante das transformações e rumos políticos que a sociedade brasileira buscou seguir frente à independência. Leia Mais

O futuro do passado: desafios para o ensino da história na escola numa perspectiva global | Revista Transversos | 2021

Desde o final do século XIX, as «revoluções» historiográficas multiplicam-se. Convicções que se estabeleceram a seu tempo como consensos epistemológicos e metodológicos sobre as práticas de investigação neste domínio são substituídas por outras, também aparentemente eternas. Mais recentemente, a reflexão dos historiadores centrou-se mais nos recursos narrativos da escrita da história e nos esforços de descompartimentar, de desconstruir e de problematizar documentos, disciplinas e identidades, mas também sobre a pluralidade das áreas e escalas espaço-temporais a partir das quais se colocam os problemas de investigação. Estas mudanças, tal como as contínuas, são relativas e ocorrem num contexto cultural, econômico, político e social que afeta também o mundo da educação.

Neste contexto, quais desafios se colocam ao ensino escolar da história? Como aproveitar a situação para aumentar a motivação dos alunos, na classe de história, para os tornar mais intelectualmente autônomos e curiosos, para desenvolver o seu pensamento crítico, a sua conscientização? Leia Mais

Africanizar: resistências, resiliências e sensibilidades | Revista Transversos | 2021

A Revista Transversos em sua 22a edição propõe-se em um pensamento-ação. O dossiê Africanizar: resistências, resiliências e sensibilidades. A concepção temática emerge do encontro de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e africanos. Ele parte dos trabalhos realizados pela linha de pesquisa África e suas diásporas do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em contato com a Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique), a Universidade Católica de Angola (UCAN), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

Africanizar como movimento é um imperativo de pensar as Áfricas para longe de cristalizações e essencializações redutoras. Africanizar surge como necessidade de ouvir as vozes do continente, as quais questionam os parâmetros fornecidos a partir do viés eurocêntrico, da branquidade, do androcentrismo, do heteronormativo, das metanarrativas nacionais homogeneizantes ou dos interesses dos dominantes, sejam eles, estrangeiros ou locais. Os conteúdos dos textos apresentados apontam para os agenciamentos e os saberes dos silenciados, dos invisibilizados e daqueles que foram colocados à margem. Leia Mais

O protagonismo da Mulher Negra na Escrita da História das Áfricas e Améfricas Ladinas / Revista Transversos / 2021

“Nwanyi buaku” (a mulher é riqueza)

A mulher é riqueza, diz o provérbio Igbo. A maior riqueza, pois é a mulher que dá a vida, que planta os alimentos, que nutre a sociedade. A “unidade matricêntrica” é um traço que une todas as sociedades africanas, um legado civilizatório deste continente, concluiu Amadiume ao examinar os papéis sociais desempenhados pelas mulheres Nnobi, subgrupo Igbo. No dia-a-dia das comunidades, são as mulheres que garantem a existência da população e isso é amplamente reconhecido e venerado, como indica o ditado acima.

A grande importância que as mulheres africanas tiveram desde a Antiguidade é alvo de estudos há décadas. Desde a década de 1970, Cheikh Anta Diop apontou evidências de que as sociedades africanas pré-coloniais foram governadas por mulheres, o que ele enxergou ser o traço que unia toda a África Negra. Diop nomeou “matriarcado africano” o modelo caracterizado pela preponderância da agricultura, em que a mulher ocupa o centro enquanto detentora dos segredos da natureza e dos ritos de fertilização da terra. Mas o polímata senegalês chamou atenção que o matriarcado não pode ser entendido como o oposto do patriarcado branco Ocidental, o qual estabelece uma dicotomia entre feminino e masculino, oprimindo as mulheres e todos os valores/comportamentos relacionados ao feminino em benefício de um padrão masculinista-opressor da diversidade da existência, da vida. Não há essa matriz de poder dicotômica no matriarcado africano e sim uma complementariedade cosmogônica entre masculino e feminino, com efeitos diretos nas organizações sócio-hitóricas.

A História da África é repleta de exemplos de mulheres que assumiram a liderança política, militar, espiritual de suas sociedades. São elas as mais aptas a se comunicarem com as forças da natureza, a mandarem as chuvas descerem dos céus, a transmitirem conselhos dos antepassados. A espiritualidade africana, de forma geral, ancora-se em divindades femininas que trazem a fertilidade, a prosperidade, o equilíbrio: Auset, Mut, Maat (em Kemet, Egito Antigo), Oxum (Yorubá), Idemili (Igbo). Estas concepções cosmogônicas dão grande peso ao feminino, diferente das religiões monoteístas que exaltam UM Deus único, pai criador, associado ao masculino.

Assim, nas sociedades africanas pré-coloniais, as mulheres exerciam papéis sociais relevantes, não apenas nas altas esferas do poder político e espiritual, mas também na base, na estrutura de cada família, clã ou linhagem, eram as mulheres as responsáveis por transmitir os valores, as regras morais, princípios estéticos, técnicas de artesanatos como cerâmica, tecelagem, pinturas corporais, tranças etc.

Essa complementariedade entre masculino e feminino possibilitou diferentes atuações, organizações e expressões de poder relacionadas às mulheres. Na verdade, esse conceito de “mulher” enquanto determinismo biológico não pertence às sociedades africanas, como vem argumentando Oyèwùmí. O que quer dizer que a compreensão física do corpo pela modernidade Ocidental, seu dimorfismo sexual e seu padrão cis-heteronormativo, que formam “o que se entende por sexo biológico é socialmente construído” (LUGONES, 2008: 84). Inclusive a “ideologia de gênero” para as sociedades africanas tradicionais é bem mais fluída do que nas concepções ocidentais.

Na sociedade indígena, o princípio do sexo duplo subjacente à organização social foi arbitrado por um sistema flexível de gênero na cultura tradicional. O fato de o sexo biológico nem sempre corresponder ao gênero ideológico significava que as mulheres podiam desempenhar papéis geralmente monopolizados pelos homens ou serem classificados como homens em termos de poder e autoridade sobre os outros. Elas não eram rigidamente masculinizadas ou feminizadas, o colapso das regras de gênero não era estigmatizado. (AMADIUME: 1987, p. 8)

Contudo, séculos de escravidão, colonialismos, imperialismos transformaram os lugares sociais ocupados pelas mulheres africanas e suas descendentes em diáspora. Vamos observar na contemporaneidade: quais espaços e funções as mulheres negras ocupam nas sociedades atuais? Uma breve análise de dados sobre escolaridade, remuneração e violência doméstica, nos indica que, atualmente, as mulheres africanas e afro-diaspóricas estão nas bases das pirâmides sociais. Ou seja, com a imposição da civilização moderna-Ocidental como única possibilidade de organização social legítima, sua matriz de opressão (COLLINS, 2019) colonial, patriarcal, racista e cis-heterosexista, deixaram como legado a interseccionalidade de opressões que posicionou e continua posicionando as mulheres negras na base da subalternidade moderna-colonial.

A imagem da capa traz as mulheres Sam-sam, grupo de mulheres do vilarejo de Kabadio, Casamance, Senegal. Sam-sam reúne mulheres que já perderam pelo menos um filho – por aborto natural, no parto ou por doença- que performam ritos para garantir a fertilidade do grupo, a cura uterina e a cura de forma coletiva; configurando força, vitalidade e capacidade reprodutiva. Ao centro da imagem está Khadi Diabang, liderança que conduzia o banho de ervas Tiossane – que restitui o poder criador dos úteros.[1] Ela fez sua passagem em 2014. Ao lado esquerdo da imagem há uma criança, uma alusão à perda dos filhos. Esta fotografia é de autoria de Daniel Leite, que gentilmente nos cedeu para este dossiê, e integra o projeto humanitário em PermaKabadio. Daniel Leite reverte todos os lucros resultantes da venda de fotografias para a realização de projetos de permacultura no vilarejo, visando gerar renda para a comunidade e evitar a migração dos jovens.[2]

Este dossiê é mais uma contribuição ao movimento de de(s)colonização do saber ao visibilizar e legitimar, academicamente, as mulheres negras na História. Assim, assumimos o compromisso ético-político e acadêmico-científico de transgredir a tradicional monocultura do saber moderno-ocidental (SANTOS, 2002), apresentando diferentes protagonismos de mulheres negras da História da África e da Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988).

Tathiana Cassiano, em História das áfricas e literatura: as mulheres igbos na escrita literária de Flora Nwapa, problematiza os papéis sociais das mulheres Igbo, um dos três grupos mais expressivos numericamente na Nigéria, por meio da escrita literária de Flora Nwapa. Desconhecida no Brasil devido ao epistemicídio cristalizado em nossa produção de conhecimento, Flora Nwapa é reconhecida internacionalmente como uma das pioneiras no reconhecimento literário das mulheres africanas. Neste artigo, Tathiana Cassiano analisa personagens de seu livro: Eufuru, nos apresentando a Nigéria em meados do século XX não pela tradicional escrita da história, mas por outras relações de espaço-tempo-ser provenientes da cosmogonia Igbo, nas quais os colonialismos, as ancestralidades, os laços de linhagem, a educação e as relações sociais são analisados a partir do pensamento pós-colonial e decolonial, com destaque para o protagonismo das mulheres igbos.

A senegalesa Fatim Samb em: A experiência ilusória e a existência difícil das mulheres, analisa o impacto da migração de homens e jovens para as mulheres do Senegal a partir do romance “Celles qui attendent”, de Fatou Diome. A autora utiliza fontes etnográficas, históricas e literárias para tecer reflexões sobre o problema da emigração na África Ocidental, trazendo as vozes das mulheres que sofrem com a angústia de ver seu marido ou filho, ou ambos, não retornarem para casa.

Thuila Ferreira em: Sujeitas da própria história: influência, organização e movimentos de mulheres africanas, analisa a inserção política das mulheres em algumas sociedades africanas subsaarianas entre 1940 e 1990, a partir de fontes produzidas pelas próprias mulheres africanas. Nudez, magia, e rebeliões mostram as formas de agir e resistir encontradas por essas protagonistas, as quais potencializaram verdadeiras transformações em suas sociedades.

Marilda de Santana Silva nos brinda com reflexões e análises acerca da cantora Elisete Cardoso, a qual completaria cem anos em julho de 2020, por meio de cinco de suas canções. A autora do artigo, que também é cantora, apresenta trajetórias de mulheres negras e suas escrevivências (EVARISTO, 2006) por meio da música, possibilitando o reconhecimento e conhecimento profissional, intelectual e artístico dessas mulheres.

Ao apresentar a história da Dr.ª Carolina Maria de Azevedo, Jonê Carla Baião mobiliza histórias familiares como centrais na ressignificação da mulher negra e pobre no Brasil. Sua tia, tia Calu, somente conhecida nos hospitais e universidades, posto ter recebido o título de Doutora Honoras Causis pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, construiu um legado ao afirmar que “Se eles fazem mil, temos que fazer mil e um”. Assim, a autora apresenta densa reflexão acerca da mulher intelectual preta no Brasil.

Solange Pereira Rocha, Valéria Gomes Costa, Joceneide Cunha Santos e Iraneide Soares Silva discutem a trajetória histórica de grandes mulheres do século XIX: Catharina Mina (Maranhão), Thereza de Jesus de Souza (Pernambuco), Luiza (Paraíba) e Rozarida Maria do Sacramento (Bahia) são apresentadas como exemplos de mulheres negras que foram muito bem-sucedidas, ainda que pese o contexto da escravidão. As autoras analisam estas experiências, refletindo sobre suas capacidades de elaborar estratégias de sobrevivência, suas redes de solidariedade horizontais e verticais no período oitocentista.

Em “O farol que ilumina caminhos da Revolução moçambicana”: a imagem de Josina Muthemba Machel como instrumento Político (1975-1986), Júlia Tainá Monticeli Rocha apresenta por meio de diferentes documentos a presença feminina no imaginário popular de Moçambique durante o governo de Samora Moisés Machel, primeiro presidente de Moçambique e dos significativos militantes que aturaram na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) do período da luta anticolonial. Por meio de uma “política de memória” nos apresenta a presença feminina e de seu posicionamento político.

Ricardo Alexandre da Cruz traz a biografia de Eunice Prudente, a primeira professora da Faculdade de Direito da USP. Essa mulher de origem humilde enfrentou e resistiu a uma série de violências do entrecruzamento de opressões racistas e patriarcais da moderna-colonizada sociedade brasileira, conseguindo alcançar altas posições através de uma série de estratégias, analisadas pelo autor a partir dos conceitos proposto por Pierre Bourdieu.

Isadora Durgante Konzen, Karine de Souza Silva refletem sobre a participação das mulheres sul-africanas na luta contra o apartheid. As autoras apresentam uma análise de gênero das estruturas racistas e discutem o surgimento dos coletivos de mulheres e suas táticas de ativismo no processo de libertação nacional. Apresentam as características do “feminismo maternista” sul-africano e “maternidade combativa” como estratégia de luta.

Miléia Santos Almeida em “Mulheres negras sertanejas e suas relações afetivas sob a pena da lei” analisa processos criminais de defloramento, homicídio e lesões corporais protagonizados por mulheres pretas e pardas em Caetité, região do alto sertão da Bahia, nas primeiras décadas da República para refletir como essas experiências atravessam a existência feminina destoando-se dos padrões das classes dominantes.

Na seção “Experimentações”, Myriam Moise, em: Para uma nova genealogia da negritude, apresenta a participação das mulheres caribenhas na constituição do movimento: Negritude. Várias intelectuais da Martinica produziram escritos significativos, contudo seus nomes permanecem desconhecidos enquanto associamos automaticamente o movimento à Aimé Cessáire e Leopol Senghor. O texto traz o pensamento de Suzanne Roussi-Césaire e Paulette Nardal que refletiram sobre as questões da negritude na perspectiva de gênero, uma grande contribuição para se refletir sobre a invizibilização das mulheres nos diversos fóruns.

Na seção “Notas de Pesquisa” temos o texto Ocupando o terreno: revisitando “além dos significados de miranda: des/silenciando o ‘terreno demoníaco’ da mulher de calibã, Carole Boyce-Davies revisita o posfácio desta obra, publicada pela primeira vez em 1990, cujo texto em questão foi escrito por Sylvia Wynter. O livro figura como a primeira coletânea de textos voltados especificamente à pesquisas sobre escritoras afro-caribenhas. No artigo, a autora analisa o conceito de “terreno demoníaco” (demonic ground) do posfácio de Wynter, entendendo-o como uma ferramenta para pensar a presença/ausência da mulher negra e sua relação com a ontologia e episteme da modernidade-colonial; bem como as possibilidades de reconstrução de si por meio das outras formas de conhecer e ser abertas pelas práxis das mulheres que foram circunscritas no “terreno demoníaco”.

Agradecemos às p rofessoras Raissa Brescia dos Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Taciana Almeida Garrido de Resende (Instituto Federal de Minas Gerais) pela tradução destes dois últimos textos e professora Vanicléia Silva Santos pela mediação com as autoras, permitindo a melhor democratização do acesso ao pensamento destas duas intelectuais afro-caribenhas que são importantes referências internacionais.

Uma vez no centro deste dossiê esperamos que a mulher negra no mundo, de modo geral, e, particularmente no Brasil, ocupe os lugares ainda negados econômica, social e politicamente. Na relação entre passado e presente podemos perceber a força da mulher negra no desafio cotidiano de sobreviver, viver… Saberes antepassados, ainda presentes, contribuem no processo de laços de solidariedade percebidos em pequenos gestos, nas comunidades, nas favelas, onde elas são a maioria a chefiar famílias.

Sendo riqueza, como afirma o provérbio Igbo que inicia essa apresentação, a mulher negra se ressignificou e se ressignifica na construção de identidades e na manutenção de memórias e histórias. E, nesse processo, contribuiu e contribui na construção de diferentes sociedades, entrelaçando suas ancestralidades africanas, apropriadas e reinventadas nas diásporas do continente americano. Mulheres, mães, filhas, esposas, trabalhadoras suportaram e suportam ainda muitas violências contra seus corpos e subjetividades.

Herdaram ofícios múltiplos, mas não entre os que detêm status social ou econômico. E ainda assim, subverteram a ordem construída e imposta desde o período colonial, no caso brasileiro. Mulheres como Lélia Gonzalez, filha de indígena doméstica e ferroviário negro, se tornou professora e intelectual de referência na luta contra o racismo. Assim como ela, muitas outras mulheres… Refletir a relação entre as antepassadas africanas e afro-brasileiras ou afro-americanas, nos permite conhecer a origem de tal riqueza que compõe as potencialidades sócio-históricas das mulheres negras. Potencialidades de lutas, de re-existências, de movimento, de reinvenção da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas!

Notas

1. O banho Tiossane é uma tradição das mulheres Mandinga com poderes de cura para os úteros, restituindo a capacidade reprodutiva feminina.
2. Conheça mais sobre o projeto no Instagram @permakabadio. Para contribuir, visitem a @galeria_danielleite. Todo o valor arrecadado com a venda de fotografias é enviado integralmente ao vilarejo Kabadio, Casamance, Senegal.

Referências

AMADIUME, Ifi. Reinventing Africa: matriachy, religion and culture. London: Zed Book, 1997

AMADIUME, Ifi. Male daughters, female husbands. London: Palgrave Macmillan, 1987.

BELLO, Thomson Temitope. The Image of God and Image of Women in Africa: African Feminist Liberation Theology. In: FALOLA, Toyin; FWATSHAK, S.U. Beyond Tradition: African Women and Cultural Spaces. Trenton: Africa World Press, 2011. Pp.70-72.

BEY, Aziza Braithwaite. The Role of Women in Kemet, Dogon, Mayan and Tsalagi Societies. Journal of Pedagogy, Pluralism, and Practice: Vol. 3: Iss. 3, Article 2. https://digitalcommons.lesley.edu/jppp/vol3/iss3/2

COLLINS, Patricia Hill. O pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.

COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. African Women: a modern History. WestView Press, 1997.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, RJ, n. 92/93, 1988.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, nº09, p. 73-101 2008.

MONGES, Miriam Ma’At-Ka-Re. “Reflections on the Role of Female Deities and Queens in Ancient Kemet.” Journal of Black Studies, vol. 23, no. 4, 1993, pp. 561–570. JSTOR, www.jstor.org/stable/2784386..

OYEWÙMÍ, Oyèrónké. The invention of Women: making an African Sense of Western Gender Discourses. London/ Minneapolis: university of Minnesota Press, 1997.

VAN SERTIMA, Ivan. Black Women in Antiquity. (Revised Edition) Boston: Transaction Press, 1984

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 63, 2002.

Editoras

Profª Drª Marina Vieira de Carvalho: Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH/UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.

Profª Drª Iamara da Silva Viana: Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS/Paris (2016); Mestre em História Social UERJ/FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC/IH/UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC/PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA/PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH/IH/UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.


VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; CARVALHO, Marina Vieira de. O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e Améfricas Ladinas. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, p. 6-13, abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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O futuro do passado: Desafios para o Ensino da História nas escolas numa perspectiva global | Revista Transversos | 2021

Desde o final do século XIX, as «revoluções» historiográficas multiplicam-se. Convicções que se estabeleceram a seu tempo como consensos epistemológicos e metodológicos sobre as práticas de investigação neste domínio são substituídas por outras, também aparentemente eternas. Mais recentemente, a reflexão dos historiadores centrou-se mais nos recursos narrativos da escrita da história e nos esforços de descompartimentar, de desconstruir e de problematizar documentos, disciplinas e identidades, mas também sobre a pluralidade das áreas e escalas espaço-temporais a partir das quais se colocam os problemas de investigação. Estas mudanças, tal como as contínuas, são relativas e ocorrem num contexto cultural, econômico, político e social que afeta também o mundo da educação.

Neste contexto, quais desafios se colocam ao ensino escolar da história? Como aproveitar a situação para aumentar a motivação dos alunos, na classe de história, para os tornar mais intelectualmente autônomos e curiosos, para desenvolver o seu pensamento crítico, a sua conscientização? Leia Mais

O protagonismo das mulheres negras na escrita da história dos brasis / Revista Transversos / 2020

Ao olhar a arte da capa desta edição (MARIELLE CHRIST, Laucas [1], 2020), não pela aceleração da vida moderna, que sacrifica o tempo presente em nome de um futuro unidirecional, e sim por um tempo Sankofa [2] , que traz as histórias de ancestralidades sócio-históricas negadas pela nossa neurose cultural brasileira: o racismo (GONZALEZ, 1984), podemos sentir-pensar sobre a miríade de significados e potências entorno da vida de Marielle Franco, uma grande protagonista da história recente do Brasil. Elementos ocidentais se conectam a afro-diaspóricos, de(s)colonizando as artes plásticas e os significados pré-determinados entorno das representações das mulheres negras na sociedade brasileira. Afinal, ruminar sobre essa imagem é se confrontar com as sensações entorno de uma complexidade heterogênea de identidades políticas, culturais, sociais, econômicas, espirituais, filosóficas, sexuais e de gênero que não se encaixam no nosso capitalismo racista e patriarcal de todos os dias. É com as potências transgressoras e re-existentes de MARIELLE CHRIST que a Revista TransVersos tem o prazer de apresentar sua 20ª edição.

Número cuja chamada recebeu a maior quantidade de artigos da história da revista, o que é mais um dado comprobatório da demanda e relevância social da temática. Fato que, junto às dificuldades e desafios do contexto pandêmico, nos levou a dividi-la em duas edições para manter nosso compromisso ético-político e acadêmico de combate ao epistemicídio, pois só convidamos pareceristas engajades na produção de conhecimento que possa combater o racismo científico. Racismo este praticado, por exemplo, em pareceres às cegas em que especialistas impõem a colonização do saber ao desqualificar teorias e metodologias que não se apresentam como neutras e universais – como as dos pensamentos feministas negros e de(s)coloniais -, justamente, porque essa suposta imparcialidade do fazer científico esconde um lugar de poder que é a imposição homogeneizadora do sujeito homem-branco-ocidental. Exagero? Até hoje para se tornar historiador(a) no Brasil, os cânones vão exigir a leitura da clássica interpretação marxista de um muito importante sujeito homem-branco de escrita moderna-ocidental, Caio Prado Júnior, que nega não só as epistemologias afro-brasileiras, como a própria condição de sujeito humano à população negra. “Definitivamente, Caio Prado Júnior ‘detesta’ nossa gente’ (GONZALEZ, 1984: 235); no entanto, impossibilita que a resposta da intelectual Lélia Gonzalez a tal especialista seja considerada também como um clássico da historiografia ao não incluí-la nas referências canônicas da disciplina.

É por Lélia Gonzalez, é por Marilene Rosa Nogueira da Silva, mulher negra fundadora desta revista, e por inúmeras mulheres negras que sempre protagonizaram e protagonizam outras histórias dos Brasis, silenciadas pela historiografia hegemônica, que a Revista TransVersos apresenta a sua atual edição.

Autodefinções, oralidades, ancestralidades e de(s)colonialidades de corpos e epistêmicas entram para a história da construção da cidade de Florianópolis no artigo de Carol Lima de Carvalho. A autora nos apresenta os desdobramentos do racismo estrutural, tão invisibilizado pela tradicional historiografia brasileira, por meio de uma análise interseccional da vida de mulheres que atuaram na ocupação e construção de espaços culturais negros na cidade. Resistências ao entrecruzamento das opressões de raça, gênero e classe nos são apresentadas por meio das histórias dessas sujeitas protagonistas da história de Florianópolis.

Como seria a história do cotidiano do Rio de Janeiro por meio das narrativas de uma mulher negra líder de comunidade da zona norte da cidade? Esta é a proposta do artigo de Maria Angélica Zubaran e Denise Bock de Andrade, no qual o conceito de escrevivências de Conceição Evaristo se transforma em operador metodológico na (re)construção da história do Morro do Andaraí, por meio das narrativas autobiográficas de Jurema Batista. As autoras nos apresentam alguns dos efeitos das ressignificações de identidades sócio-históricas de “raça” e “gênero” tecidas por mulheres negras desta comunidade em suas buscas por constituições de si positivas, relacionadas diretamente com a luta por conquista de direitos à comunidade.

Cláudia Gomes Cruz, Ana Lúcia da Silva Raia e Mônica Regina Ferreira Lins contribuem para as análises e discussões sobre as escritas de Maria Carolina de Jesus como decoloniais ao romper com a colonização do saber em sua vida e escrita. Por meio das obras: Quarto de Despejo: diário de uma favelada e Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, problematizam a intelectualidade de Maria Carolina de Jesus, entrecruzando perspectivas dos feminismos negros e feminismos decoloniais.

Beatriz do Nascimento Preche, em: O imoral escândalo da prostituição de escravas: pensando a prostituição a partir das mulheres negras no Rio de Janeiro (1871), apresenta uma significativa renovação historiográfica sobre o tema ao romper com o tradicional destaque dado a prostituição de europeias no período em destaque. O artigo problematiza a tensão não apenas de gênero, como também de raça que entrecruzam as tecnologias da moderna colonialidade de gênero (LUGONES, 2008). As autoras analisam transformações e continuidades efetivadas pela interferência do público em uma relação até então de domínio privado.

O apagamento de intelectuais negras – epistemicídio- é constante no Brasil, bem perceptível na vida de Virgínia Bicudo, que Rosa Coutinho Schechter e Paulo Eduardo Viana Vidal aqui retiram do silenciamento. Na década de 1950, Virgínia Bicudo, socióloga e psicanalista negra conduziu profundas pesquisas sobre racismo no Brasil, nas quais afirma a cor da pele como obstáculo para a ascensão social, pois apenas a ascensão econômica não era suficiente para demover os preconceitos em relação aos negros. Divergindo assim da “democracia racial”, amplamente aceita pela intelectualidade da época.

Clécia Aquino Queiroz e Vítor Aquino Queiroz apresentam a trajetória de vida de cinco sambadeiras, as quais atuaram para dar continuidade à tradição transmitida por seus antepassados. Os autores mostram como o samba proporciona conexão com ancestralidades africanas, significado, para estas mulheres, como um “lugar de alento, onde as dimensões corporais e espirituais se complementam”, tomado, assim, como elemento vital para os seus enfrentamentos diários. O texto contribuiu para os estudos sobre rito e performance, problematizando o Samba de Roda como potencializador de empoderamentos a estas “donas”, as quais exercem importantes papéis na produção de realidades nas comunidades negras do Recôncavo baiano, com atenção especial ao papel fundamental das mulheres na organização do ritual. Luciana Falcão Lessa discute os efeitos da colonização, da escravidão e do racismo na subjetividade de mulheres negras. A pesquisa multidisciplinar traz os principais conceitos e teorias a respeito dos sentimentos partilhados pelas integrantes da Rede de Mulheres Negras da Bahia, a partir de suas experiências cotidianas, familiares, afetivas e políticas. A autora apresenta os efeitos que a memória da escravidão e o racismo produziram nas experiências subjetivas destas mulheres e busca entender esse processo a fim de discutir se sua reversão é possível, visibilizando estratégias para o enfrentamento do racismo e fortalecimento da identidade e autoestima dessas sujeitas racializadas. O texto valoriza a subjetividade e afetividade, trazendo as experiências vividas e as emoções como objeto de estudo da História, a partir dos principais referenciais teóricos dos feminismos negros e estudos decoloniais.

Lucymara da Silva Carvalho, Maria Aparecida Prazeres Sanches, em diálogo com estudos historiográficos, sociológicos, filosóficos e do pensamento feminista negro, analisam as inquietações, angústias e alegrias sentidas por mulheres negras retintas. A partir dos conceitos de “escrevivências” e “corpo-território”, entendem que a escrita de si para as mulheres negras se constitui como um ato de desobediência e insubordinação, proporcionando um movimento de encontro, reconhecimento e superação. O texto mostra como o entrecruzamento das opressões de gênero e raça impõem limites na vivência afetiva e sexual das mulheres negras e traz o autoamor como uma fonte de cura, bem como analisam a escrita negra e feminina como ferramentas de empoderamento.

Sirlene Ribeiro Alves Correio nos apresenta Cacilda Francioni de Souza, mulher preta que viveu dois tempos: o da escravidão e o do pós-abolição. Por meio de suas reflexões, a autora nos convida a refletir sobre o apagamento sofrido por esta mulher pela historiografia. Sua trajetória inclui ações abolicionistas, produção de livros didáticos, literários e docência, demarcando o lugar de Cacilda como intelectual negra numa sociedade marcada pelo patriarcado racista.

A autora Juçara Mello nos brinda com o protagonismo de mulheres negras no contexto da cultura fabril nos anos 1950-1960, em Santo Aleixo, distrito de Magé, no Rio de Janeiro. Refletindo acerca da invisibilidade legada pela historiografia à mulher negra operária, a autora apresenta olhar peculiar revisitando histórias marcadas pela interseccionalidade. O encontro entre duas mulheres negras – Lúcia de Souza, operária e Ruth Telles, professora – assinala, “a projeção de uma representatividade determinante na construção da identidade étnico racial”.

Roberta Santos Fumero e Veronica Cunha Correio, na sessão: Experimentações, refletem a partir de diferentes intelectuais negras – brasileiras e estrangeiras – a trajetória de mulheres negras moradoras da Baixada Fluminense no Estado do Rio de Janeiro. O modo como essas mulheres, por meio da escrita transformam seus mundos, suas realidades, suas perspectivas concretizaram-se por meio da mobilização política ao criarem um coletivo, o Mulheres do Ler.

Por último, mas não menos relevante, na seção: Artigos livres, Roberto Augusto A. Pereira Correio apresenta a “Companhia Brasiliana e a constituição do Teatro Folclórico no Brasil”, entre os anos de 1949 e 1951. O autor analisa o protagonismo do grupo que atuou entre intelectuais e jornalistas. Como tema central, tais grupos refletiam sobre a identidade nacional brasileira e sua relação dialógica com a chamada cultura negra e popular.

O presente número da Transversos vem, portanto, produzir visibilidade historiográfica as mulheres negras da nossa história, entendidas como sujeitas da transformação social e da produção de realidades e sentidos, capazes de possibilitar à luta contra a opressão e violência vivenciadas há séculos nestes Brasis. Os artigos aqui reunidos não apenas denunciam epistemicídios e silenciamentos operados sobre as práxis das mulheres negras, mas trazem também, em seu conjunto, novas perspectivas teórico-metodológicas, que reconhecem os sentimentos e aflições da(os)s sujeita(o)s histórica(o)s.

As leitoras e leitores encontrarão aqui outras formas de produzir historiografia, de construir ciências humanas, em que as experiências interseccionais (CRENSHAW, 2002) das mulheres negras atravessam e significam as realidades sócio-históricas. As protagonistas negras emocionam e encantam com suas dores e conquistas e, através de suas trajetórias, podemos identificar diversas possibilidades de re-existências ao longo da história deste país. Apresentamo-las em suas potências de ação e transformação, as quais, individual ou coletivamente, carregam a possibilidade de alterar as subalternizações que as tecnologias de poder do patriarcado branco colonial insistem em condicioná-las. Esperançamos que as escritas aqui presentes reguem as sementes plantadas pela agora ancestral Marielle Franco, em seus ensinamentos potencializadores da necessária esperança. Não a que se prende na imobilização da espera e sim como pensada por Paulo Freire (2002), a qual permite compreender a história não como pré-determinada, mas sim como contingencial porque aberta a transformação construída por diferentes sujeita(os). Neste dossiê, destacamos as possibilidades de construção de uma sociedade contrária a colonialidade do capitalismo racista e patriarcal, esperançando o florescer de temporalidades mais justas e humanas para todes.

Notas

  1. Contato: @daniellaucas
  2. “O ideograma Sankofa pertence a um conjunto de símbolos gráficos de origem akan chamado adinkra […] significa ‘voltar e apanhar de novo aquilo que ficou para trás’” (NASCIMENTO, 2008: 31).

Referências

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171- 188, jan. 2002.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, p. 223-244, 1984.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, nº09, p. 73-101 2008.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.

Marina Vieira de Carvalho – Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH / UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI / UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.

Iamara da Silva Viana – Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS / Paris (2016); Mestre em História Social UERJ / FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC / IH / UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC / PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA / PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH / IH / UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.

Mariana Bracks – Mestre e doutora em história pela USP, com estágio pós-doutoral na UFMG. (Futura) Professora de história da África na Universidade Federal de Sergipe. Autora dos livros Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola (Mazza, 2015), Ginga de Angola: memórias e representações da Rainha guerreira na diáspora (Brazil Publishing, 2019) e do livro em quadrinhos Rainha Ginga guerreira de Angola (Ancestre, 2016).


CARVALHO, Marina Vieira de; VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; MBANDI, Nzinga. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.20, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Cinema e território na história audiovisual da América Latina, África e diásporas / Revista Transversos / 2020

O cinema mantém relação com o território desde o berço, se for considerada apenas a dimensão mais basal de territorialidade – o espaço. A fotografia, que lhe antecedeu, já era capaz de fixar as distâncias em imagens, mas o cinema inaugurou a possibilidade de representar sua ocupação. Entre as primeiras fitas produzidas no século XIX, são comuns as cenas apresentando pessoas e objetos deslocando-se entre as margens estáticas da câmera e da tela, apossando-se do vazio. Em uma espécie de arqueologia do cinema, Vanessa R. Schwartz explora o gosto do público pela realidade em Paris, no fim-de-século. Entre as práticas analisadas pela autora, estava o apreço de espectadoras e espectadores pelos panoramas, que consistiam em montagens fotográficas conectadas de modo a gerar a impressão de uma vista “real” de uma paisagem, efeito propiciado por uma série de elementos técnicos, tais como iluminação, ruídos e movimento. Embora o primeiro cinema não tenha correspondido logo a esse desejo, seus desdobramentos iriam se ocupar em dar a ver e interpretar paisagens, por meio de uma flânerie (perambulação despreocupada) virtual:

Não é mera coincidência que, além do interesse das pessoas pela realidade, as atividades descritas [neste texto] se deram com os grandes grupos de pessoas em cuja mobilidade residiam alguns dos efeitos realistas dos espetáculos. Essas práticas revelam que a flânerie não foi simplesmente privilégio do homem burguês, mas uma atividade cultural para todos os que participavam da vida parisiense. (SCHWARTZ, 2001: p. 436)

Esse traço incipiente seria aprimorado ao longo do século XX, conforme aumentavam os recursos narrativos à disposição dessa novidade tecnológica, que se consolidava como indústria e arte. Iniciaram-se as representações qualitativas do espaço – as cidades e, mais tarde, as áreas rurais, passaram a protagonizar películas e a propiciar um debate sobre o direito de ocupá-las; alguns países começaram a incorporar o cinema como parte de seus patrimônios culturais, formando-se a ideia de cinemas nacionais; povos sem território usaram o cinema na luta pela ocupação de um e a guerra de fronteiras se tornou tema de filmes; no século XXI, a busca por representações diferenciadas de um mesmo território, de ângulos inexplorados ou interditos, ganhou impulso com a democratização dos meios de produção de imagens.

Seguindo as observações de Dolores Hayden (2014), a palavra “lugar” é carregada de sentidos e, entre eles, está a referenciação do pertencimento ao mundo social, o que pode ser notado em expressões corriqueiras, como “mostrar a alguém o seu lugar” ou “o lugar da mulher”. Esse uso social do termo lhe dá uma história política, que pode sem esforço ser associada aos territórios – pertencer ou não a um lugar é matéria de formação identitária. Nesse percurso, o cinema habitou territórios contínuos ou multisituados, como no cinema de diáspora e de exílio. Territórios fractais, nos quais noções como cidadão e estrangeiro não se sustentam mais. E não apenas de espaços geográficos fala a longa relação entre cinema e território. Como no filme de Isaac Julien (Territories, 1984), territórios também dizem respeito a raça, classe e sexualidade, traçando uma geografia de terras e de corpos.

Ao longo da história, cinema e território seguem refazendo seus mapas, das imagens coloniais usadas como instrumentos de dominação às novas cenas realizadas por cineastas indígenas e africanos. Em terras latino-americanas, a relação com o território inaugurada pelo Cinema Novo / Nuevo Cine se desdobra em cinematografias diversas, especialmente as que são feitas nas margens – Cinema Negro, Indígena, Periférico. Talvez seja possível traçar rotas que levem do Pátio (1959) baiano de Glauber ao Quintal (2015) de periferia mineira de André Novais de Oliveira. De Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, a Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. De memória do subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea, a Nostalgia da luz (2010), de Patricio Guzmán, passando por sertões, desertos, becos, vielas, quebradas e favelas.

No cinema português, Pedro Costa destaca as vivências periféricas de Vitalina Varela e Ventura, cabo-verdianos que deambulam por Lisboa, outrora capital de um império colonial, enquanto Filipa César trabalha o arquivo fílmico da Guiné-Bissau como território identitário de um dos mais singulares processos de descolonização em África. Cineastas afrodescendentes, como o santomense Silas Tiny ou os guineenses Vanessa Fernandes e Welket Bungué, enfatizam a auto- representação na revisão da história e memória do colonialismo. Noutro sentido, Salomé Lamas trabalha de forma concêntrica a ideia de fronteira como mutação humana imposta aos territórios, nomeadamente o complexo mapa geo-político do Leste europeu após o colapso soviético (Extinction, 2018), as explorações mineiras nas cordilheiras andinas de La Rinconada e Cerro Lunar (El Dorado XXI, 2016), ou a floresta de concreto paulistana (Horizon Noziroh, 2017).

Em um momento em que vivemos as consequências de incapacidade histórica (branca ocidental) de compreender e de reverter o estrago que fizemos e seguimos fazendo na natureza, em nós mesmos e no outro, nessa barbárie operada desde a Modernidade e que é chamada de civilização, progresso e desenvolvimento, talvez seja o cinema a arte que possui mais recursos para realizar a quebra que Denise Ferreira da Silva vem experimentando a partir da idéia de “po-ética”: aquilo que vai contra o tempo linear que separa, classifica e ordena. A po-ética opera por composição e decomposição, juntando e compondo uma imagem. O cinema como o que nos retira do tempo linear ao colocar passado, presente e futuro simultaneamente. Histórias feitas são refeitas, denunciadas. Experiências de trauma, violência, amor, cuidado e cura podem ser compartilhadas e trabalhadas nos complexos processos de construção e afirmação de identidade, que passam tanto pela memória, quanto pela criação.

A po-ética do cinema é poética, é ética, é política. No jogo co(i)mplicado entre imagens, narrativas e sons, o cinema pode escolher fazer da tela um território para tudo o que a história deixou sem arquivos e sem vestígios, pois um filme é capaz de mobilizar sensações e experiências e de ir além, contribuindo para que novos sentidos históricos com relação a corpos e lugares sejam instituídos.

Para que novos sentidos históricos sejam instituídos é preciso multiplicar e garantir a presença de muitos e variados territórios, compondo o que a maioria dos espectadores entendem por “cinema”, para além das produções euro-americanas. Isso implica não apenas em um cinema que traga diferentes territórios e seus povos, modos de vida e perspectivas como tema, mas também a territorialização de recursos financeiros para fomentar produções de grupos situados à margem dos circuitos mainstream (que existem não apenas fora, mas também dentro mesmo do sul global) e sua distribuição, para que possam deixar cada vez mais de ser apenas um encarte, um suplemento, uma edição especial ou uma breve menção em festivais, cursos de cinema e na mídia.

Não poderíamos deixar de mencionar que este dossiê foi organizado ao longo da pandemia de Covid-19, na qual a relação entre desigualdade e territórios se tornou ainda mais evidente. A vulnerabilidade extrema de territórios quilombolas, indígenas, campesinos, de favelas e bairros proletários, constatada mesmo em um cenário de subnotificação de casos de pessoas infectadas e de mortes, expõe mais do que nunca as consequências das políticas de segregação, abandono, expropriação, exploração e extermínio da população afro-pindorâmica.

A pandemia tornou ainda mais explícito um cenário no qual uma parte hiper privilegiada da população pode manter seu estilo de vida, sua segurança “em casa” ou mesmo seus deslocamentos, valendo-se de e colocando em risco os mesmos corpos que sempre foram usados para garantir sua sobrevivência e conforto, enquanto esses últimos lidam com essa nova ameaça sem que as antigas cessem ou mesmo diminuam. Os territórios das favelas e periferias seguem perdendo o sono, a saúde e a vida (majoritariamente as vidas negras) em operações policiais, terras indígenas e quilombolas seguem sofrendo desapropriação ou sendo ameaçadas, assentamentos rurais são removidos. Reverter esse quadro envolve que a voz e a câmera estejam nas mãos desses povos e daqueles que a eles se juntam na luta por um mundo igual e justo. Segue a longa história entre cinema e território – passados, presentes e futuros; utópicos e distópicos; simbólicos e reais – fazendo-se presente mais uma vez.

Nosso dossiê explora o tema “Cinema e Território” em perspectiva transversal, entendendo, inclusive, que a própria ideia de território possa ser desfeita e refeita a partir de outras cosmovisões.

No seu texto, Tatiana Hora Alves de Lima investiga o imaginário utópico da construção de Brasília nos cinejornais financiados pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), empresa pública responsável pela construção e controle da cidade, abordando os encadeamentos entre tempo histórico e tempo narrativo nas mitologias do bandeirantismo e do “descobrimento” atualizadas nesses filmes, vinculadas aos ideais da refundação e do desbravamento do país e sob a égide do progresso. Nesses cinejornais, as menções a acontecimentos históricos situados no passado (a exemplo do “descobrimento” e do bandeirantismo) são sempre articuladas a referências ao futuro, num movimento constante entre historicizar e desistoricizar, havendo uma clara distinção entre sujeito e objeto. Há uma associação entre o olhar e o pensamento, em que os personagens capazes de pensar e criar são aqueles que podem assumir o ponto de vista da câmera, a exemplo do presidente Juscelino Kubitschek, o arquiteto Oscar Niemeyer, ou o urbanista Lúcio Costa, enquanto os operários são corpos unicamente engajados na ação física e numa relação de simbiose com as máquinas, como se a mão de obra compusesse o maquinário da construção da nova capital.

Wallace Andrioli Guedes, em A vida provisória: um conto de três cidades no pós-golpe de 1964, aborda o filme A vida provisória (Maurício Gomes Leite, 1968), realizado no imediato pós-golpe de 1964. O foco do artigo está no modo como o filme utiliza os espaços de três grandes cidades brasileiras – Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília – na narrativa, construindo um olhar melancólico para o contexto em que foi realizado. Além disso, explora os recursos narrativos mobilizados pelo filme para caracterizar cada um desses territórios, representativos de qualidades políticas (entendidas numa acepção ampla, que abarca a micropolítica) definidora do momento histórico enfrentado pelo país no contexto da criação da obra.

Amanda Danelli Costa, em A “Bahia de Todos os Santos” de Jorge Amado e Maurice Capovilla: na encruzilhada entre guia e documentário, realiza análise comparada de Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios de Salvador, publicado em 1945 por Jorge Amado, e o documentário Bahia de Todos os Santos realizado por Maurice Capovilla à luz do guia, e exibido no programa Globo Repórter, da Rede Globo, em 1974. A abordagem demonstra como a crueza das condições de vida do povo baiano, e o encantamento de sua múltipla cultura urbana, são observadas de forma engajada pelo romancista e pelo diretor. Ainda, explora o modo como essa “baianidade” é entendida por ambos como sinônimo de brasilidade, tomando o território urbano e suas especificidades como um dos loci definidores da nacionalidade.

Pode a corporalidade expressar territorialidades e reterritorializações? O artigo Construção de Territorialidades Ancestrais por Meio do Samba em Aniceto do Império: em dia de alforria? de Fábio José Paz Rosa, transita por essa pergunta, regido pelo olhar de Zózimo Bulbul em seu filme Aniceto do Império (1981). O texto nos lembra como o cineasta, já em Alma no olho, seu primeiro curtametragem, realizado em 1973, “demonstra uma nova e potente estética ao apresentar os sujeitos negros livres em territórios africanos e sem os subjugamentos corpóreos, históricos e sociais nos processos pós-abolicionistas, por meio da mise en scène”. Busca então processos parecidos que evidenciaram também em Aniceto do Império a corporeidade como estética que referencial o passado para refazer o presente a partir de ancestralidades africanas e afro-brasileiras. Através da corporeidade e musicalidade de Aniceto, testemunhamos a favelização do Rio de Janeiro, mas também os afetos, o trabalho e a religião como espaços da luta entre liberdade e opressão. Pelo olhar e genialidade de Bulbul, a vida e obra de Aniceto do Império nos convida a revisitar Madureira, região do Porto e Morro da Serrinha, dando a eles novos sentidos e materialidade a partir da presença e herança negra.

Utilizando o método comparativo para traçar relações entre os modos de representação do trabalhador mexicano, o artigo Mãos à Obra: a Representação do Trabalhador Mexicano nos Estados Unidos em Salt of the Earth e Espaldas Mojadas, de Maurício de Bragança, nos guia pelo universo de dois filmes cronologicamente próximos e ideológica e simbolicamente separados por uma linha fronteiriça, que separa mais do que territórios geográficos (uma produção é mexicana e a outra, estadunidense). O contexto histórico-social do trabalhador mexicano nos Estados Unidos vai sendo delineado em uma retrospectiva inversa, dos tempos atuais até os anos de 1950, época de produção dos filmes. No trajeto por narrativas, imagens e canções dos filme Salt of the Earth, dirigido por Herbert J. Biberman em 1954, e de Espaldas Mojadas, dirigido por Alejandro Galindo em 1955, enriquecidos por dados oficiais e pela escolha de uma bibliografia latino-americana, emergem as distinções éticas que regem e sustentam cada olhar.

Em Corpos pós-coloniais e desterritorialização: gestos e movimentos afetivos em Bom trabalho (Claire Denis, 1999), Mariana Cunha e Catarina Andrade propõem uma análise do filme de Claire Denis, cuja narrativa se concentra nas memórias do sargento Galoup, expulso da Legião Francesa em Djibouti, e que retrata a ocupação colonial enquanto alerta para a sensorialidade dos corpos dos soldados da Legião através de imagens ritualísticas desses corpos nos espaços e na paisagem desértica de Djibouti. Mariana e Catarina refletem sobre a forma como o filme compõe os espaços e os corpos a partir da noção de desterritorialização em uma ampla acepção – ou seja, no sentido de deslocamento físico, mas também no sentido trazido por Gilles Deleuze (1983) em relação à imagem-percepção e à imagem-afecção. As autoras concluem ainda que as escolhas estéticas e narrativas evidenciam a tendência de Denis a priorizar os gestos e as performances dos corpos, assim como a inscrição desses corpos no espaço pós-colonial, em detrimento de uma narrativa pautada na causalidade histórica que pudesse estabelecer uma relação simbólica direta entre a violência e o trauma das identidades pós-coloniais.

Michelle Sales e Ana Cristina Pereira oferecem, em Contracinema: Mulher e Território nos filmes Yvonne Kane (2015), de Margarida Cardoso, e Praça, Paris (2017), de Lucia Murat, uma reflexão sobre o “cinema de mulheres” como “contracinema”, numa proposta de analisar o olhar da mulher branca sobre a “outra”, no caso, a mulher negra. Nos dois filmes, produzidos nos dois lados do Atlântico, as autoras analisam a relação construída entre a subjetividade feminina das personagens em relação com a paisagem / território (seja em África ou no Brasil), que parece sublinhar uma tensão racial entre a mulher branca e a mulher negra, partindo de um olhar analítico construído a partir da teoria e crítica feminista de cinema e do feminismo interseccional.

Alexsandro de Sousa e Silva, em Cinema e transterritorialidade: uma entrevista com Suleimane Biai (Guiné-Bissau), conversa com o cineasta, formado em direção de cinema na Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV), de San Antonio de los Baños (Cuba) e que trabalha no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual (INCA), na Guiné-Bissau. A entrevista explora a multiterritorialidade desse trabalhador do cinema em terras africanas, em relação com os legados sociais herdados do período de colonização europeia sobre a África. A pluralidade dos territórios que atravessam e são (foram) atravessados por Suleimane podem ser notados nas viagem físicas possibilitadas por sua formação e atuação profissional, e nas suas parcerias, como aquela empreendida com a artista visual portuguesa Filipa César, responsável pelo processo de digitalização do patrimônio fílmico do país, no projeto Luta ca caba inda (“A luta ainda não acabou”, em crioulo).

Na seção Experimentação, Clementino Luiz de Jesus Junior, Celso Sánchez e Dulce Maria Pereira narram o processo de realização do filme A Padroeira – Por um direito ao olhar, de Clementino Junior. Contam como o cineasta, que viaja para Mariana – MG com duas missões audiovisuais iniciais, acaba sendo surpreendido por um pedido local que se desdobra na obra que dá título ao artigo. O primeiro objetivo seria filmar depoimentos de atingidos pelo desastre criminoso da Barragem de Fundão e imagens do derramamento “de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração ainda presentes mesmo três anos depois, do derramamento de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração”. O segundo seria promover uma formação audiovisual para os atingidos da Barragem de Fundão, na intenção de buscar formas possíveis para uma educação ambiental emancipatória a partir de uma pedagogia que não se separasse do território. Ao chegar no município, Clementino recebe o pedido de Luzia, uma ativista local, o para que filme a festa da padroeira na igreja de Santo Antônio, única edificação que resistiu à “enchente de lama que praticamente extinguiu a localidade do mapa”. O resultado é o filme A Padroeira, que, em uma paisagem coberta pela lama e pela impunidade, retrata a resistência e a fé de um povo compulsoriamente deslocado de seu território.

Na seção de artigos livres, Mariana Queen Ifeyinweze Nwabasili, em Carnaval, carnavalização e discursos de representação negra no Brasil na construção estética e narrativa do filme Xica da Silva analisa a película de Cacá Diegues (1976) e seu contexto de criação, considerando a influência da literatura ficcional e científica sobre relações raciais e de gênero. O conceito de carnavalização, conforme trabalhado por Mikhail Bakhtin, tem papel central em sua abordagem. A autora mapeia os modos como Chica / Xica da Silva foi reelaborada pela literatura, desfiles de escolas de samba e pelo cinema, demonstrando o quanto a representação das pessoas negras (em especial, as mulheres) é devedora dessa trajetória seguida pela personagem.

Por fim, agradecemos às autoras e autores pela confiança e a todos e todas pareceristas pela valiosa colaboração, que muito contribuíram para garantir a qualidade das publicações. Esperamos que a leitura dos artigos deste número da Revista TransVersos contribua para a ampliação de debates e pesquisas sobre a exploração audiovisual de múltiplos territórios. Que o contato com esses textos possa incentivar leitores e leitoras a se lançar à busca de si, por meio de filmes e territórios.

Referências

HAYDEN, Dolores. “Urban Landscape History”. In: Jack Gieseking et al (eds.). The people, place and space reader. New York: Routledge, 2014.

FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a Black Feminist Poethics: The Quest(ion) of Blackness Toward the End of the World. The Black Scholar, Vol. 44, No. 2, States of Black Studies (Summer 2014), pp. 81-97.

MERCER, Kobena. Travel and See. Black Diaspora Art Practices Since the 1980s. London: Duke University Press. 2016.

NAFICY, Hamid. An Accented Cinema. Exilic and Diasporic Filmmaking. New Jersey: Princeton University Press, 2001.

ROSÁRIO, Filipa; VILLARMEA ÁLVAREZ, Iván (eds.). New Approaches to Cinematic Space. London: Routledge, 2018.

SCHWARTZ, Vanessa R. “O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século”. In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2011.

Paulo Cunha – Professor Auxiliar no Departamento de Artes da Universidade de Beira Interior, na qual é diretor do Mestrado em Cinema. Membro do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX da Universidade de Coimbra. É Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, com uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Actualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Investigador do projeto “O Império colonial português e a cultura popular urbana: visões comparativas da metrópole e das colónias (1945-1974)”, desenvolvido no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com financiamento da FCT (PTDC / CPC-CMP / 2661 / 2014). Coordenador Editorial da Aniki: Portuguese Journal of the Moving Image (2018-2020), do Seminário Temático Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos SOCINE (2016- 2019), do Grupo de Trabalho Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da AIM (2015-). Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Cineclubes (2018-2020) e programador do Cineclube de Guimarães e do festival internacional de cinema Curtas Vila do Conde. Conferencista convidado em diversas conferências e palestras, nomeadamente: Universidade de São Paulo (USP, Brasil), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, Brasil), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil), Universidade Federal do Paraná (UFPR, Brasil), Universidade do Estado do Amazonas (UEA, Brasil), Universidade Estadual do Maranhão (UEMA, Brasil), Universidade Federal do Tocantins (UFT, Brasil), Universidad de Salamanca (USal, Espanha), Università degli Studi di Firenze (Itália), entre outras.

Liliane Leroux – Procientista na área de Artes (Faperj / UERJ). Pós- doutorado em Cultura em Periferias Urbanas – UERJ (bolsa Capes). Graduada em Ciências Sociais (Sociologia) pelo IFCS / Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (bolsa Capes). Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tema de Pesquisa: Cinema em periferias urbanas, Criadora e co-coordenadora do Núcleo de Estudos Visuais em Periferias Urbanas – NuVISU (CNPq / UERJ) e do projeto Caxias du Cinéma (FEBF / UERJ). Co-coordenadora do GT Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da AIM – Associação de Investigadores em Imagem em Movimento. Foi co-coordenadora do ST Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da Socine (2017-2019). Ampla atuação profissional em avaliação e pesquisa de projetos culturais (foco em cultura, audiovisual e novas tecnologias). Atuação como avaliadora do Programa Cultura Viva (MinC), parecerista da Secretaria Estadual de Cultura (Cultura digital e audiovisual). Consultora em projetos do INEP e SEEDUC (RJ) e pesquisadora da UNESCO. Atuou em projetos de telecentros comunitários em periferias do Brasil, África e países da América-latina. Membro da AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento de da International Sociological Association – ISA (WG – Visual Sociology e TG Senses and Society). Membro da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Co-diretora (com Rodrigo Dutra) do filme Armanda (2017).

Carlos Eduardo Pinto de Pinto – Professor adjunto do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em que atuou como Subchefe entre 2018 e 2019, sendo professor permanente do Programa de Pós- Graduação em História (PPGH-UERJ). Possui bacharelado e licenciatura em História pela UERJ (2001), mestrado em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2005) e Doutorado em História pela UFF (2013). Usufruiu, no primeiro semestre de 2012, de Bolsa CAPES de Doutorado Sanduíche no Exterior, com atividades na Université Paris VIII e no Laboratoire d’Histoire Visuelle Contemporaine (Lhivc), vinculado à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades / UERJ (NUBHES), do Laboratório de História Oral e Imagem / UFF (LABHOI) e do Núcleo de Estudos Visuais em Periferias Urbanas / FEBF-UERJ (NuVisu). É membro do GT Imagem, Cultura Visual e História da Anpuh-Rio e do GT Audiovisual, Ensino de História e Humanidades. Tem experiência na área de História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: história do Rio de Janeiro, cidades, arquitetura, representações, imagens, cinema, Cinema Novo, Chanchadas, subjetividades. É autor de romances, contos e poemas, utilizando o nome literário EDUARDO CHACON. Em 2019, publicou o romance A perna de Sarah Bernhardt, pelo Kindle / Amazon (e-book).


CUNHA, Paulo; LEROUX, Liliane; PINTO, Carlos Eduardo de. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.19, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia e ensino de história em tempos de crise democrática / Revista Transversos / 2020

Em outras palavras, na representação da felicidade vibra

conjuntamente, inalienável, a (representação) da redenção. Com a

representação do passado, que a História toma por sua causa, passa-se o

mesmo.

Walter Benjamin

Um primeiro elemento do que podemos chamar de uma crise contemporânea da disciplina história e, neste caso específico, da teoria da história, da história da historiografia e do ensino de história está relacionado à temporalidade.

O que precisamos lembrar, antes de qualquer reflexão sobre a história, a teoria da história, a história da historiografia e o ensino de história hoje, é que a temporalidade no interior e para a qual a disciplina se constituiu, trazia desafios significativos, provocando, por exemplo, a perda de sua imediatidade, de seu poder de determinação mais transcendental, ou como Rüsen escreveu, trata-se de uma disciplina que não estaria mais “legitimada pela sua mera existência”. (RÜSEN, 2011: p. 27)

O que precisamos sublinhar aqui é que a constituição da disciplina – e com ela a teoria, a história da historiografia e o ensino de história – se torna possível (e necessária) no interior de uma temporalidade marcada pelo que Koselleck chama de “aceleração do tempo”. Ela se constitui, por um lado, a partir da redução do “espaço de experiência” (Erfahrungsraum) e, por outro, do alargamento do “horizonte de expectativas” (Erwartungshorizont), ou ainda em outras palavras, da redução da confiança em passados e da acentuação da estratégia antropológica que é a da projeção. (Cf. KOSELLECK, 1989)

O que precisamos reter aqui é que se, por um lado, a modernidade se constituiu como um espaço marcado pela perda da imediatidade dos sentidos – Deus e Bíblia –, por uma espécie de multiplicação de mundos ou regiões possíveis, organizadas, por sua vez, com base em determinados sentidos, significados e afetos, ela também assiste, por outro lado, a uma disputa entre estas regiões no que diz respeito à possibilidade de que uma delas pudesse se generalizar e (re)ocupar um espaço mais central (transcendental).

A modernidade (mais propriamente ocidental) pode ser compreendida exatamente como uma temporalidade (um horizonte histórico) marcada pela ampliação considerável de experiências e perspectivas que até então eram pouco conhecidas, de modo que o que temos é o aparecimento de outras possibilidades e limites que precisariam ser experimentados e tematizados. A ideia aqui é justamente a de que a partir dessa ampliação, o conjunto de sentidos, significados e afetos reunidos em torno das noções de Deus e Bíblia deixou de ser suficiente (adequado, sachlichkeit) para responder de forma mais ou menos razoável àquela realidade (efetiva, Wirklichkeit).

O que se dá, então, é que boa parte ou mesmo a maior parte dos homens e mulheres (no ocidente) procuram se dedicar ao exercício existencial-intelectual (experiência + atividade do aparato intelectivo: da imaginação e do entendimento em termos kantianos) que é o de projetar, a partir do presente (também em diálogo com passados, neste caso menos evidentes ou disponíveis), outros futuros possíveis, outras combinações constituídas exatamente por aquelas experiências e perspectivas que de alguma forma apareceram para e no ocidente. O que significa, assim, menos passados (ao menos aqueles mais evidentes, reunidos em torno das noções de Deus e Bíblia) e mais futuros, ou ainda, menos tradição e mais prospecção. O ocidente acaba se dedicando mais à estratégia antropológica de imaginar (ou sonhar), pensar e, então, constituir outros mundos possíveis (Cf. BENJAMIN, 1994). Temos o que Koselleck chama de um alargamento significativo do “horizonte de expectativas”. (Cf. KOSELLECK, 1989)

Mas qual a relação desta argumentação com a crise atual da disciplina história, da teoria, da história da historiografia e do ensino de história?

A resposta se relaciona ao que sublinhamos logo no início, à compreensão de que é justamente nessa temporalidade marcada pela redução do “espaço de experiência” e pelo alargamento do “horizonte de expectativas” que elas são constituídas. Elas se organizaram com o objetivo de participar do esforço mais geral de reorganização temporal, ou seja, da reconstituição de determinada estabilidade. O problema aqui, certo nó podemos dizer, é justamente um sentimento de perda de confiança em passados que atinge, em cheio, a história e, neste caso, o ensino de história. A disciplina participa de um movimento de reconstituição de um mundo comum, no entanto, ela (já) havia perdido parte de seu poder (mais imediato) de prescrição (Cf. GUMBRECHT, 2011)

As filosofias da história e os historicismos procuraram participar dessa reconstituição de um horizonte comum (mais geral, transcendental) e, se por um lado, obtiveram certo sucesso, e isto porque conseguiram, de alguma forma, reencantar razoavelmente a relação epistemológicopragmática com passados (especialmente a partir da estratégia temporal do progresso), o que temos, por outro lado, é que as próprias filosofias da história e os historicismos também acabaram participando e provocando o que podemos chamar de uma aceleração dessa aceleração ou instabilidade temporal, na medida em que também tivemos, ao fim, a própria multiplicação de sentidos e significados que seriam ideais. (Cf. KOSELLECK, 1989, RANGEL, 2019 e RANGEL; ARAUJO, 2015)

Portanto, temos o que podemos chamar de certo êxito em relação ao reencantamento da história, logo, da relação com passados (e mesmo de certa reestabilização temporal), mas, também (e apenas aparentemente de maneira paradoxal), a própria intensificação da aceleração, da instabilidade temporal. Ou em outras palavras, por mais que se tenha tornado possível certo reencantamento da relação epistemológico-pragmática com o passado, ele já era percebido como menos adequado e próprio à tematização e rearticulação do presente. (Cf. GUMBRECHT, 2011: p. 30)

De modo que a fórmula – o passado necessariamente nos auxilia no enfrentamento de questões próprias ao nosso mundo (ao presente) – nunca mais retomou o poder de prescrição (mais imediato ou automático, irresistível) que tivera, e mais, vem perdendo força desde então.

Vem perdendo força exatamente porque o que temos ao longo do século XIX e boa parte do século XX é algo que se aproxima desse esquema circular: 1- com a aceleração ou instabilidade temporal temos uma perda significativa da confiança epistemológico-pragmática em passados, 2- na medida mesmo em que temos essa redução do “espaço de experiência” temos uma aposta significativa na estratégia antropológica que é a da projeção, da prospecção, da constituição de outros mundos possíveis muitos mais a partir da imaginação a qual, por sua vez, atua compactando, reunindo, organizando parte do que vinha aparecendo para e no ocidente (inclusive com base em passados, mas neste caso menos óbvios ou disponíveis). 3- à medida que se dedica mais a projeções, acaba tornando possível a diferenciação entre hoje e ontem, logo a intensificação da instabilidade temporal; de modo que muito próximo à lógica do Sattelzeit o que se tem é que cada hoje se diferencia ainda mais do seu ontem. E, 4- na medida em que temos ainda mais diferenciação entre hoje e ontem do que havia entre ontem e anteontem, o que temos é um aprofundamento disto que podemos chamar de uma desconfiança em passados (no que diz respeito ao estudo e à reunião de orientações no presente em nome de outros futuros possíveis).

Situação dramática que tem sido aprofundada, atualmente, pela dinâmica própria à técnica, num mundo que vai se sofisticando tecnologicamente e vai produzindo cada vez mais a impressão, especialmente no que diz respeito aos mais jovens (aos nossos alunos) de que passados e futuros são ainda mais diferentes e distantes (Cf. RANGEL, 2018). A impressão, portanto, de que passados teriam muito pouco ou mesmo nenhuma condição de nos auxiliar no enfrentamento de possibilidades e limites colocados pelo mundo contemporâneo.

A história e, neste caso, especialmente o ensino de história tem perdido espaços importantes e mesmo parte da atenção de alunos e do público em geral, especialmente se pensada a partir do ambiente escolar, porque desde a modernidade boa parte de nós (claro que nem todos, e que bom!) tem tido cada vez menos empatia por passados, nos reconhecendo cada vez menos neles. (Cf. ABREU; RANGEL, 2020)

Seria interessante pensar, então, em meio à temporalidade contemporânea (que provoca ao menos a impressão de que hoje e ontem são muito diferentes e estão muito distantes), em uma reelaboração da (de certa) empatia por passados. Uma empatia a partir e junto a passados obscurecidos e periferizados para uma espécie de reorganização ainda mais radical do hoje em nome de outros futuros possíveis. Ainda temos muitos passados (e outros futuros possíveis) pela frente!

“Crise”. Talvez seja essa a palavra mais recorrente no debate público contemporâneo, no Brasil e no mundo. Basta ligarmos a TV na hora do noticiário para que todo tipo de crise seja lançado em nosso colo: crise política, crise econômica, crise sanitária. Este dossiê pretende, justamente, lançar luz sobre a experiência de crise que caracteriza a contemporaneidade, e não apenas no que se refere à dimensão epistemológica da história, como destacamos acima, mas também no que diz respeito às crises democráticas contemporâneas.

Falar em “crises democráticas contemporâneas” ainda é pouco para explicar o propósito deste dossiê. É que não é apenas o conceito de “crise” que é polissêmico. “Democracia” também é. O que está em crise é o experimento democrático liberal-burguês, fundado no século XVIII, na Europa e nos EUA, e que se tornou hegemônico no final do século XX com o fim da Guerra Fria. A democracia liberal-burguesa está morrendo de dentro para fora, a partir da disfunção de suas instituições, cada vez menos capazes de sustentar seu valor fundamental: a possibilidade da representação política através do voto (LEVITSKY; ZIBLATT, 2017). O “povo está contra a democracia”, para utilizar as palavras de Yascha Mounk (2019).

Ainda é cedo para conhecer as consequências dessa crise. Não faltam autores apontando tendências e fazendo previsões. O já citado Yascha Mounk aposta no divórcio entre democracia e liberalismo, manifestado na forma de um “liberalismo autoritário” e de uma “democracia iliberal”. Já o diagnóstico de Jason Stanley é mais sombrio e aponta para a possibilidade de renascimento dos fascismos: caracterizados pela recusa da representação política indireta e pelo clamor pela relação direta, afetiva e sem mediações entre “povo” e líder carismático, visto como o único que seria verdadeiramente honesto e digno de representar o interesse público.

No caso brasileiro, o principal efeito da crise democrática na arena do conhecimento histórico é a implosão de teses relativamente estabelecidas a respeito de eventos traumáticos que marcaram a história nacional. O “negacionismo histórico” é um projeto político-epistemológico da “nova direita” que ganha espaço na política brasileira desde pelo menos 2013, cujo objeto é negar o teor traumático de experiências que marcam o passado brasileiro, especialmente a escravidão e a ditadura militar (1964-1985) (CHALLOUB; PERLATO, 2016). Por trás disso, está o interesse em deslegitimar as políticas públicas que nos primeiros anos do século XXI estavam fundadas no horizonte da reparação histórica, como, por exemplo: as políticas afirmativas voltadas à população negra e as indenizações para as vítimas dos crimes de Estado cometidos durante a ditadura. Também não podemos esquecer da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, que ao investigar os crimes de Estado praticados pela ditadura serviu como gatilho para a manifestação de toda sorte de negacionismos, até então diluídos no senso comum. Analisando o verbete “regime militar brasileiro” da enciclopédia universal wikipedia, Mateus Pereira mostra como, já em 2012, os negacionistas estavam atuando na internet, negando a natureza golpista da intervenção militar de 1964 e justificando os crimes cometidos pela ditadura.

Como era de se esperar, os(as) historiadores(as) não ficaram passivos diante da avalanche negacionista e se lançam, cada vez mais, ao “combate”, como diz o lema da atual gestão da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), presidida por Márcia Motta (UFF). Podemos dizer, portanto, que no campo de atuação dos profissionais de história, a crise democrática resultou no chamado, ou melhor, na convocação à intervenção no debate público, em um “giro ético-político”, nas palavras de Marcelo Rangel e Valdei Araujo (2015). Esse engajamento assumiu várias formas, todas de alguma maneira questionando o rígido processo de especialização disciplinar que desde a década de 1970 fortaleceu a autonomia do campo historiográfico no sistema universitário brasileiro, na mesma medida em que isolava os historiadores profissionais do restante da sociedade (ARAUJO 2016). Essa autonomização não significou, entretanto, total ausência de engajamento público, pois, como mostra Rodrigo Perez (2018), a historiografia brasileira contemporânea é marcada por um “engajamento historiográfico” que, desde o final da década de 1970, é praticado através de abordagens interpretativas comprometidas com o empoderamento retroativo dos “sujeitos subalternos”. As novas modalidades de engajamento deflagradas pela crise democrática, no entanto, são movidas por um espírito mais combativo, de confronto mesmo, já que do outro lado está um projeto político que, em última instância, questiona a existência da historiografia como ciência social legítima e merecedora de investimentos públicos.

É comum, por exemplo, a utilização do termo “história pública” como uma espécie de guarda-chuva semântico para definir o movimento coletivo dos historiadores profissionais brasileiros no sentido da intervenção no debate público. O uso inspira alguns cuidados, pois parece que o termo vem sendo demasiadamente alargado, o que acaba desgastando-o. O que significa exatamente fazer história pública? Há várias respostas possíveis. Alguns autores tratam a história pública na chave da divulgação científica (CARVALHO; TEIXEIRA, 2019). Fazer história pública, então, seria o esforço de criação de canais de comunicação capazes de divulgar para o “grande público” os resultados das pesquisas que os historiadores profissionais desenvolvem nas universidades. Outros autores argumentam que a história pública não deve se restringir ao expediente da divulgação científica, mas precisa se comprometer a formular uma agenda epistêmica adequada à publicização, o que pode significar o diálogo com outros campos de pesquisa – como, por exemplo, a história oral (SANTIAGO, 2018) -, com a própria sociedade em geral. Seja como for, a sensação que temos é que a “história pública” se transforma, cada vez mais, em uma área especializada da historiografia, entre outras tantas. O risco é que a autonomização e os debates teóricos endógenos levem os especialistas em história pública a não fazerem história pública, o que seria uma contradição em termos.

O fortalecimento dos estudos especializados no ensino de história, que costumavam ser considerados menos nobres pelo mainstream historiográfico, é outro desdobramento da crise democrática no campo da ciência histórica. Especialmente depois do surgimento do movimento “Escola Sem Partido” (criado em 2004, mas projetado nacionalmente pelo horizonte da crise democrática aberto em 2013), o ensino de história vem sendo uma trincheira de resistência, onde os professores de história se afirmam como produtores de conhecimento e reivindicam liberdade política / pedagógica para o pleno exercício de seu ofício. Qual história deve ser ensinada e como deve ser ensinada? Circe Bittencourt (2018) demonstra como essas perguntas não são pertinentes apenas ao ambiente escolar, ou aos campos disciplinares com interesses diretamente pedagógicos. Trata-se de questões políticas fundamentais que tocam nos temas da identidade nacional e dos usos políticos do passado. Como mostra Daniel Pinha (2017), à luz das discussões propostas por Nicole Loraux e Marc Bloch acerca do anacronismo subjacente à tarefa historiográfica, o tempo presente orienta as aulas de história enquanto fundamento epistemológico inescapável ao ofício do professor, se este é compreendido com base numa dimensão autoral (nos termos propostos por Ilmar de Mattos, 2005). Isso é especialmente verdadeiro em um momento de crise tão aguda como essa que vivemos, quando consensos são implodidos e o professor de história / historiador precisa negociar com sua audiência o conteúdo de seu saber, o formato de sua abordagem. Os estudos especializados em ensino de história vêm explorando essas tensões e mostrando como as aulas de história ministradas no ensino básico são talvez o mais importante canal de diálogo e de comunicação do conhecimento histórico especializado com o “grande público”.

Há também autores que apontam para a insuficiência da ciência histórica, constituída a partir da temporalidade historicista ocidental, em tematizar outras experiências de passados. Para aumentar a capacidade da historiografia em acolher diversos registros de memória, Valdei Araujo (2017) propõe um alargamento das competências do historiador profissional, que ao invés de se comportar apenas como o produtor de sentido, deveria ser também um “curador”, capaz de “acolher criticamente” a pluralidade das histórias que circulam pela sociedade. Em outra perspectiva, mas partindo do mesmo diagnóstico de que a historiografia profissional não é capaz de dar conta dos “diversos passados que circulam socialmente”, Arthur Ávila, Fernando Nicolazzi e Maria da Glória (2020) propõem a “indisciplinarização do conhecimento histórico”. Dialogando diretamente com as perspectivas pós-coloniais e decoloniais, os autores identificam uma crise de representatividade na nossa disciplina, dada pela incapacidade de uma ciência forjada com base nos valores ocidentais em representar passados não ocidentais.

Como o leitor e a leitora podem perceber, o ambiente da crise democrática suscitou diversos debates na historiografia brasileira contemporânea, dando forma a diferentes agendas de pesquisa, tanto no âmbito da modalidade acadêmico-universitária quanto na escolar, propondo distintas soluções para a atuação do especialista em história no debate público. O dossiê ora apresentado vem se somar a esses esforços de enfrentamento da crise epistemológico-ético-política também resultante da crise democrática.

Em nosso artigo de abertura, intitulado “Memory, historical culture, and history teaching in the contemporary world”, Marcelo Abreu e Marcelo Rangel propõem um debate em torno de questões teórico-historiográficas relacionando memória, cultura histórica e ensino de história, tendo em vista o enfrentamento de dilemas ético-políticos do mundo contemporâneo tais como: a necessidade de democratização, a problematização do etnocentrismo e as múltiplas formas de produção de presença envolvendo a produção de enunciados historiográficos.

Em seguida, no artigo “Ditadura civil-militar e formação democrática como problemas historiográficos: interrogações desde a crise”, Daniel Pinha problematiza o topos “Ditadura civil-militar” – sobretudo entre os anos de 2004 e 2014, aniversários de 40 e 50 anos do Golpe Militar – enquanto chave de análise utilizada por historiadores brasileiros para nomear e caracterizar a experiência do regime autoritário instaurado no Brasil em 1964. Rodrigo Perez parte de temática semelhante, indagando sobre as formas de circulação do discurso historiográfico em ambientes de crise, mas investe na análise de textos de outra natureza: a chamada historiografia comercial. “Por que vendem tanto?” pergunta Perez, focalizando dois estudos de caso: o “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de Leandro Narloch, publicado em 2009, e “A elite do atraso”, de Jessé Souza, publicado em 2017. Viviane Araujo, por sua vez, investiga o discurso conservador em meio à crise democrática no contexto latino-americano, e a mobilização dos conceitos de gênero e família como formas de assegurar uma oposição reativa à agenda de igualdade de gênero que vem ganhando espaço no debate político atual. Como explicita, na mesma linha do “Escola Sem Partido”, velho conhecido do público brasileiro, o movimento “Con Mis Hijos No Te Metas”, surgido no Peru (2016) e que se espalhou rapidamente por toda a região, apresenta um discurso contrário ao que chamam de “ideologia de gênero”, afirmando uma identidade política apartidária, mas que fortalece e fomenta lideranças políticas ultraconservadoras. Vistos em conjunto, estes três artigos refletem sobre os efeitos da crise democrática contemporânea na historiografia e as disputas políticas pelo passado no espaço público latino-americano e brasileiro, em particular.

Breno Mendes discorre sobre o lugar do currículo no ensino de história, associando teoria da história, história da historiografia, ensino de história e teorias do currículo. Para o autor, a versão da Base Nacional Comum Curricular, aprovada no governo Temer, revela, sobretudo, uma atualização das teorias tradicionais do currículo em detrimento de teorias pós-críticas. Raone Ferreira, por sua vez, analisa reflexões de professores de história acerca de suas práticas, trazendo à tela duas dimensões fundamentais que atravessam a tarefa docente nestes tempos de crise: os movimentos conservadores e o ciberespaço. O artigo de Domingos Nobre, Anna Beatriz Vechia e Carolina Oliveira tematiza o ensino de história no âmbito da educação escolar indígena, apresentando a experiência no Curso de Ensino Médio com Habilitação em Magistério Indígena realizado com os Guarani Mbya no Estado do Rio de Janeiro. Há, nestes três artigos, um propósito comum: refletir sobre o ensino da história no espaço escolar, em tempos de crise, revelador de tensões envolvendo recuos e alargamentos na intensificação de valores democráticos e na incorporação do desafio ético de repercussão da diferença.

Nara Cunha, Rosiane Bechler e Cyntia França focam a produção de sentidos históricos em torno das tragédias-crimes ambientais nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho. As autoras examinam a relação entre historiografia escolar e a abordagem de temas sensíveis, tendo em vista o tratamento do trauma provocado pela queda das barragens. O texto de Andrea Ribeiro, por sua vez, aborda o ensino de história no sistema socioeducativo, voltado à formação de adolescentes que vivem e acumularão em suas experiências de vida a experiência da privação de liberdade por meio do sistema prisional. Qual o lugar da história na constituição identitária desses sujeitos? Estes dois artigos nos revelam o potencial da narrativa histórica em oferecer possibilidades de restauração e orientação de vidas que experimentaram determinadas tragédias, traumas etc.

Os artigos deste dossiê nos oferecem uma boa oportunidade de enfrentar aquele que talvez seja o maior desafio ético dos(as) especialistas em história, pesquisadores(as) e professores(as) no contexto contemporâneo: intensificar valores democráticos por vezes desgastados e enfraquecidos em ambiente de crise democrática.

Referências

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ARAUJO, Valdei. O regime de autonomia avaliativo no sistema nacional de pós-graduação e o futuro das relações entre historiografia, ensino e experiência histórica. In: Revista Anos 90. Porto Alegre, V. 23. N. 44. Dezembro de 2016.

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LEVITSY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017.

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Daniel Pinha

Marcelo Rangel

Rodrigo Perez


PINHA, Daniel; RANGEL, Marcelo; PEREZ, Rodrigo. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 18, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Religião e mudança social / Revista Transversos / 2019

“Deus está morto”, declarou Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciência, “Deus permanece morto. E nós o matamos” (2011, p.148). Esse célebre atestado filosófico de óbito, enunciado em 1882, já não soa tão convincente em 2019. Sim, a modernidade avançou ainda mais, o panorama religioso não é mais o mesmo, as igrejas tradicionais perderam muito da influência que tinham sobre a opinião pública. Mas, apesar dos prodígios da ciência e da tecnologia, e das profecias de alguns filósofos, a razão iluminista não foi capaz de destituir completamente as divindades de seus postos. Neste início do terceiro milênio, a fé em forças transcendentes continua sendo um fator importante em diversos aspectos da vida social.

Não obstante essa relevância, o fenômeno religioso ainda é menos compreendido do que deveria. Ainda é comum, mesmo entre estudiosos de Ciências Humanas, a crença em mitos criados no século XIX para denunciar uma suposta oposição intrínseca entre religião e ciência (STARK, 2016; NUMBERS, 2010). Paralelamente, a tese weberiana do desencantamento do mundo — outro corolário da confiança iluminista na razão — ainda é vista, não raramente, como um processo natural e inevitável em um mundo em que viagens interplanetárias, aceleradores de partículas e terapia genética se tornaram parte da rotina. Isso apesar de pesquisas indicando que as crenças religiosas estão se tornando mais comuns, e não menos — ainda que nem sempre se trate de religiões tradicionais e institucionalizadas, como a Igreja Católica ou o protestantismo histórico (SHERWOOD, 2018).

No Brasil, um país marcado pela fé e pelo mágico desde os primórdios, modernidade e fé parecem conviver muito bem. Em plena capital federal, em 1904, João do Rio (2006) já mostrava a grande variedade de manifestações religiosas, que incluía dos swedenborguianos, maronitas e espíritas aos positivistas, evangélicos, judeus e “orixás”1, entre outros. Pouco tempo depois, a esse panorama seriam acrescentados umbandistas e evangélicos pentecostais, para citar apenas duas das correntes mais reconhecidas da religiosidade nacional. Saindo das capitais e rumando para o interior, esse conjunto se tornava ainda mais complexo, em parte graças à considerável flexibilidade do catolicismo popular brasileiro, sempre pronto a mesclas de toda ordem com simpatias, rezas fortes, peregrinações, santos declarados ao arrepio das autoridades eclesiásticas, adivinhações e sincretismos com tradições indígenas, africanas ou de outras origens.

A religiosidade, no entanto, é muito mais que uma peculiaridade antropológica. No Brasil e noutras partes, a religião tem sido também uma lente com a qual questões sociais e políticas são examinadas e enfrentadas, e um catalisador para propostas de mudança, tanto no sentido de um aprofundamento dos modernos valores democráticos e humanistas, como também, ao contrário, de sua rejeição. Para citar alguns exemplos muito notórios, era uma profunda religiosidade que movia líderes como Mohandas Gandhi e Martin Luther King em suas respectivas lutas por independência nacional e igualdade racial — como também o era a que inspirou o Aiatolá Khomeini na Revolução Iraniana e sua rejeição ao modelo de democracia liberal. Mais recentemente, tanto no Brasil quanto em países tão diversos quanto os EUA e os da África, igrejas cristãs têm sido atores de peso na definição de políticas públicas ligadas à educação, à saúde e aos direitos civis de mulheres e segmentos LGBTQIA+, e mesmo em áreas que, em princípio, não teriam relação direta com questões de moralidade e costumes — como na atuação da chamada “bancada evangélica” no Brasil, cuja influência tem crescido a cada eleição (DIP, 2018). Seja no campo mais conservador ou no mais reformista — e uma mesma denominação pode estar presente em ambos —, a religião informa, para dizer o mínimo, parte importante do debate público de boa parte das maiores democracias.

Nesta edição da TransVersos, apresentamos um mosaico de pesquisas sobre a influência religiosa na sociedade moderna, com destaque para sua relação com processos de contestação ou alteração da ordem social estabelecida, seja no plano individual ou na forma de movimentos organizados, sejam eles políticos ou intelectuais.

Abrimos com o artigo de João Felippe Cury Marinho Mathias, Estado laico e não secularizado no Brasil: uma reflexão à luz da história do protestantismo. O tema dialoga diretamente com o atual momento político brasileiro, notadamente a atuação da chamada bancada evangélica e a crescente visibilidade e influência das igrejas, as pentecostais e neopentecostais em particular, no cenário político nacional. Além disso, o autor discute dois conceitos fundamentais para o entendimento do papel das religiões nas sociedades contemporâneas: secularismo e laicidade, alvos frequentes de confusões semânticas e incompreensões políticas.

Em seguida, e ainda tratando do campo evangélico, Alexandre Cruz e Flávio Trovão assinam A educação entre a religião e a política: conservadorismo cristão e o homeschooling. Eles abordam as disputas em torno do ensino domiciliar nos EUA, no contexto das “guerras culturais” da década de 1980 — que hoje servem de inspiração para segmentos importantes da nova direita brasileira. Que papel os valores religiosos desempenharam numa causa que frequentemente envolve a contraposição entre direitos individuais, valores familiares e a legislação vigente sobre os direitos das crianças e jovens à educação? Neste momento em que as primeiras discussões sobre essa modalidade de ensino já despontam não apenas na sociedade civil brasileira, mas também na agenda do governo federal (PEREIRA, 2019), é uma leitura de grande interesse.

O terceiro artigo é A recepção da Gaudium et Spes pela Igreja no Maranhão: a libertação dos pobres como “horizonte de expectativas” em anos de repressão, de Sérgio Ricardo Coutinho. O artigo resgata um momento interessante do catolicismo brasileiro, em que, já sob o regime autoritário de 1964, a Igreja maranhense reinterpretou um documento conciliar à luz do entendimento de que a instituição deveria ter um papel no combate à miséria e às injustiças sociais que grassavam em um dos estados mais pobres do país. É um estudo de caso que não se furta a um produtivo debate teórico com o pensamento de um dos grandes filósofos do século XX, Jürgen Habermas.

O artigo seguinte trata das tradições indígenas. Mbyá Guarani em busca do Yvy Marãe”Y: múltiplos horizontes, diferentes perspectivas territoriais, trilhando sonhos e esperanças, de Rosalvo Ivarra Ortiz e Almires Martins Machado, apresenta a cosmologia Mbyá e sua utopia de uma “terra sem males”, que pode ter influenciado as migrações desse povo desde antes da chegada dos portugueses ao Brasil. Mais que isso, o artigo apresenta também uma discussão metodológica sobre o tratamento dado anteriormente ao tema, levantando questões sobre o uso de etnologias do século XX para preencher lacunas no conhecimento de séculos anteriores. Trata-se, pois, de uma contribuição de duplo alcance, tanto para especialistas nos estudos sobre as populações ameríndias quanto para os leigos interessados em conhecer melhor suas cosmologias, que historicamente sofreram tentativas de apagamento.

Em O caminho interior delas: Yoga, gênero e transformação social no Brasil, Maria Lúcia Abaurre Gnerre e Gustavo César Ojeda Baez resgatam a implantação e popularização dessa prática indiana ao país, nas décadas de 1960 e 70, apresentando-a como um meio de empoderamento das mulheres praticantes. Analisando os materiais de ensino do Yoga e as representações da mulher na iconografia que os ilustrava, bem como os depoimentos de algumas adeptas de relevo, o artigo apresenta uma interessante combinação de história religiosa do Brasil recente com um estudo sobre representações de gênero.

As várias faces da “guerra santa”: uma análise comparada da concepção de jihad do islã político ao jihadismo, de Dilton C.S Maynard e Ketty Cristina Lima Sá, é um estudo minucioso de um conceito que tem gerado discussões acaloradas no Ocidente, e mesmo no mundo islâmico, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e a subsequente “Guerra ao Terror”. Partindo do entendimento mais antigo acerca da jihad até os líderes intelectuais e políticos do que se costuma chamar de “fundamentalismo islâmico”, “islã político” ou simplesmente “islamismo” — tomado aqui não como a religião muçulmana, mas a ideia de que esta deve ser o supremo princípio organizador da sociedade —, o artigo apresenta uma história do conceito e de seus usos como instrumento político, da Irmandade Muçulmana nos anos 1920 à Al-Qaeda de Osama bin Laden. Trata-se, pois, de um tema fundamental para se entender a política internacional deste início de milênio.

Finalmente, encerrando o dossiê, Cecília da Silva Azevedo revisita o importante papel da religião nos protestos contra a Guerra do Vietnã, em Dissenso religioso nos EUA: experiências missionárias e o caso de Catonsville. Antes de focar em uma personagem específica, a freira Marjorie Melville, a autora dá um panorama do papel da religião na história norte-americana e da importância do dissenso religioso em particular. Logo após, acompanhando a história de Melville, ela passa pela Revolução Guatemalteca e o contexto da Guerra na América Latina para então chegar à onda de manifestações e campanhas de desobediência civil contra a intervenção dos EUA no Vietnã, incluindo aí a presença dos vários movimentos de contestação que floresceram nos anos 60. A história de Melville, portanto, acaba sendo o fio condutor de uma breve e intensa exploração por um dos períodos mais turbulentos da história da América Latina e dos EUA no século XX.

Na seção de artigos livres, Perspectivas da Lei 11.645-08 – origens, avanços e problemas, de Maria de Fátima Barbosa Pires, trata também de uma trajetória, mas, neste caso, de uma lei — a que estabelece a obrigatoriedade do ensino da temática indígena nas escolas brasileiras. A pesquisa apresenta a relevância da atuação dos movimentos sociais para que a lei viesse à luz.

Poetas de Escola: espaço de empoderamentos, territórios e identidades, de Leonardo Torres, Luiz Claudio Espírito Santo de Oliveira, Renato J. P. Restier Junior e Valquíria Farias, examina uma experiência educativa numa escola do subúrbio do Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo sobre as experiências cognitivas e as percepções dos alunos durante uma atividade semanal envolvendo poesia — e também uma partilha de experiência preciosa para educadores.

Ramiro Ladeiro Monteiro e os musseques de Luanda: a antropologia a serviço do colonialismo português, de Rogerio da Silva Guimarães, aborda uma questão delicada: a relação entre a produção do conhecimento antropológico e o poder oficial que muitas vezes o patrocinou. No caso, trata-se do Império Português em Angola, representado por um antropólogo a serviço da metrópole, e as representações que construiu. Mais do que um caso particular, no entanto, trata-se de uma olhar interessante sobre a história da evolução da Antropologia ao longo do século XX.

Em História, polifonia e verdade em obras selecionadas de Svetlana Aleksiévitch, de Daniel da Silva Klein, trata da literatura da ganhadora do Prêmio Nobel de 2015 e seu uso da técnica da polifonia, criada por como Dostoiévski no século XIX e como ela dialoga com a historiografia e mesmo a teoria social ao dar aos personagens uma profundidade e uma autonomia incomuns. Assim, a fronteira entre ficção e realidade se tornam mais tênues diante da exploração das perspectivas de cada personagem.

Em Criando uma guerra à pobreza nos Estados Unidos: discussões preliminares no governo John Kennedy (1961-1963), Barbara Mitchell analisa os inícios de um dos marcos na história das políticas públicas norte-americanas no século XX: a Guerra à Pobreza de Lyndon Johnson (1963-1969), provavelmente a mais ousada tentativa de implementação de programas sociais que esse país conheceu. O artigo não se prende apenas a programas e políticos, no entanto, mas também explora as ideias que circulavam à época sobre a questão da pobreza e como ela poderia ser melhor combatida — recorte de um debate que, naturalmente, continua relevante, tanto nos EUA quanto fora dele. Uma contribuição importante para os estudos dos EUA no Brasil, e sobre os anos 1960 em particular.

Uma última palavra: iniciar a preparação de um novo número para uma revista acadêmica é sempre uma incógnita. Ao propormos o tema para o dossiê e ao abrirmos submissões de temática livre, nunca sabemos ao certo para onde o volume caminhará. Esse elemento surpresa é das coisas mais gratificantes nesse trabalho: a cada vez percebemos a força e a diversidade com que a pesquisa floresce no Brasil. Ao apresentarmos este número gostaríamos de agradecer à Revista TransVersos pelo convite, bem como às autoras e aos autores que se dispuseram a contribuir com seus artigos e, assim, a fazer parte desse projeto. Às leitoras e aos leitores da TransVersos oferecemos o resultado desse trabalho coletivo. Esperamos que o desfrutem tanto quanto nós ao prepara-lo.

Nota

  1. Termo que o autor utiliza para os seguidores do candomblé.

Referências

DIP, Andreia. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

DO RIO, João. As religiões no Rio. Apresentação de João Carlos Rodrigues. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. (Sabor literário.)

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2011. p. 148.

NUMBERS, Ronald L. Galileo goes to jail and other myths about science and religion. Harvard University Press, 2010.

PEREIRA, Larissa. O que é homeschooling e o que considerar antes de decidir educar o filho em casa. Último Segundo. 27 / 02 / 2019. Disponível em: https: / / ultimosegundo.ig.com.br / educacao / 2019-02-27 / educacao-domiciliarbrasil-mp.html. Acesso em: 10 / 12 / 2019.

SHERWOOD, Harriet. Religion: why faith is becoming more and more popular. The Guardian. 27 / 8 / 2018. Disponível em: https: / / www.theguardian.com / news / 2018 / aug / 27 / religion-why-is-faithgrowing-and-what-happens-next . Acesso em: 10 / 12 / 2019.

STARK, Rodney. Bearing false witness: debunking centuries of anti-Catholic history. Templeton Press, 2016.

Rodrigo Farias de Sousa

Augusto Cesar Dias de Araujo

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2019


SOUSA, Rodrigo Farias de; ARAUJO, Augusto Cesar Dias de. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.17, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Teoria, escrita e ensino da história: além ou aquém do eurocentrismo? / Revista Transversos / 2019

O eurocentrismo é, possivelmente, a variante mais forte do etnocentrismo presente nos debates entre historiadores das últimas décadas. Há um complexo jogo teórico que une e divide opiniões de historiadores, arqueólogos, antropólogos e cientistas de outras áreas do conhecimento humano e social aplicado acerca da dimensão e profundidade dos efeitos da modernidade no pensamento social e, em especial, na produção da História. Não seria sequer possível dar conta de tantas nuances em tão pouco espaço sem correr o risco indesejável de transformar esse curto ensaio introdutório numa longa lista onomástica de referências bibliográficas de pouca profundidade. Por isso mesmo, opta-se por uma apresentação bastante seletiva, que busca indicar tão somente alguns contornos dessa problemática.

A crítica ao etnocentrismo já possuiu uma longa trajetória sobre a qual não nos furtaremos a pincelar determinados traços. Um trabalho de caráter mais geral, mas que obteve profunda penetração acadêmica, foi apresentado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss por ocasião de um pedido da ONU em 1952, cujo objetivo principal era discutir o problema do racismo. O etnocentrismo é uma espécie de repulsa, cuja origem é o estranhamento cultural, a incapacidade de relativizar as diferenças culturais, comparando-as em um sentido evolucionista in totum. Desta premissa, pessoas selvagens, bárbaras serão sempre “os outros” em contraposição aos humanos, aos civilizados. Essa postura adversa às outras culturas pode engendrar toda sorte de práticas discriminatórias, e, em suas variantes, o próprio racismo (LÉVI-STRAUSS, 1961).

Ao mesmo tempo, o que tem sido sistematicamente colocado de forma ainda mais contundente e crítica a modernidade do que o caminho proposto por Lévi-Strauss, seja o etnocentrismo (compreender o mundo a partir de uma expressão particular do que é ser tornando ela um universal) ou eurocentrismo (localizar no continente europeu parâmetros para a compreensão da História e dos homens), o que se opera é um profundo ocultamento dos impactos da modernidade no mundo. Centralizado no ser e na história europeia, qualquer visão será incapaz de compreender os efeitos da modernidade, uma vez que eles se expressam muitas das vezes fora do continente europeu (MBEMBE, 2016).

De toda maneira, o devir histórico é um forte motor para as mudanças de visão sobre os conceitos. Um entendimento sobre uma categoria que poderia parecer seguro, com o passar do tempo, tende a cambiar seus sentidos culturais originais. Vide o caso do termo oikonomiké entres os gregos antigos e o significado mais corrente de economia no mundo contemporâneo ou o de koinonia politiké entre os gregos antigos e de sociedade civil depois do século XVIII – note-se que os gregos antigos sequer operavam noções como a divisão moderna, pós-hegeliana, entre estado e sociedade civil (BOBBIO, 2017; FINLEY, 1980; KOSELLECK, 1992).

O mesmo Lévi-Strauss surpreendia a mesma ONU em uma palestra no ano de 1985. A perplexidade dos presentes veio da ponderação do antropólogo francês, que afirmava na ocasião ser etnocentrismo, em doses controladas, uma coisa boa, pois representava uma forma de adesão a um conjunto de valores que permitia a manutenção das distâncias entre as culturas. Para LéviStrauss, o enfraquecimento do etnocentrismo poderia conduzir a um estado de entropia moral, de desordem – o que poderia significar a destruição da criatividade de várias culturas por conta da “comunicação integral com o outro” (GEERTZ, 2014). Essa nova postura foi, com razão, duramente criticada por Clifford Geertz em uma de suas últimas obras.

Geertz, muito surpreso com o détour lévistraussiano, ressaltou que uma parte não desprezível do medo cego da diversidade acabava por criar um receio de que esta existisse para impor uma alternativa a nós como um todo e não sugestões e novas maneiras de fazer para nós. Ou seja, a aceitação da diversidade é sempre um processo seletivo de novos comportamentos, atitudes, concepções que se pode ou não aplicar, por meio da práxis humana, ao mundo. O etnocentrismo “nos impede de descobrir em que tipo de ângulo […] nos situamos em relação ao mundo, que tipo de morcegos somos, de fato” (GEERTZ, 2014). Se a nós é permitido expandir um pouco a ideia de Geertz, parece de todo fundamental que tenhamos alguma consciência histórica de que tipo de morcegos nós somos. Perceber o nível de arbitrariedade das ações sociais, das formas de pensar o mundo e as coisas ao redor, ter a autopercepção de um tipo de habitus, de uma estrutura que se reproduz e que se modifica, aqui e ali, enquanto conduz a todos a fazer o que nem se pensa sobre. Uma postura não etnocêntrica pode ser a maneira mais razoável de, puramente, se abrir à possibilidade de ouvir o que o outro tem a dizer e, eventualmente, mudar de ideia (BOURDIEU, 1989, 1996, 2013; GEERTZ, 2014).

Uma das obras centrais que fizeram muitos mudar de ideia, possivelmente um dos pontos de mutação nas reflexões em torno do eurocentrismo, data do final da década de 1970, quando Edward Said publicava o seu Orientalismo. Said foi o responsável por colocar em questão a naturalização da relação e a própria categorização: ocidente e oriente. Na verdade, muito mais do que isso, ele mostrou que parte significativa do que entendemos como oriente foi uma invenção que estava ligada a um discurso centrado na autodefinição e na consolidação de certa ideia de Europa que nasce, ou na verdade é inventada, a partir da apropriação da visão helena em os Persas de Ésquilo (ÉSQUILO, 2009). Além disso, Said demonstrou, no difícil contexto do processo de descolonização da África, que parte significativa das ideias lançadas por filósofos e historiadores do XIX produzia e reproduzia uma visão binária, um oriente atrasado e sustentados por regimes autoritários contraposto à Europa amparada por democracias e defensora de liberdades civis (SAID, 2007).

A História Antiga foi agudamente mobilizada para a consolidação dessa visão negativa do oriente. Jack Goody apontou uma vez que “a Turquia tornou-se o caso típico de despotismo oriental no início do período moderno, como antes, na Antiguidade, a Pérsia o foi para a Grécia […]” (GOODY, 2008, p.113). No caminho imperialista inglês, ficava clara a escolha da ênfase em Atenas, Esparta e, depois, na Macedônia. “A história da Grécia foi, portanto, uma história de uma entidade imaginada e não a história das comunidades gregas […] a história das comunidades gregas foi amalgamada sob uma entidade chamada de Grécia Antiga, que, juntamente com Roma, formaram os ancestrais do ocidente” (VLASSOPOULOS, 2011, p 41). O problema deste tipo de narrativa é criar uma finalidade para a Grécia, além de importar, fazer retroagir essa comunidade imaginada, a nação. Desta forma, Roma deveria receber a tocha da civilização, assim como o oriente havia feito em relação aos helenos. Nesse processo, o início de tudo parece remeter aos artistas, intelectuais e arquitetos do Renascimento que produziram a invenção do clássico, apropriando-se, mormente, do tratado de Vitrúvio sobre a arquitetura (KRUFT, 2015).

Uma dimensão base da crítica ao eurocentrismo é a reivindicação de uma mudança no polo ou centralidade das referências com quais definimos o que é teoria, o que vai para além da necessidade de se conhecer teóricos e filósofos não-europeus – os nomes de Frantz Fanon e Cheikh Anta Diop são base para essa direção. Dipesh Chakrabarty (2007) é um entre tantos que tem se dedicado a mostrar o quanto a diferença entre teoria e pesquisa por vezes é fundada numa hierarquização de territórios. Em muitos momentos, como em reflexões teóricas sobre o que é a invenção de uma nação, o continente europeu assume uma estatura distinta, sua experiência deixa de ser local para se tornar teórica, um “referente oculto” (nem sempre tão oculto) pelo qual histórias específicas (como as das Américas) deveriam ser compreendidas. Nesse caminho, a história da construção de uma nação como o Brasil passa a ser visto como um estudo de caso, uma experiência específica que não alcança a estatura de compreensão teórica. A hierarquia que deve ser desfeita é justamente aquela que pressupõe um lugar centralizado cujas experiências são basilares para formulações teóricas. A crítica ao eurocentrismo, então, não envolve apenas o reconhecimento de que é necessário estar atento a produções teóricas não-hegemônicas, mas que a própria diferença entre teoria e experiência (ou estudo de caso) se funda numa hierarquização preestabelecida.

Sanjay Seth (2013) assume a mesma direção ao explicitar que a dinâmica do historicismo – neste sentido vigente a todo momento em que o eurocentrismo ecoa – assume que na fundação da história enquanto disciplina acadêmica e científica há uma democracia falseada. Para o historicismo a afirmação de que todo território, cultura ou sociedade tem uma história – supostamente um movimento de reconhecimento da alteridade – é seguida da constatação de que nem todos têm historiografia. Isso implica uma redução das compreensões do que sejam raciocínios históricos ao ponto que rompemos com a estrutura antes apresentada por Lévi-Strauss, no sentido em que não basta reconhecer a pluralidade de experiências de ser, assim como não bastaria reconhecer as arbitrariedades das nossas próprias convicções implícitas em nosso habitus. O ponto é indicar que a historiografia é apenas uma forma de ser com o passado, válida e necessária, mas certamente não é a única. A crítica ao eurocentrismo, neste caminho, não anula o lugar da historiografia, mas pretende romper com o constante movimento de que uma voz ou metodologia implique no silenciamento de outras formas de ser com o passado que seriam, no limite, reduzidas apenas a fontes históricas.

Em síntese, o eurocentrismo sobre o qual fala-se aqui é um potente postulado, desdobrado em discurso histórico e filosófico enviesado, politicamente perverso, que construiu uma sólida narrativa de história global baseada em percepções, bem como formas e divisões dos períodos históricos, que davam conta, quando muito, para se pensar e emprestar sentido a uma comunidade imaginada de nações, a Europa. Da Grécia Antiga, tornada berço da Europa, e desta para o mundo, tudo passa a ser conectado por um fio narrativo específico, mas tornado natural pelo discurso histórico da modernidade, pelas conquistas imperiais e pela violência inerente ao processo civilizador, literariamente expresso como The White Man’s Burden (KIPLING, 1899; MIGNOLO, 2017).

O processo civilizador, que camuflava a sua violência material e simbólica por meio da politesse cortesã, foi sistematicamente questionado no decurso histórias nacionais pelos povos submetidos às forças estrangeiras – o próprio termo nacional já pressupõe certa aporia conceitual se se quer tratar de períodos, comunidades e populações para as quais essa formação social era estranha, como na Antiguidade e Idade Média, por exemplo (ELIAS, 1993). Como fugir de um sentido orientado pela construção da nação e de um discurso eurocêntrico? Seria um tanto quanto tautológico reafirmar aqui a enorme influência que a filosofia e as outras artes europeias tiveram sobre a percepção do tempo e mundo em boa parte do globo. Não se trata de negar a existência desses fluxos de ideias e cadeias de representações sociais, mas de perceber o nível de arbitrariedade sobre os quais elas foram construídas, desnaturalizá-las, para poder sair da espessa neblina criada pelo habitus.

O notório artigo de Gayatri Spivak, publicado em 1985 e, depois, convertido em livro e muitas obras de comentadores, se questionava de forma modelar: Pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2010) Havia uma mudança de paradigma e conceitual em curso, doravante conhecido como os estudos subalternos. A partir desse momento, dever-se-ia questionar qual a importância dos camponeses nos processos históricos? Qual o papel da resistência das camadas populares para além da influência da elite da época? Em que medida a sociedade, tradições falocrêntricas e colonialistas silenciavam a voz das mulheres nos processos históricos, bem como quais eram as relações entre poder e conhecimento? Enfim, se tratava de “produzir uma análise histórica em que os grupos subalternos fossem vistos como sujeitos da história” (CHAKRABARTY, 2002, p. 7).

Nas últimas décadas, a forma analítica que a noção de etnia ganhou no campo da Sociologia e Antropologia, levou com que muitos europeus ou não, se pusessem numa nova e profícua corrente de estudos (POUTIGNAT, 2006). Na Teoria da História pulularam os trabalhos que queriam romper com o eurocentrismo, como nas tentativas de George Iggers, e de outros, em reunir autores de diversas partes do globo para poderem pôr em pauta, com certa medida de ironia em inglês, questões historiográficas presentes em culturas e processos históricos bastante distintos entre si (CROSSLEY, 2008; IGGERS; WANG; MUKHERJEE, 2016; RÜSEN, 2008). Há um ocaso europeu em curso? É o centro do mundo tornado periferia? No que se pode inferir a partir da presença dos outros continentes no seio das humanidades pode-se dizer, ao menos, que há um novo equilíbrio de forças, um ineludível horizonte de debates (MBEMBE, 2018).

O Brasil não esteve imune a esse discurso eurocêntrico englobante. Recentemente, Luís Ernesto Barnabé demonstrou como ocorreu a penetração de um tipo de saber histórico tipicamente europeu no Brasil, advindo por meio da tradução feita por José Justiniano da Rocha do Précis de l’Histoire Ancienne de Poirson e Cayx, que foi utilizado no Imperial Colégio de Pedro II, ainda na primeira metade do século XIX (BARNABÉ, 2019). Todo um discurso atenocêntrico vinculado a reconhecidos autores como Arnold Heeren, George Grote, Jacob Burckhardt, Fustel de Coulanges, Max Weber, dentre outros, punha, em diversos matizes, Atenas como modelo de pólis, por vezes em contraposição à Esparta. Embora essas ideias venham sendo refutadas veementemente nas últimas décadas, muitas delas continuaram a emprestar forma aos manuais didáticos brasileiros dos últimos anos do século XX e mesmo ainda hoje (BUSTAMANTE, 2017; CASTRO, 2018; FRANCISCO; MORALES, 2016; GUARINELLO, 2010; HANSEN, 2006; HARTOG, 2001, 2014; LISSARRAGUE, 2002; MOERBECK, 2018b, 2018a; VLASSOPOULOS, 2011, 2013).

O que estava em jogo era o foco em uma visão bastante tradicional de história (político-institucional) que era reproduzida, talvez ainda seja, deixando-se de lado as contribuições mais recentes da própria produção brasileira em História Antiga. Uma breve leitura desta poderia, ainda que os caminhos entre a produção acadêmica e a escolar devam ser vistas de forma não hierárquica e qualitativamente distintos, incentivar recortes de temas mais transversais, a abertura para novos horizontes em que fosse possível pensar o ensino da História por meio, por exemplo, dos mitos gregos, das religiões antigas em relação aos cultos, mitos e rituais indígenas brasileiros e de alhures.

A utilização da História Antiga pode operar como um forte instrumento de descentramento cultural na compreensão da diversidade e permitir compreender melhor: os papeis sociais das mulheres antigas e as contemporâneas; as formas de exploração do trabalho ontem e hoje e tantos outros temas. Em suma, o mundo antigo, fora do prisma desgastado de base de civilizações europeias, pode ser muito mais útil a um ensino da História do século XXI do que se poderia temer, ou por considerá-lo distante demais ou supostamente mais “difícil” de ser ensinado. Estas são duas fórmulas decorrentes de uma compreensão, via de regra rasa e demodé, geralmente produzida por certo “senso comum” acadêmico de docentes que nunca se ocuparam efetivamente da História Antiga e que não é encontrado ou reproduzido, necessariamente, entre os professores que atuam diretamente nas escolas. Enfim, descolonizar o ensino passa muito mais por um processo que inclui repensar os usos do passado, inclusive o pré-moderno, do que por obliterar o estudo da História Antiga ou Medieval nos bancos escolares. Símile ao que dizia Constantin Stanislaski em relação ao trabalho do ator e à performance cênica, é preciso imaginação para se ensinar e para aprender a História, quiçá nada melhor do que a Antiguidade para aguçá-la. O que é mais difícil é fazer do conhecimento e da compreensão do mundo uma fagulha de felicidade; quando isso for possível nos bancos escolares, em muitos já é, vai importar menos qual conteúdo específico se vai trabalhar, mas o objetivo sócio-cognitivo a se alcançar. Se a História, e em particular a Antiga, serve a algo na escola, ela serve ao presente e muito mais ao futuro do que ao passado de tantos séculos e milênios (BOVO; DEGAN, 2017; FRANCISCO, 2017; MOERBECK, 2017, 2018c, 2018b; MOERBECK; VELLOSO, 2017; SANTOS, 2019; SILVA; SILVA, 2018; STANISLAVSKI, 1994).

Se ainda é valioso pensar a cidadania na escola e no ensino de História, é preciso alertar contra os perigos de um senso comum tranquilizador, que pode se tornar um obstáculo à aprendizagem de novos conhecimentos. Literacia, empatia, enfim, novas ferramentas inerentes ao pensamento histórico são importantes para se entender o xadrez social. E, como dizia Piaget, é preciso causar uns desequilíbrios, algumas incertezas para que os alunos, de forma ativa, possam chegar a uma nova forma de inteligibilidade do mundo (LEE, 2006; LEFRANÇOIS; ÉTHIER; DEMERS, 2011, p. 50-1). Decerto, isso é possível pelo questionamento de formas de pensar dogmáticas e não dialógicas. É bem possível que uma cidadania adequada aos tempos atuais seja aquela que reconheça criticamente as desigualdades que são produzidas, mesmo no ambiente das democracias, e, por meio da construção coletiva, desenvolver a consciência das diferenças socio-identitárias, inclusive naquilo que pode, ou deveria, prever o currículo escolar (CERRI, 2011; ÉTHIER; LEFRANÇOIS, 2007; ETHIER; LEFRANÇOIS; AUDIGIER, 2018).

Os caminhos atuais são os da multiplicidade de quadros metodológicos, bases epistemológicas e diálogos com outras disciplinas e saberes. Se é verdade que os estudos oriundos da hermenêutica, seja via Paul Ricouer, seja via Hans-George Gadamer, ganharam força na historiografia brasileira nos últimos anos, não seria verdade dizer que o marxismo e as mais diversas formas de análise do social tenham desaparecido ou mesmo que possam ser proscritas do horizonte da disciplina História (GADAMER, 2015; MARTINHO; FREIRE, 2019; RICOEUR, 2018). Se o conceito de classe ainda rende frutos, já que as clivagens sociais são uma dimensão do conflito humano com forte perenidade no tempo, os processos de identificação e as questões étnicas são e permanecerão, por muito tempo, elemento central nos debates histórico-culturais que permeiam a academia porque são relevantes para a sociedade como um todo. Em tempos de incertezas políticas, de radicalismos e da valorização, por parte da sociedade brasileira e mesmo d’alhures, de grupos obscurantistas, anticientíficos, vale a pena lembrar que: o mármore é rígido, porém, quando quebrado, só restam os fragmentos ao árduo trabalho dos arqueólogos, como aqueles das estatuárias grega e romana, dilaceradas pela beligerante ação humana no decurso do tempo. Enquanto a murta, como é característico das folhagens, até quebram, mas renascem, vergam, mas permanecem vivas ao procurar a luz para sobreviver. Se a luz ainda é uma boa metáfora, que o seja para a criação de um olhar mais perspectivista em relação aos dogmas, afetuoso em relação às carências humanas e aglutinador em relação aos objetivos centrais que concernem à dignidade humana (CASTRO, E. V. DE, 2017; UNESCO, 2015).

Muito dessa variedade de estilos, de bases teóricas e de temas estarão representados neste número da Revista Transversos. Dentro do seu próprio ethos, esse número traz à baila muitas temáticas em torno de um núcleo, afinal, estamos além ou aquém do eurocentrismo?

O artigo do professor José Maria Gomes de Souza Neto abre a Transversos, colocando em pauta a influência de elementos imperialistas e racistas na produção de blockbusters hollywoodianos. Neste caso, retomamos um dos mais caros temas da mitologia egípcia antiga em mais uma leitura cinematográfica. Segundo o seu autor, em Deuses do Egito (2016), há a construção de uma “ideia de civilização como espaço de construção europeia, noção que precisa, até por força de lei, ser contestada, e ninguém mais apto para tal tarefa que o profissional de história”.

Em seguida, os arqueólogos, professores do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Maria Cristina Nicolau Kormikiari e Vagner Carvalheiro Porto, mostram como a documentação de origem material pode ser crucial para a aproximação do aluno ao mundo antigo. Por meio do trabalho e da cooperação em torno da produção de mapas interativos, vídeos educativos, entre outros, dois laboratórios: LABECA e LARP mostram que a Arqueologia e a História podem trazer “opções didáticas para o ensino sobre o Mundo Antigo, o qual não se apresenta como modelo e sim como exemplo da variabilidade do viver humano”.

Deslocando-nos do ambiente da educação formal e nos reaproximando de formas de conhecimentos e da sociabilidade tradicionais, encontra-se o artigo de Kattya Hernández Basante, doutoranda na Universidad Andina Simón Bolívar, no Equador. Trata-se aqui de recuar às formas de produção do conhecimento que rementem a um universo de culturas orais, como sói acontecer na antiguidade, mas também entre algumas das populações indígenas brasileiras, dos griots e de avós que retém um saber, uma memória, que entra em profundo conflito com o projeto colonialista. Tudo isso mobiliza questões relevantes não apenas no Equador, mas em muitos países latino-americanos, a saber: processos de branqueamento, de tornar invisíveis populações tradicionais, bem como de conflitos entre narrativas históricas oficiais e memórias subterrâneas.

Pensando Bartolomeu de Las Casas como o primeiro crítico da modernidade europeia, Rafael Gonçalves Borges, professor do Instituto Federal de Goiás, avalia, no âmbito dos debates crítico-historiográficos, a atuação de Las Casas junto às populações ameríndias, desde uma visão negativa do frade dominicano até a sua reavaliação pelas tendências decoloniais. Uma vasta gama de referências orbita este trabalho, desde E. Said, passando por T. Todorov, Boaventura de Souza Santos, Edmundo O’Gorman e Enrique Dussel. Embora o nosso autor reconheça a importância de Las Casas em seu próprio tempo, aponta para o fato de que dificilmente ele poderia ser visto como um “porta-voz” de indígenas e de populações tornadas subalternas no mundo contemporâneo.

As discussões acaloradas em torno das diversas versões da BNCC, bem como as experiências, possibilidades e limitações de uma didática da História, via Jörn Rüsen, coloriram o ambiente dos debates acadêmicos e políticos nos últimos anos. Jean Carlos Moreno, professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná, levanta uma importante questão, a saber: até que ponto o quadro conceitual produzido por Rüsen é adequado às questões históricas específicas de uma história latino-americana? Se tais limites estivessem, a priori, ligados ao contexto no qual a Didática da História foi pensada, quais seriam então as suas vantagens? É um convite ao leitor para adentrar esse trabalho instigante sobre as possibilidades teóricas para o ensino da História.

E da teoria à prática, Priscila Aquino Silva, pós-doutoranda em História Medieval na Universidade Federal Fluminense e docente com larga experiência no Ensino Básico, nos convida a visitar uma “sala de aula” do 6º ano. Por meio de uma abordagem cara aos estudos para a didática da História, a autora nos apresenta um conjunto de trabalhos desses alunos, a partir dos quais se pode inferir e discutir questões absolutamente importantes em nossos dias, como: a importância e controvérsias da indústria cultural, os direitos humanos e o racismo enraizado, talvez estruturante, no Brasil contemporâneo.

E se, nessa breve introdução, partimos do oriente inventado por Hollywood, voltamos ao mesmo oriente, mas para pensar a formação dos profissionais de História em algumas das universidades públicas do país. Tendo por base uma bibliografia especialmente cara aos estudos mediterrânicos antigos, a autora, Lolita Guimarães Guerra, docente na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, coloca em questão o próprio termo oriente, construído a partir de uma “contraposição a uma identidade unívoca e idealizada, de orientação monoteísta, masculina e ‘nacional’”. Identidade, memória, elementos pré-formativos de uma sociedade brasileira cristã e de futuros professores que terão que se voltar ao passado para se deparar com um oriente de diversos mitos reificados pelos discursos que atravessam a sociedade contemporânea. A autora, com especial densidade, mostra que “é preciso ter em mente o papel de oposição ativa a ser desempenhado pela Universidade e pela Escola frente a memórias sociais legitimadoras da desigualdade e da violência, fomentadas pelo capital e legitimadas pelo Estado”.

Fica ao leitor o convite de adentrar o universo de ricos debates elencados por esse volume da Transversos. Não se deve esperar por soluções ou respostas fáceis, mas, com certeza, por encaminhamentos que ajudem aos professores do Ensino Básico, aos estudantes de graduação e aos profissionais de diversas áreas das humanidades a pensar o papel ativo desempenhado pelos discursos e pelo poder simbólico que tendem a reificar e naturalizar nossas ações, enfim, a nossa forma de conceber o mundo. Se por muito tempo estivemos, todos, imersos, enrijecidos, desbotados por um discurso eurocêntrico, é o momento de repensá-lo, transmutá-lo em algo que faça mais sentido, que seja mais objetivo e coerente com a busca da verdade histórica.

O neoconservadorismo político é um ambiente cheio de armadilhas, algumas delas são: pressupor que a verdade sobre o mundo pode estar vinculada apenas à baliza moral ou religiosa; conceber soluções imediatistas, simplificadoras, como um suposto imperativo categórico para problemas complexos, tudo isso, a despeito de efeitos colaterais perversos que possam advir às camadas menos favorecidas economicamente da sociedade ou “minorias tornadas invisíveis” pelas práticas da exclusão. Contra a História, propõe a ideia de que há apenas uma resposta correta, via de regra, aquela que interessa aos próprios desígnios político-morais do agente, a despeito das informações, evidências, dados e pesquisas acadêmicas em contrário.

Preocupado com estas questões e com certo ceticismo científico inflado por alguns setores do pensamento dito pós-moderno, Ciro Flamarion Cardoso, antigo professor da Universidade Federal Fluminense, chamava a atenção para os atributos necessários para se fazer a História (CARDOSO, 2000),

1) é preciso buscar-se uma comprovação histórica efetiva para o que se pesquisa, a pesquisa histórica não se basta apenas em afirmações apodíticas abstratas, mas em base material consistente; 2) deve-se evitar arrogâncias metodológicas, quaisquer que forem; 3) deve-se denunciar os raciocínios reducionistas de todo tipo; 4) é preciso empregar os conceitos de maneira clara, especialmente ser coerente na relação das categorias utilizadas com a própria investigação que histórica que empreende CARDOSO, 2008; MOERBECK, 2019, p. 107).

Existem muitas possibilidades no tabuleiro das análises sociais: todavia, não cabe a esse ensaísta indicar uma ou outra, mas, certamente, afirmar a incondicional relevância da educação em História no século XXI, que deve estar eticamente posicionada além do eurocentrismo.

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Guilherme Moerbeck – Professor de Teoria e Ensino de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor permanente do PROFHISTÓRIA-UERJ e colaborador no PPGH-UERJ. Doutor em História Antiga pela UFF, pós-doutor em Ensino de História pela FGV-Rio, pós-doutorando em Arqueologia Clássica no MAE / USP. É Chercheur Associé da École Française d’Athène (EFA), já atuou como Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University e é convidado como Chercheur Associé pelo Département de Didactique da Faculté de Sciences de l’Éducation da Université de Montréal. Além disso, é Pesquisador do LABECA / MAE / USP e do LEDDES / UERJ. É autor dos livros: Entre a Religião e a Política: Eurípides e a Guerra do Peloponeso (Prismas, 2017) e Guerra, Política e Tragédia na Grécia Clássica (Paco Editorial, 2014). E-mail: [email protected]

Francisco Gouvea de Sousa – Professor de Teoria e Ensino de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio, pós-doutor em História pela UFRRJ e pela UFOP. É coautor do livro: Teoria e Historiografia: debates contemporâneos (Paco Editorial, 2015). Atua como colaborador no corpo docente do PROFHISTÓRIA -UERJ e é pesquisador do LEDDES / UERJ. E-mail: [email protected]


MOERBECK, Guilherme; SOUSA, Francisco Gouvea de. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.16, mai. / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamentos / Revista Transversos / 2019

A Revista Transversos em sua 15a edição embarca rumo às alteridades, compreensões, identidades e sensibilidades angolanas. O dossiê Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamentos é resultado de uma parceria da linha de pesquisa Áfricas e Diásporas Negras do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES), do Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília e do Instituto Superior de Ciências de Educação da Huíla.

No âmbito do Projeto de cooperação entre o PPG-DSCI / UnB e o ISCED-Huíla nasceu a ideia de um dossiê dedicado a Angola, depois de longa conversa com a querida e saudosa editora da revista Transversos Marilene Rosa Nogueira da Silva. O projeto de cooperação tem por intenção consolidar as relações de parcerias acadêmicas entre Lubango e Namibe, região Sul de Angola e com isso a formação da rede de universidades brasileiras entre UFRJ, UnB e UERJ. A partir de intercâmbios de pesquisadores, professores e discentes com experiências Sul-Sul nas diferentes áreas do conhecimento, como investigações antropológicas, históricas, sociológicas, dentre outras, a relação entre aquelas universidades têm se intensificado. Um pouco dessa prática interdisciplinar pode ser vista, em alguns dos textos que se seguem neste dossiê, de professores oriundos das respectivas instituições acima citadas.

Contudo, de maneira mais concreta já algumas visitas e co-orientações de trabalhos de mestrado foram realizadas e trocas de experiências institucionais foram formalizadas com protocolos e projetamos o aprofundamento desse intercâmbio para os próximos anos. Do lado brasileiro, mais do que nunca as parcerias Sul-Sul, hoje se tornaram oportunas considerando o momento que vivemos de grande retrocesso, por forças truculentas na tentativa de banimento de nossa memória e História nas relações com o continente africano.

Em relação ao contexto angolano, o projeto de cooperação com as universidades supracitadas corresponde a um processo de partilha interdisciplinar em termos de conhecimentos no sentido de relançamento da pesquisa ao nível do sudoeste que, após a independência e no período da guerra civil conheceu um hiato bastante preocupante que introduziu alguma letargia em termos de investigação ao nível das universidades aí destacadas. Assim, partindo de uma base bastante robusta de pesquisa colonial, existe um conjunto de estudos, maioritariamente organizados pela Junta das Missões Geográficas e de Investigação Coloniais que, retomados e reorganizados pelo extinto Instituto de Investigação Científica Tropical, uma vez reanalisados do ponto de vista crítico, podem constituir o chamariz para o renascimento de estudos no sudoeste angolano e, neste particular, o ISCED-HUÍLA possui responsabilidades acrescidas como vanguarda deste processo.

Os estudos ora propostos por esta parceria sul-sul, constituem uma oportunidade singular para a releitura e crítica da produção anterior e reposicionamento de todo o processo numa lógica de valorização do Outro que se pode consubstanciar no estudo da História Local e outras dinâmicas que permitam a consolidação e harmonização dos saberes endógenos às realidades locais.

Nesse sentido, o Dossiê Angola nos apresenta vários textos de ambos lados do Atlântico cruzando os respectivos interesses sobre Angola e nas respectivas interações, passada e presente. Nesse Dossiê optamos por não delimitar uma temática, somente o objeto bem amplo: Angola. O resultado, longe do tradicional número temático, mas um conjunto de textos de estudantes, professores, de instituições diferenciadas não só de autores de Angola e Brasil, mas predominantemente abordaram aspectos tão diferenciados e de ricos olhares, com vieses particulares e gerais. Acreditamos que será um ponto de partida para estimular caminhos de pesquisas.

Nessa edição, procura-se um compromisso em estudar as particularidades do pensamento angolano por olhares transversais. Reunindo-se pesquisadores e pesquisadoras de distintas instituições e áreas de conhecimento como: Biologia, História, Literatura, Moda, Patrimônio Cultural e Relações Internacionais.

Abrimos com o artigo Em Angola o ensino bilíngue pode contribuir para a Educação e manutenção da Paz Nacional de autoria de Teresa Almeida Patatas e Joana Quintas. As autoras discutem como a escola angolana pode ser uma instrumento de socialização, formação de identidades e como a Educação Bilíngue – o português e os outros idiomas falados em Angola – podem favorecer a manutenção da Paz numa Angola pós-independência. Em A formação de professores em Angola: reflexões pós-coloniais, um estudo realizado por Joana Quintas, José Gregório Viegas Brás e Maria Neves Gonçalves, reúnem-se reflexões sobre as intersecção entre o regime colonial e o pós-colonial em Angola. Em linhas gerais, o texto instiga o leitor a reflexão de dois problemas: analisar se o novo imaginário saído da pós-independência teve repercussão na formação de professores em Angola e a discutir a formação de professores nas reformas educativas subsequente ao pós-colonialismo.

Escolhas escolares dos estudantes do Ensino Superior: perfis e diferenciação social segue a propostas de estudo na linha das Ciências da Educação em Angola. Nele, o autor Edgar Essuvi de Oliveira Jacob estuda as escolhas escolares dos / as estudantes angolanos / as que ingressaram no Ensino Superior, especificamente, a estudantes de licenciatura do 1º ano distribuídos por 4 instituições de ensino superior localizadas nas províncias da Huíla e Luanda.

Por outro lado, Ermelinda Liberato, em Reformar a reforma: percurso do Ensino Superior em Angola, discute como nos últimos anos há uma crescente crítica à estrutura do Ensino Superior em Angola. Em suma, a autora estudará o período de criação e implantação das diferentes reformas educacionais do Ensino Superior em Angola.

Na onda de uma educação tecnológica e das novas tecnologias, Bernardo Chicuma Uhongo em Implementação de um Sistema b-Learning na Escola Secundária do Nambambe – Lubango descreve a implentação do Sistema b na Escola Secundária do Nambambi em Lubango e os aportes necessárias para combater a vulnerabilidade digital na localidade.

No campo da Literatura, como fonte, essa edição apresenta artigos plurais e transversais. Deslocamentos narrativos em Uanhenga Xitu e Moisés Mbambi: um contributo à cultura, língua, história e literatura angolana de autoria de Alexandre Lucas Selombo Sukukuma traz uma densa investigação a respeito do campo da Literatura Angolana como um processo de emancipação. Seu artigo abarca um diálogo transdisciplinar dos textos Uanhenga Xitu em “Mestre Tamoda e outros contos” e Moisés Mbambi em “Cenas do Feitiço”.

Heloisa Tramontim de Oliveira e Cristine Görski Severo, em Intelectuais, lutas de resistência e línguas em Angola, estudam o papel desempenhado pelos intelectuais nas lutas angolanas contra o colonialismo português, em defesa da independência de Angola, o papel das línguas e na construção de um nacionalismo angolano, entre a segunda metade do século XIX e os anos 1970.

O escritor angolano Luandino Vieira emerge nesse dossiê por um conjunto de autores e autoras. Alexandre da Silva Santos e Keith Barbosa no artigo Os mussuques de José Luandino Vieira e a História da ocupação dos espaços urbanos traz a reflexão sobre os bairros pobres de Luanda enquanto repositório de histórias e memórias sobre cenários de mobilidades e deslocamentos na capital angolana. Enquanto, Edvaldo Aparecido Bergamo e Rogério Max Canedo Silva apresentam em Nós, os Makulusu, romance de Guerra, combate, violência e libertação na narrativa de Luandino Vieira como a obra do autor é um instrumento analítico sobre os impasses étnico-culturais e socioeconômicos gerados por um conflito bélico num país em processo de descolonização, que logo deixaria de ser domínio luso e se tornaria uma nação independente.

Anibal João Ribeiro Simões no artigo Uma revisão sistemática dos textos coloniais sobre a Província do Namibe (ex-Moçâmedes) de 1800-1920 faz um mapeamento sistemáticos dos textos coloniais sobre a antiga região de Namibe, atual Moçâmedes. A pesquisa foi realizada a partir das fontes do Banco Nacional de Dados de Portugal e do Portal das Memórias da África e Oriente.

Christian Rodrigues Fischgold, em Ruy Duarte de Carvalho e o paradoxo moderno Estado-nação angolano, parte de dois textos publicados pelo autor angolano Ruy Duarte de Carvalho a saber: “Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” ainda existe, antes que haja só o outro… (2008), e Da Angola Diversa (2009). A partir deles, o autor apresenta uma visão da problemática da representação da diversidade e propõem uma cartografia das alteridades contemporâneas inseridas nas estruturas do Estado angolano.

Na aposta de diálogo entre Angola e outros territórios, Frederico Antonio Ferreira no artigo Augustus Archer, entre o passado e o futuro das relações entre o Império do Brasil e a África Portuguesa analisa a trajetória do braso-americano Augustus Archer Silva, negociante com diversas áreas de atuação em Luanda e de como tornou-se vice-cônsul do Império do Brasil em Angola entre os anos de 1865 a 1877.

Valorizar a tradição como uma das vias para a moralização da sociedade angolana: o caso da Ombala Ekovongo de António Guebe mostra como a Ombala Ekovongo é detentora de normas seculares que, no passado, jogaram e podem continuar a jogar um papel importante nesta ingente tarefa na Angola contemporânea. Angola (não é) para principiantes: estereótipos, interpelações e aprendizados em trabalho de campo de Paulo Ricardo Muller traz a experiência de trabalho de campo em Angola. O artigo apresenta a compreensão de estereótipos através dos quais atores reconhecem e são reconhecidos nas interações pessoais no cotidiano da sociedade angolana.

Helder Pedro Alicerces Bahu em “Povoamento” da Mapunda. Encontros e desencontros num espaço iminentemente colonial apresenta os desdobramentos simbólicos do bairro da Mapunda, marcadamente habitado por madeirenses durante a grande odisseia de desenvolvimento da antiga colónia de Sá da Bandeira. Pedro Figueiredo Neto no artigo Rumo à cidade: deslocamento forçado e urbanização em Angola discute os problemas da urbanização em Angola. Seu texto propõe-se a questionar que o tipos de urbanização, em Angola, não significaram melhores condições de moradia e acesso as estruturas básicas da cidade ou o direito à cidade.

Luanda, Moscou, Pretória e Washington: os discursos presidenciais em Angola sobre as relações internacionais e o conflito com a UNITA (1975-1991) de Kelly Cristina Oliveira de Araújo entrelaça diferentes discursos presidenciais e a construção dos inimigos de Angola. O artigo estuda a instituição de que o antagonista do povo angolano não estava entre ele mesmo, mas sim nas chamadas forças imperialistas.

Santos Garcia Simão em Visão holística dos museus e arquivos de Angola: uma abordagem histórica faz um estudo a partir da museologia e da arquivística em Angola em relação à criação de um Museu em Angola, em paralelo aos arquivos, surge na década de 1936 com a criação do Museu do Dundo e do Museu de Angola, a 8 de Setembro de 1938.

Paulino Soma Adriano em Omissão da marca de plural / s / : uma realidade no Português falado em Angola analisa a omissão da função plural em sintagmas lexicais e nos determinantes no português falado em Angola. O autor apresenta, portanto, como a Língua Portuguesa, em Angola, tem especificidades comparado a norma-padrão europeia.

Em notas de pesquisa, Selma Alves Pantoja descreve em Viagem a Angola: de quando comecei a “frequentar o sul” as três viagens ao sudoeste de Angola e de como nasceu a ideia de um projeto de pesquisa, os momentos de reconhecimento do terreno, do nascimento e formação da equipe e a fase inicial da pesquisa. Enquanto, Solange Maria Luis e Carla Black em O Perfil do Formador do Professor Primário e o Desafio do Programa Educar Angola 2030 – pontuam sobre uma reflexão relativa sobre o perfil do professor formador na modalidade do primário no contexto de Huíla, em Angola.

Yuri Manuel Francisco Agostinho no artigo Marcas da ação colonial em Angola: a luz das memórias e narrativas de escritores angolanos é um exercício de análise de entrevistas com literatos publicadas em dois volumes por Michel Laban, com o objetivo de compreender o colonialismo e a situação colonial, assim como as relações raciais vigentes então no país. As plantas – usos e costumes dos povos da província da Huíla, um estudo exploratório com Securidaca longipedunculata e Uapaca kirkiana de José João Tchamba e José Camonga Luís é uma texto entre Biologia e História. A nota de pesquisa traz um ensaio na compreensão e aprofundamento dos conhecimentos sobre os costumes dos povos da província da Huíla em relação a utilização dos recursos fitológicos tanto na alimentação como na medicina.

Soraia Santos em A coleção arqueológica do ISCED-Huíla: um projeto de investigação tem como proposta identificar os sítios arqueológicos levantados na região Sul de Angola, assim como, faz um trabalho de inventários, catalogação e estudo das coleções para a criação do Museu arqueológico vinculado ao ISCED-Huíla.

Em Experimentadores Marissa Moorman em Bonga´s transatlantic examina como o álbum Angola 74 produzido por Bonga contribuiu para invenção de uma angolanidade a partir das experiências de vida nos musseques de Luanda. O artigo faz uma interrelação entre música angolana e rotas urbanas transatlânticas.

Esta 15a edição traz também dois depoimentos. A moda como objeto de estudo em Luanda de Michelle Medrado e suas anotações de pesquisa, em agosto de 2018, em Angola. O depoimento evidencia a trajetória do figurino de telenovela como um objeto que nasce na narrativa ficcional e tem organizado trocas comerciais e culturais e como isso desdobrou um processo de situações e questionamentos sobre o fluxo temático da pesquisa. Peixes no deserto de Rodrigo Pires de Campos apresenta notas preliminares referentes a registros e reflexões feitos a partir da experiência do autor em sua primeira viagem à província do Namibe, Sul de Angola e a busca de conhecer mercados, principalmente, do comércio do peixe.

Encerrando o dossiê – Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamentos – temos duas entrevistas. Carmen Lucia Tindó Secco faz um diálogo com o escritor angolano Boaventura Cardoso. Enquanto, Aida Freudenthal apresenta-nos uma prosa com o engenheiro e político Fernando Pacheco.

A Revista Transversos tem nessa edição três artigos livres. Será Mbôngi’a ñgîndu a escola das Ciências políticas no antigo Kôngo? de Patrício Batsikama que discute o Mbôngi’a ñgîndu terá sido uma Escola onde se ensinava as Ciências Políticas. Laurindo Lussimo Rufino no texto Miwene-Kongo: a Instituição Teocráticoabsolutista do Reino do Kongo, no seu primeiro século de vida que discute a Instituição Miwene-Kongo e seus aspectos políticos-religiosos na fundação do Reino do Congo.

E o trabalho de Paulo José Assumpção dos Santos, Silvio de Almeida Carvalho Filho e Celeste Azulay Kelman no artigo Desafios do Ensino de História para alunos surdos em uma escola inclusive da Baixada Fluminense. No texto, os autores fazem um diagnóstico de como ocorre a inclusão escolar de alunos surdos a partir da perspectiva de professores de História de uma escola polo localizada no município de Duque de Caxias (RJ).

Convidamos a seguir os leitores e leitoras a descortinarem as próximas páginas. Esperamos, que os artigos inquietem, provoquem e sejam compartilhados. Boa leitura!

Helder Bahu (ISCED- Huíla)

Selma Pantoja (UNB)

Gustavo Sousa (INES)

Silvio Carvalho (UFRJ / UERJ)


BAHU, Helder; PANTOJA, Selma; SOUZA, Gustavo; CARVALHO, Silvio. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 15, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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LGBTTQI. Histórias, Memórias e Resistências / Revista Transversos / 2018

Ao nos defrontarmos com a imagem da capa desta edição (ELIAS1, Coraticum, 2018), nosso olhar se impacta com um coração que vibra num agenciamento de multiplicação de cores. Tonalidades que se chocam e se interseccionam em suas artérias, oxigenando uma vida não monocromática e sim uma “vida artista” como proposta ético-política (Foucault, 2004), potencializada por uma constituição de si que tem na diversidade sua beleza criadora. É com a força libertadora do Coraticum, da existência como obra de arte, que a 14ª edição da Transversos apresenta seu dossiê LGBTTQI: histórias, memórias e resistências, da linha de pesquisa Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ).

Este dossiê é efeito de encontros e de esforços coletivos de pesquisadorxs que focalizam, estudam e exploram temas, experiências, histórias de vida, memórias, resistências e contracondutas do universo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e Intersexuais (LGBTTQI).

Diversas correntes teóricas e perspectivas metodológicas, balizas temporais e geográficas e áreas do saber possibilitam debate sobre as diferenças sexuais e as de gênero, interseccionando, muitas vezes, gênero, raça, sexualidade, geração, classe, nacionalidade e estilo corporal, complexificando, assim, históricos programas culturais e matrizes de gênero.

Para além da visibilidade aqui oferecida às pesquisas e às reflexões de uma rede internacional de pesquisadorxs e instituições, sobretudo entre o LabQueer (Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros, da UFRuralRJ) e o INTIMATE (projeto de pesquisa desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES- UC), o objetivo foi o de ampliar e verticalizar o debate sobre históricas formas de nomear os sujeitos, seus desejos e afetos, de atribuir sentido a si e aos outros, de produzir conhecimento sobre os gêneros e as sexualidades, sobre as diversidades corporais, as agendas teóricas e políticas da construção da subjetividade, os processos e códigos de significação, os esquemas binários de vigilância / controle e a “produção transversal das diferenças” (PRECIADO, 2004, p. 48). Ao mesmo tempo, os artigos oferecem análises sobre os processos por meio dos quais identidades são afirmadas e cristalizadas, realidades são social e culturalmente forjadas, as exclusões, marginalizações e apagamentos são produzidos, bem como destacam as inúmeras contestações das normas cisheterocentradas, as resistências e as fraturas do universal e assimilacionista, muitas vezes conjugado no masculino cisheteronormatizado.

O desafio proposto por Michel Foucault (1984, p. 13), o de tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe, foi potencializado por debates que desnaturalizam e fraturam os pertencimentos, identidades, papéis e expressões de gênero, os privilégios de visibilidade e de hierarquias, as estruturas definidoras de opressão, os saberes e discursos que legitimam a(s) sexualidade(s). Ao mesmo tempo, a provocação do filósofo francês foi matizada por conexões políticas e teóricas, como os feminismos, a teoria queer, o movimento transgênero e as diferentes demandas relacionadas à orientação sexual.

A genealogia, como pensada por Foucault e Nietzsche, da teoria queer nos é apresentada por Pablo Pérez Navarro por meio de suas aproximações com as políticas e teorias feministas. No artigo que abre o dossiê, Pérez Navarro problematiza como a proliferação e fragmentação do sujeito do discurso feminista promove um ataque ao sujeito universal do iluminismo ao questionar interna e fronteiriçamente a naturalização a-histórica de categorias como a “diferença sexual”, a unidade do sujeito “mulher”, os gêneros binários e a heterossexualidade. Os feminismos lésbicos, chicanos, latinos, asiáticos e afro-americanos (em suas análises da interseccionalidade das opressões de gênero, raça, classe, etnia) são destacados no artigo como caminhos que potencializaram a teoria queer no final do século XX.

Ana Cristina Santos focaliza a memória coletiva do movimento social LGBTQ em Portugal. A autora analisa as transformações associadas aos campos da lei e da política partidária, o progresso verificado na cobertura noticiosa dada a temas LGBTQ e sugere o conceito de ativismo sincrético, demonstrando o seu potencial analítico no que se reporta a compreender duas décadas de histórias, memórias e resistências do movimento LGBTQ.

Fábio Henrique Lopes traz à cena narrativas autobiográficas e escritas de si de Aloma Divina, travesti que viveu na cidade do Rio de Janeiro ao longo da década de 1960, considerada da “primeira geração”. Sua proposta foi a de identificar e explorar a emergência histórica de novas subjetividades, como a de travesti, marcadas por múltiplos e históricos eixos de diferenciação, como o gênero, a sexualidade, a diversidade corporal e a raça.

A construção de redes de amizade como táticas de (re)existência de pessoas trans na ordem cisgênera e heteronormativa são problematizadas por Rafael França Gonçalves dos Santos e Marcio Nicolau. A partir dos estudos queer, dos feminismos transgênero e negro, Gonçalves e Nicolau destacam como tais redes de afeto foram acionadas por sujeitos trans que partiram de Campos dos Goytacazes / RJ para o sul da Europa para a criação de subjetividades que borram as fronteiras binárias do existir, perturbam o controle biopolítico dos corpos e possibilitam vidas menos “normalizadas” e mais criativamente diversas.

As relações de amizade também se destacam no artigo de Beatrice Gusmano. Através de um olhar sociológico, mostra como pessoas LGB estabelecem relações de amizade e de cuidado, compartilhando o cotidiano. Um dos principais resultados apresentados é como as redes de amizade se tornam um meio não apenas necessário, mas escolhido, para construir relacionamentos íntimos resilientes, sublinhando, dessa maneira, o potencial transformador e subversivo da amizade entre pessoas LGB.

Desnaturalizar os dispositivos de poder que levam à desumanização de pessoas trans e intersexuais é o que Renata Santos Maia propõe em seu artigo Corpos dissidentes: as identidades que “intertransitam” no cinema argentino contemporâneo. Com esse fim, três produções cinematográficas (XXY [2007], El último verano de la Boyita [2009] e Mía [2011]) são as fontes escolhidas para focalizar os dilemas, dores e violências que vidas não binárias carregam em sociedades heterocentradas e masculinistas, com destaque para as latino-americanas, especialmente, a Argentina. Maia destaca como as vidas trans e intersexuais apresentadas nos filmes são atravessadas pelo determinismo dicotômico de ter que escolher um verdadeiro sexo / corpo / gênero / desejo.

Erica de Aquino Paes e Luciane da Costa Moas oferecem importantes chaves para o exame dos conflitos entre a normatividade cisgênera e a atuação transgressora da transgeneridade. A abjeção de pessoas trans produzidas pelas relações de saber-poder do discurso médico e jurídico é problematizada por meio de um estudo de caso: o da jogadora de vôlei Tiffany Abreu, mulher trans cuja atuação profissional é atravessada por tensões e negações em torno do exercício de seus direitos civis. Jogo que se desdobra na luta pela equidade de gênero em um domínio esportivo normatizado pela cis-heteronormatividade.

Ana Lúcia Santos analisa o potencial crítico e transformador de corpos protésicos e intersexo no regime capacitista e cisgénero. A partir do conceito de glitch, do feminismo digital, e das teorias crip e arte do fracasso, Santos apresenta essas vidas transviados e falhadas no desporto como resistências às classificações binárias do existir e como possibilidade de criação de identificações híbridas que transgridem positivamente a normalidade hegemônica.

A construção de certa identidade homossexual produzida pelo jornal Lampião da Esquina, durante os anos 1978-1981, é problematizada no artigo de Natanael de Freitas Silva & Natam Felipe de Assis Rubio. A partir da noção de contra-conduta, Silva e Rubio destacam os jogos de poder em torno dos diferentes significados sobre a homossexualidade presentes na sociedade brasileira de então. Aqui, mais uma vez, as existências silenciadas pela heteronorma ganham destaque nessa reescrita da história que tem nas demandas da atualidade seu ponto de partida.

Na seção de artigos livres, Santiago Arboleda Quiñonez examina a étnico-educação como meio de crítica e de transformação da colonialidade do poder (Quijano, 2002) presente nas sociedades latino-americanas. O ensino das relações étnico-raciais se destaca como forma de desnaturalizar o paradigma monocultural (masculino, branco, cristão, colonizador) e promover ações propositalmente decoloniais por meio do destaque e valorização das culturas, histórias e pensamentos das populações indígenas e afrocolombianas. A étnico-educação como ação decolonial, proposta no artigo de Quiñonez, é mais uma possibilidade de crítica e (re)existência ao “sistema-mundo patriarcal / capitalista / colonial / moderno europeu” (Grosfoguel, 2009) apresentada pela 14ª edição da Transversos

Para concluir, histórias e memórias, instituições, saberes e discursos, micro e macropolíticas, normas sexuais, programas culturais de gênero, autodeterminação e autoexpressão, demandas e direitos, opressões e hierarquias, vetores de normatização, dotações e cristalizações de sentido, possibilidades epistêmicas, intervenções corporais, potencialidades, afetos e encontros, negociações, jogos, subversões, fraturas, desestabilizações e contracondutas compõem o quadro de desafios e de objetivos desse dossiê sobre o colorido, plural e potente universo LGBTTQI, que ousa expandir e intensificar a vida.

Nota

  1. Páginas @raphaelelias @arterio.arteiro

Referências

FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática de liberdade.” In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.) Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

______________. História da Sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. 2004. Disponível em: http: / / www.poiesis.uff.br / PDF / poiesis15 / Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2017.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade, poder, globalização e democracia.” Novos Rumos, 37, 2002, p. 4-28.

Fábio Henrique Lopes

Marina Vieira de Carvalho

Ana Cristina Santos

Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2018.


LOPES, Fábio Henrique; CARVALHO, Marina Vieira de; SANTOS, Ana Cristina. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.14, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Histórias e culturas Afro-Brasileiras e Indígenas – 10 anos da lei 11.645 / 08 / Revista Transversos / 2018

Africanos/as, afro-brasileiros/as, indígenas: compartilhando saberes e experiências para o ensino

A Revista Transversos em sua 13a edição apresenta o encontro de distintos universos e identidades culturais. Uma reunião transversal de africanos, afro-brasileiros e indígenas. São sensibilidades singulares nas formas de fazer e sentir a história. Esse número também entrecruza duas linhas de pesquisa do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES): Áfricas e suas diásporas e Escritas Contemporâneas da História. Numa parceria que problematiza os horizontes do campo Ensino de História e instiga / provoca pesquisas nas áreas dos estudos de histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas.

História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena é o caput da Lei n.11.645 / 08. Por meio dela tornou-se obrigatório nos currículos da Educação Básica o ensino sobre os costumes, hábitos e vivências de homens, mulheres e crianças africanas, afro-brasileiras e indígenas que por tempos foram silenciadas, subalternizadas ou marginalizadas em algumas páginas da história.

Nesse sentido, a 13a edição da Transversos ilumina os 10 anos de lutas, resistências, saberes e sensibilidades de histórias e protagonismos que caracterizam a transversalidade dessas identidades. O emaranhado da palha que ilustra a capa desta edição torna-se uma representação dessa experiência. Ela que entrecruza os três mundos: africano, afro-brasileiro e indígena, traz especificidades, mas entrelaça e faz dialogar aprendizados.

No que se refere à aplicação da referida lei nas escolas, sejam públicas ou privadas – é bem verdade que mais nessas últimas – ainda existe uma enorme resistência ou desconhecimento do significado desse tipo de legislação para a sociedade na qual ela se insere.

Tal resistência bebe de duas fontes principais. Em primeiro lugar, o caráter predominantemente eurocêntrico dos cursos de formação de professores para o ensino básico. É, ainda, relativamente pequena a proposição de obras cuja autoria, por exemplo, seja de intelectuais africanos na bibliografia apresentada em cursos de graduação de história. Paralelamente a essa constatação, existem poucos profissionais capacitados para desenvolver didaticamente, de forma propositiva e não caricatural e exótica, os conteúdos propostos pela legislação para os ensinos fundamental e médio.

Porém, iluminada a questão, é significativo que diferentes pesquisas – tanto na área da Educação quanto no campo do ensino da história – estejam apontando esse gargalo. Percebe-se uma gama de trabalhos que têm como prioridade a reflexão de que esse tipo de legislação aplicada à realidade da educação brasileira não pode ser tratadaapenas como atendimento a uma demanda do movimento negro. Seu resultado prático – ou melhor, seu retorno social – não deve ser unicamente o de servir como um mecanismo de combate à intolerância etnicorracial em nosso ambiente escolar.

A promulgação da Lei 11.645, em 2008, tornou obrigatório o ensino de história e culturas indígenas na Educação Básica brasileira, quando modificou parágrafos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. Assim como a lei 10.639, de 2003, que se referia à inclusão da história e culturas afro-brasileiras e africanas no ensino de crianças, adolescentes e jovens, a 11.645 colocou novos desafios à formação de professores no Ensino Superior.

Nos últimos anos, assistiu-se ao surgimento de diversas disciplinas acadêmicas tais como História da África e História Indígena, dentre outras. Contudo, as dificuldades em se encontrar material que sintetize as pluralidades e as trajetórias histórica de etnias e culturas indígenas, além de africanas e afro-brasileiras, seja no passado e / ou no presente, ainda são grandes.

O caráter formativo que vem implícito na proposição da lei requer a consciência de professores, em especial os de história, e demais agentes públicos da educação de que em uma sociedade multiétnica e culturalmente diversa como a brasileira, não se pode privilegiar leituras que se baseiem simplesmente no conceito da assimilação das diferenças das “minorias” por uma maioria étnico-racial (Hall, 2003), muito menos implementar um currículo real no qual as manifestações culturais de grupos não-hegemônicos sejam apresentados de forma exótica ou caricatural. Essas práticas são reflexos de uma cultura racista e escamoteiam o caráter preconceituoso constituidor mesmo da sociedade brasileira.

O que a proposta deste dossiê dispõe e que aqui veremos explicitado de diferentes formas e com matizes teóricas variadas é que a verdadeira disputa após dez anos de implantação da Lei 11.645 / 08, em um momento política e juridicamente controverso no Brasil, é como relacionar, liberdades individuais e reconhecimento das diferenças sem hierarquizá-las ou priorizar qualquer uma delas. É uma questão que vai além do campo do ensino de história, como os artigos do presente dossiê vão demonstrar.

Nesses 10 anos, a Lei 11.645 / 08 tem motivado novos direcionamentos em relação ao ensino de Histórias e Culturas Africanas, Afro-brasileiras e Indígenas. Ela tem feito emergir novas questões a respeito dessas identidades. Qual África ou quais Áfricas estudar? Como se inventa a noção de uma Afro-brasilidade? Índio, indígenas ou indigenismos? Como compreender a pluralidade das culturas indígenas no Brasil e sua relação com as Américas?

As questões acima têm contribuído para combater os essencialismos que por tempo criou-se em relação a “povos indígenas” e à “África” num enquadramento homogêneo e cristalizado. A Lei 11.645 / 08 tem lançado professores e professoras no desafio de mergulhar na heterogeneidade e nos hibridismos que as identidades em questão são merecedoras. Não cabe mais entender os indígenas como um único povo e a África como um continente. Essas culturas e identidades são múltiplas e estão em constante transformação.

O dossiê, pois, consiste em um esforço de síntese que possa auxiliar professores em formação, além do trabalho em sala de aula, na Educação Básica ou no Ensino Superior. Espera-se que as informações aqui apresentadas sirvam para reflexões e discussões sobre grupos humanos que desde a chegada dos europeus ao continente americano, a partir do final do século XV, tiveram suas vidas profundamente impactadas pelo contato / encontro / desencontro / confronto.

Abrimos com o artigo O ensino de história e cultura indígena e afro-brasileira: mudanças e desafios de uma década de obrigatoriedade de autoria de Renata Figueiredo Moraes e Sabrina Machado Campos. Nele, discute-se os desafios da implementação das leis n.º 10639 / 03 e 11645 / 08 e de que forma suas temáticas foram, ou não, contempladas nos currículos escolares e materiais didáticos da educação básica.

Não obstante as dificuldades da promulgação da lei e da promoção do ensino de história e culturas indígenas e afro-brasileiras no nosso sistema educacional, Jonathan Busolli e Luís Fernando da Silva Laroque nos apresentam o texto A lei 11.645 / 2008 e os indígenas nos livros didáticos de história do ensino médio. Os autores discorremde que forma a questão indígena é abordada nos livros didáticos de História, que compõem a grade curricular do ensino médio e colocados à disposição pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD / 2013).

Já Joana Bahia e Farlen Nogueira – Tem angola na umbanda? Os usos da África pela umbanda omolocô – analisam a contenda entre distintos grupos que defendiam a umbanda omolocô. A disputa era entre os que defendiam uma umbanda de cariz mais espírita, e com isso, mais sincrética; e os que eram ciosos em valorizar os elementos do candomblé, numa expectativa de construir uma identidade africana para a religião.

Abordar como como as autoridades coloniais portuguesas, sob a égide de uma ação “civilizadora”, enfrentaram as chamadas doenças tropicais de suas possessões é o objetivo de O combate à doença do sono nas colônias portuguesas na África: medicina sob o signo do racismo e do darwinismo social (1901-1932)de Ewerton Luiz Figueiredo Moura da Silva. Para o autor, as estratégias usadas tinham uma dupla função: controlar as doenças e, principalmente, pugnar os saberes e práticas de cura das sociedades africanas.

Homo Academicus: as africanidades e afrodescendências nos cursos de história da UFPI e UESPI,de Lucas Rafael Santos Costa e Pedro Pio Fontineles, Filho percorre de que maneira essas instituições, que são os principais centros de pesquisa e ensino no estado do Piauí, lançaram mão da História e da Cultura afro-brasileiras para fomentarem a formação de professores de História, objetivando a valorização da diversidade étnico-racial.

O artigo de Pedro Henrique Rodrigues Torres, Por um “quase” herói da pátria (?): o almirante negro e a revolta da chibata em questão, reverbera a figura de João Candido, o Almirante Negro. O autor contempla a cidade do Rio de Janeiro e a Marinha brasileira, analisando os diferentes momentos da Revolta da Chibata e as disputas e debates atuais sobre a memória de João Candido.

Encerrando o dossiê, temos o artigo Metendo o negro na história: a participação do (africano), na formação do „brasileiro‟, na visão de Sílvio Romero, escrito por Cícero João da Costa Filho. A partir de teorias circulantes no século XIX, como o positivismo e evolucionismo, o autor demonstra como o polemista Silvio Romero tentou inferir uma dinâmica cultural que evidenciasse de que maneira os africanos contribuíram na formação nacional brasileira.

Ainda dentro da nossa proposta temática, Vinícius de Castro Lima Vieira e Fernanda Miranda de Carvalho Torres trazem a instigante entrevista Da estrada à universidade: uma conversa com Michael Baré, o primeiro aluno cotista indígena da UERJ.

Uma análise das narrativas dos anônimos cujas vidas colidiram com os interesses de uma cidade que se preparava para grandes eventos esportivos é o que traz o artigo Impertinentes corpos pretos na “Cidade Olímpica”, deJosé Rodrigues de Alvarenga Filho, na seção Experimentações desta edição.

Na seção Artigos Livres, André Dioney Fonseca em “Tempos de inquietação”: o contexto de 1968 nas páginas da revista a Seara da Igreja Assembleia de Deus cotejaos posicionamentos da revista A Seara, editada pela Assembleia de Deus, a respeito dos acontecimentos de 1968. O texto perscruta o alinhamento editorial da publicação à Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento do regime militar brasileiro.

Leis por si só não bastam para modificar a realidade, mas representam importantes avanços, especialmente em uma sociedade racista como a brasileira. Nesse sentido, este dossiê, ao comemorar uma década de existência desta legislação, busca auxiliar a compreensão das pluralidades e diversidades étnicas e culturais do continente americano. No espelho de Heródoto, afinal, nossos reflexos revelam, também, corpos e mentes indígenas e africanos. Esperamos que leitura das próximas páginas estimulem reflexões, práticas, saberes e despertem sensibilidades.

Referências

HALL, Stuart. Pensando a Diáspora (Reflexões Sobre a Terra no Exterior). In: Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003

Giovani José da Silva

Gustavo Sousa

Rogério Guimarães

Sonia Wanderley

Os editores


SILVA, Giovani José da; SOUSA, Gustavo; GUIMARÃES, Rogério; WANDERLEY, Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.13, mai. / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

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As NTICS e a escrita da história no tempo presente / Revista Transversos / 2017

No início deste século, refletindo acerca das mutações pelas quais passava o mundo da escrita, Roger Chartier afirmou que a “resistência” e o “estranhamento” do historiador à utilização ou a interveniência das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs) no seu fazer pareciam-lhe “lamentações nostálgicas”. Por outro lado, completava, outros olham para esse novo espaço de interação e produção textual com “entusiasmos ingênuos”.

Passada quase uma década dessas palavras, o que mudou na discussão sobre essa questão no Brasil e no mundo? Com certeza, muitos escritos já se somaram às ideias apresentadas pelo historiador francês na 10ª. Bienal Internacional do Livro. Mas, basta uma rápida visita aos trabalhos produzidos no país e verifica-se que a maioria discute formas de utilização das NTICs, relatam experiências, principalmente em sala de aula, mas, poucos se arriscam a romper o limiar de pensar a utilização dessas tecnologias por um viés funcional e auxiliar à escrita da história no tempo presente.

A proposta do presente dossiê pela linha de pesquisa Escritas Contemporâneas de História, do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades – LEDDES / UERJ, pretende dialogar com aqueles profissionais – acadêmicos ou não – que ousam romper o “estranhamento” dessa fronteira e compreender, sem o objetivo de profetizar, lembrando mais uma vez Chartier, que a história se escreve no e para o presente, refletindo seus problemas e incorporando as tecnologias e as ferramentas existentes para essa escrita. Compreendendo, acima de tudo, “os significados e os efeitos das rupturas que implicam os usos” das NTICs nas escritas da história nos dias de hoje, seja a escolar, a pública, ou a historiográfica.

Convidamos historiadores e demais profissionais que pensam a escrita da história ou a produção de narrativas, fundamentais para a materialidade do conhecimento histórico, a enviarem suas reflexões acerca do tema. Rompendo com a perspectiva apresentada acima, temos certeza que os trabalhos que passamos a apresentar (re)significaram a demarcação estabelecida há quase vinte anos para esta discussão e buscaram interpretar fronteira como um lugar de encontro e não apenas de limites.

O artigo que abre o dossiê é de autoria do jovem historiador digital Ricardo Pimenta. Sua reflexão problematiza os desafios do historiador contemporâneo mergulhado em uma época na qual o processo de produção do conhecimento, mesmo que de maneira transversal, está sendo intermediado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Além de ter que ampliar sua capacidade transdisciplinar, um limite antigo do profissional da área que se complexifica neste novo século, a pesquisa científica e sua divulgação são certamente atravessadas pela consciência de que para “a massa de ‘visualizadores de informação’, saber sobre um assunto, sobre um fato histórico, ou sobre qualquer informação ordinária, resume-se em consultar os motores de busca dispostos na internet”.

Pimenta nos lembra que a cultura digital, característica do presente e na qual estamos todos mais ou menos mergulhados, para além de nos exigir o desenvolvimento de novas competências, modifica estruturalmente pressupostos conceituais com os quais trabalhamos. Será que os regimes de historicidade serão sobrepostos por um ”regime de informação”?

Uma cultura marcada pela atuação e expressão de uma techné marcadamente multimodal e pela práxis da convergência dos registros / escritas / produções existentes no espaço eletrônico onde a relação com a representação do passado, enquanto prática informacional, é plenamente “atravessada” pelos suportes e plataformas mediadoras da informação, convidando-nos a refletir sobre nós mesmos e nossa relação com o tempo e espaço na era digital.

Outra porta abre-se acerca da influência da cultura digital na produção de sentido para informação / conhecimento histórico nos dias de hoje com o artigo O portal Metapedia: revisionismo histórico e negacionismo no tempo presente. Neste trabalho, Diego Leonardo Santana e Dilton Maynard analisam a criação de uma enciclopédia digital – o portal Metapidia – por grupos de extrema direita negacionistas. O portal, segundo os autores, apresenta conceitos e biografias, construídos a partir do revisionismo negacionista, oferecendo versões diferentes para os acontecimentos e conceitos históricos, sobretudos aqueles ligados à Segunda Guerra Mundial.

A análise de verbetes do Metapidia permitiu a Santana e Maynard problematizar um tipo de reescrita da história sendo desenvolvida na e pela rede mundial de computadores e o fato da internet servir de suporte na produção / divulgação pedagógica de posicionamentos intolerantes: “No Metapedia a história tem papel importante, ela colabora sensivelmente para legitimar uma visão fascista de mundo. Se tudo é uma farsa criada pelos adversários, cabe revisar a história e demonstrar o verdadeiro significado das coisas”.

O caráter pedagógico do espaço digital também é explorado por Raone Ferreira de Souza. Mas, seu artigo O podcast no ensino de história e as demandas do tempo presente: que possibilidades? discute a potencialidade das NTICs para o ensino de história escolar. O autor entrelaça História Pública e o campo do Ensino de História para, partindo de questões candentes no tempo presente, pensar a constituição do saber histórico escolar a partir do desenvolvimento de uma oficina de podcast.

Dialogando com a História Digital, Souza afirma que a hipertextualidade, característica das redes digitais, alterou os modos de produção historiográfica. O professor deve estar atento, portanto, às narrativas históricas produzidas a partir desta influência e, mais do que tolerar a sua presença na cultura escolar, utilizar-se delas como ferramenta para a história escolar fazer sentido para os aprendizes. O projeto “Histórias na podosfera”, oficina desenvolvida para que professores de história pudessem utilizar a mídia Podcast como meio de produção de narrativas históricas no espaço escolar, foi a fonte fundamental da reflexão de Souza.

Nosso dossiê também flana pelas vias mais públicas da história sob a guia de Daniel Carvalho Pereira, que nos oferece uma leitura saborosa da historiografia alemã recente para pensar interfaces possíveis entre Ensino de História e como diz no título de seu artigo a Didática da História Pública. Pereira, em diálogo com autores como Jeisman, Bergman e Rüsen nos fala da importância de concebermos uma literacia da História mais alargada, que dê conta de outras (novas) formas de estar no mundo, o que, para o autor, necessariamente, deve ultrapassar as paredes da sala de aula.

Argumentando em favor de uma postura autoreflexiva da didática, ou da Geschichtsdidaktik, que no alemão refere-se especificamente à Didática da História reconectada à Teoria, Pereira poderia parecer sugerir um retorno à teoria que nos encerraria mais uma vez entre os muros da Torre de Marfim da Academia, entretanto, costura caminhos mais híbridos, ou porosos, por assim dizer, ao amarrar a teoria a uma visão fundamental de consciência histórica que se engaja inexoravelmente com uma agência do público inconcebível se permanecemos entre os muros da escola e / ou da universidade. Assim, seguindo as indicações de Pereira, a História Pública parece ser a chave mestra para abrir as portas da sala de aula a práticas que nos permitam reelaborar a Geschichtsdidaktik numa roupagem de Didática da História Pública, e as tecnologias digitais, também aí, parecem ser grandes aliadas.

Com um objeto bastante distinto dos demais artigos vistos até aqui, Igor Lemos Moreira dá o play para outra faixa do dossiê – onde a música pop e ícones efêmeros desse universo particular se encontram com conceitos historiográficos do porte de espaços de experiências e horizonte de expectativas, de Kosseleck. Noutro registro, porém, daquele de Pereira, aqui a historiografia alemã dá “pano para manga” na discussão de outro espaço de importância nesse dossiê que não é a sala de aula, mas o vasto mundo da World Wide Web, neste caso como arena para disputas narrativas no Tempo Presente. Ao analisar um artigo em um portal da web como fonte histórica para se pensar regimes de historicidade e modelos biográficos, Moreira nos alerta para a importância de, na Era Digital, repensarmos o estatuto das fontes históricas e nos lançarmos na, de certa forma, melindrosa, atividade de fazer a crítica histórica de um “documento” completamente novo (born digital) que, pelo seu inerente contexto (a Web) tem dinâmicas bastante distintas das fontes que costumamos encontrar bem guardadas em arquivos.

Se a discussão da influência da tecnologia digital nas mudanças do regime de historicidade contemporâneo parece ser um eixo recorrente, mesmo que indiretamente, na análise de parte dos artigos desta coletânea, a pesquisa que fecha o dossiê aprofunda tal discussão com aportes da ciência da Comunicação.

O trabalho de Marialva Carlos Barbosa – Comunicação: uma história do tempo passando – se debruça sobre quatro décadas de pesquisas de pós-graduação desta área do conhecimento e conclui sobre a especificidade presentista destes estudos. Para a autora, o esfacelamento da articulação entre passado, presente e futuro que caracteriza os nossos dias é também uma consequência da forma como a mídia, seja a tradicional ou a informacional, realiza sua construção temporal.

Interessante pensar como em um tempo marcado pela hegemonia da pauta midiática, onde os meios de comunicação e suas narrativas exercem papel estratégico e se apregoam como produtores de uma história imediata, a escrita da História pode ser influenciada. Afinal, como diz Barbosa: “A temporalização do presente contida nas premissas do olhar comunicacional caracteriza-se pelo agora mesmo, isto é, percebe a ação humana, sobretudo, num tempo presente que passa durando”.

Fazem parte também da temática proposta para o presente dossiê a entrevista com a professora e pesquisadora em Ensino de História Marcella Albaine e a resenha de seu editado livro Ensino de História e Games: dimensões práticas em sala de aula realizados respectivamente pelas responsáveis por esse número da TransVersos, Anita Lucchessi e Sonia Wanderley. Nada como valorizar o trabalho de uma jovem profissional que leva a sério a proposta de refletir / trabalhar a partir do diálogo entre saberes e narrativas de diferentes origens, incluindo aí aqueles que chegam à cultura escolar por conta da massificação da cultura digital, o saber histórico escolar e a teoria da história.

Por fim, o mesmo frescor corajoso que identificamos nos trabalhos que fazem parte do dossiê temático, encontramos no artigo livre que fecha este número da revista. Guilherme Moerbeck e Luciana Velloso discutem como utilizar o conceito de cidade, em suas múltiplas possibilidades – temporais, espaciais, territoriais, simbólicas, de pertencimento e identitárias – como ferramenta na construção das noções de cidadania e de urbano para alunos do Ensino Fundamental de uma escola da região metropolitana do Rio de Janeiro, o município de Duque de Caxias.

Inquietos didaticamente, os professores visitam recentes discussões teóricas do campo historiográfico e de outras ciências sociais para planejarem uma aula como um texto autoral que reflita as especificidades do saber histórico escolar e produza sentido para o cotidiano de seus alunos, sujeitos que, como lembram, vivem em uma cidade que está dividida e divide.

Anita Lucchesi

Sonia Wanderley


LUCCHESI, Anita; WANDERLEY. Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.11, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Áfricas e suas diásporas / Revista Transversos / 2017

A Revista Transversos em sua 10a edição floresce a partir de múltiplos esforços. Seiva, fibra e ritidoma1 vêm de resultados da linha de pesquisa Áfricas e diásporas negras do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES), que contempla os estudos africanos, assim como, problematiza a diáspora negra a partir das manifestações políticas e culturais no Brasil.

Por obstinação, analisa-se as matrizes discursivas que definem as identidades culturais e as reinvenções da África e africanidades no Brasil a partir da Lei Federal 10.639 / 03.2 Esta edição é incensada pela atuação de autores angolanos, brasileiros, estadunidenses, que, pela diversidade dos temas, promovem a pluralidade como cariz desse dossiê. O prazer motivado pelos laços, reencontros e resistências, iluminam as diferentes histórias das Áfricas e suas diásporas. Por lá e por aqui, homens, mulheres e crianças experimentaram histórias singulares em suas trajetórias de vida.

A arte do jovem artista-historiador José Victor Raiol traduz esse sentimento de ser e espargir. A árvore da vida, um baobá estilizado, mostra a dimensão de uma África robusta, diversificada e propagadora. Enquanto, suas folhas proliferam vidas, sujeitos, discursos e experiências. O baobá e suas folhas tramam o fio condutor dessa edição: o entrecruzamento da África –com suas raízes históricas e suas vias repletas de seivas- e a heterogeneidade das diásporas com – o vento que conduz suas folhas, sua transformação e sua continuidade.

São laços que unem as duas margens do mundo afro-atlântico-americano; reencontros como formas de multiplicar os objetos de estudos; e por fim; ampla resistência. Afinal, africanos, africanas e as identidades diaspóricas lutaram os mais diversos combates em prol das suas histórias. E ainda lutam!

Logo de início, o dossiê faz um registro de solidariedade a luta dos professores, técnicos, bolsistas, discentes e da comunidade que resistem aos ataques à Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Um baobá das políticas afirmativas, em nosso país, a UERJ diasporizou seu sistema de cotas aos afrodescendentes por outros espaços do Brasil. Além disso, não podemos esquecer da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Em 2017, a UNILAB sofreu com os cortes de incentivos estudantis aos alunos dos países africanos. A partir da luta, a comunidade da UNILAB reconquistou a garantia dos estudantes de ingressar na Universidade. Em nome da Revista Transversos, obrigado por vocês existirem e resistirem. Continuemos na luta!

Esse pensamento como ação nos direciona para a produção de uma escrita da História Africana como definida por Carlos Lopes: uma pirâmide invertida. Segundo o guineense:

Uma história que se vai concentrar nas mudanças sociais, na contribuição africana, na resistência ao colonialismo e no conceito de iniciativa local. Uma História que tentará demonstrar que se a civilização ocidental bebeu no conhecimento grego, não é por acaso que Platão, Eudore e Pitágoras viveram no Egito entre 13 e 20 anos. Egito visto como uma civilização negra por excelência.3

Uma História da África feita por africanos / as e demais pesquisadores / as sensíveis as particularidades das múltiplas historicidades daquele continente. Uma narrativa ativa e altiva das singularidades das experiências africanas. Já a heterogenia das diásporas segue as pistas do Atlântico negro de Paul Gilroy em que:

No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo.4

Espalhar-se não significa manter uma identidade cristalizada e homogênea. Assim como Gilroy, os nossos estudos combatem a essencialização, que muitas vezes – nos desejos da naturalização – persistem nos estudos diaspóricos. Não se trata, exclusivamente, de entender a vida de africanos e africanas fora da África, mas de analisar o saber / conhecimento desses sujeitos hibridizar / espargir-se nas várias partes do mundo.

Com saber / sabor os artigos nos embalam e instigam. Nas pistas do baobá estilizado e o espargir de suas folhas, a 10a edição é inaugurada com o artigo de Judith Carney e Rosa Acevedo – Plantas de la diáspora africana en la agricultura del Brasil. As autoras examinam as plantas de origem africana que se tornaram fundamentais para a subsistência e economia no período da escravidão. Ao traçarem o perfil dessas plantas, analisam as distorções nas narrativas da troca colombiana, que permaneceram centradas na agência europeia. Em destaque, a ênfase colocada no conhecimento botânico africano e sua expressão em paisagens de escravidão.

Alair Figueiredo Duarte e Maria Regina Candido no artigo Será possível, na atualidade, escrever a História Antiga da África?- analisam como construir um olhar alternativo afastado da narrativa eurocêntrica hegemônica, repleto de preconceito sobre o continente africano, considerado uma sociedade primitiva sem escrita, sem passado e sem história. Com ousadia propõem um rompimento, de vez, com os estereótipos que tentam impingir a História da África.

Condições políticas da era de ouro da Dhimmah na história do Egito islâmico (séculos IX e X AD) de Alfredo Bronzato da Costa Cruz percorre o período de governo fatímida do Egito (969-1171). O texto reconstitui algumas tramas que compuseram a complexa conjuntura política do Egito e do Levante no interior do ecúmeno islâmico dos séculos IX e X AD que permitiu afirmar como o mais tranquilo e próspero período para os judeus e cristãos desde a conquista islâmica do Vale do Nilo até a Contemporaneidade.

Vivian Santos da Silva escreve sobre O Conflito Tuaregue ao norte do Mali: a geopolítica da resistência no Sahel Africano. O artigo analisa o conflito a partir da crítica da geopolítica, em que se apreende o poder e sua relação com o espaço de forma multidimensional. Por meio dessa perspectiva, a autora possibilita uma maior compreensão do complexo movimento de resistência, de insurgência e de luta pela emancipação política.

Vestígios de uma fábrica britânica em fotografias de seus trabalhadores de Rute Andrade Castro estuda a exploração britânica de recursos minerais e humanos num contexto imperialista do século XIX, em uma vila do sul da Bahia – Brasil. A partir de fotografias do empreendimento britânico, a autora adensa as possibilidades dos usos históricos daquelas imagens.

Gian Carlo de Melo Silva investiga o batismo, e sua dinâmica numa sociedade marcada pela escravidão, como uma das formas de alforrias existentes no período colonial no artigo “Dizia que forrava a dita criança”: os forros na pia batismal no Recife Setecentista.

Já em Africanas, libertas e seus filhos em narrativas de violências e outros dramas entre a escravidão e o pós-abolição no Sul da Bahia, Cristiane Batista da Silva Santos nos traz histórias de adversidades femininas vivenciadas por africanas e suas descendentes – escravizadas, libertas ou livres pobres – em situações de violência nas mais variadas formas entre as décadas finais da escravidão e período posterior a abolição.

A parceria de Alan Augusto Moraes Ribeiro e Deivison Mendes Faustino no artigo Negro tema, negro vida, negro drama: estudos sobre masculinidades negras na diáspora revisam um conjunto de estudos publicados em língua portuguesa e língua inglesa que tratam do tema masculinidades negras. Nesse processo, refletem sobre como raça, gênero, classe, etnia, sexualidade e nacionalidade foram articulados para falar sobre homens negros nessas literaturas.

O artigo Museu Afro Brasil: a querela da identidade, de Ana Carla Hansen da Fonseca, debruça-se sobre os avanços e limites do trabalho do museu na construção de memórias, identidades, na preservação do patrimônio africano, e nas formas de representação dos africanos que foram escravizados.

Mario Eugenio Evangelista Silva Brito com o artigo Uma leitura desde a diáspora sobre historiografia africana independentista: a década de 1950, os casos de K. O. Dike e C. A. Diop faz um estudo sobre a historiografia acadêmica africana (feita por africanos), enfocando as obras: Trade and Politics (1956), de Kenneth Onwuka Dike e L’Afrique Noire Précoloniale (1960), de Cheikh Anta Diop. Desta forma, o articulista expõe a especificidade dessa historiografia nos diferentes contextos de sua produção, além de debruçar-se sobre a trajetória socioespacial desses historiadores.

Em O papel da Comissão do Golfo da Guiné na segurança marítima em África, Rita Suriana Amaro Gaspar analisa a questão da segurança marítima na região do Golfo de Guiné. A partir das recomendações das Organizações das Nações Unidas à União Africana, a autora avalia de que forma a garantia da defesa e segurança da região tem sido feita tendo por orientação as diretivas do “Código de Conduta de Yaoundé”.

Abordar as representações sobre relações raciais erigidas por diplomatas estadunidenses, autoridades portuguesas, nacionalistas angolanos e militantes pelos direitos civis nos EUA é o objetivo de Raça e diplomacia: a correspondência diplomática estadunidense sobre Angola, 1960-1961 de Fábio Baqueiro Figueiredo. O autor baseia sua análise a partir das correspondências consulares estadunidense sobre Angola entre 1960 e 1961, num momento de ascensão política mundial das discussões sobre raça.

Karina Ramos em A angolanidade literária nas páginas da Revista Mensagem (1951- 1952), apresenta as propostas de construção de uma identidade cultural para Angola do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA) por meio da revista literária Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola (1951-1952). No universo discursivo da revista Mensagem, a autora problematiza as formas de construção de uma angolanidade literária.

Encerrando o dossiê, temos o artigo Cultura, identidade e neoliberalismo na Ruanda pós-genocídio: em busca de um novo homem ruandês escrito por Danilo Fonseca. O autor estuda as propostas realizadas, no âmbito de práticas e valores culturais, pelo governo da Frente Patriótica Ruandesa após o genocídio ruandês de 1994 cometido contra tutsis e hutus moderados. Assim, analisa as mudanças nas questões que envolvem o patriotismo, a unidade nacional e o mundo do trabalho.

Na sessão de artigos livres, Victor Hugo Abril em Um estudo sobre os Governos interinos no Rio de Janeiro (séculos XVII e XVIII) esquadrinha os governadores coloniais interinos no espaço-tempo da cidade do Rio de Janeiro, c. 1680 – c. 1763. Em sua análise, privilegia os agentes nas suas trajetórias, não só no reino, como nas colônias.

Merece destaque também Other Views on the African Diaspora: An Interview / Outros olhares sobre a diáspora africana: uma entrevista com o Prof.º Robert Voeks, da Universidade da Califórnia, realizado por Gustavo Pinto de Sousa e Rogério da Silva Guimarães.

Convidamos a seguir os leitores e leitoras a descortinarem as próximas páginas. Afinal, “somos cultura que embarca”5. Enfim, que os artigos inquietem, provoquem e sejam compartilhados. Em tempos africanos e diaspóricos: desejamos caminhos abertos!

Notas

  1. Camada externa da casca das árvores e outras plantas lenhosas. Cuja função, entre outras, é proteger a planta. In: < http: / / dicionarioportugues.org / pt / ritidoma>.
  2. Atualmente, a Lei 10.639 / 03 foi reformulada pela Lei 11.645 / 08 que além dos estudos de História e Cultura Africana e Afro-brasileira também contempla a História e Cultura Indígena.
  3. LOPES, Carlos. A pirâmide invertida – historiografia africana feita por africanos. In: Actas do colóquio Construção e ensino da história da África. Lisboa: Linopazas, 1995. p.26
  4. GILROY, Paul. Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001. p.11.
  5. Você Semba de Lá, Que Eu Sambo de Cá- o Canto Livre de Angola. GRES Vila Isabel, 2012.Autores: Evandro Bocão, Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Artur Das Ferragens. Disponível em: http: / / liesa.globo.com / 2017 / por / 09-colocacoes / 2012.html

Gustavo Pinto de Sousa (UFOPA)

Rogério da Silva Guimarães (UERJ)


SOUSA, Gustavo Pinto de; GUIMARÃES, Rogério da Silva. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 7, n.7, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania cultural / Revista Transversos / 2017

A ambição discreta de ser ensaio ou tentativa move esta edição da Transversos. Trata-se aqui de experimentar, no sentido duplo do testar e do sentir. A moderação justifica-se diante da imensidade da questão: as vulnerabilidades. Investigá-las é apurar uma escuta “em abismo”, é tentar conhecer essa frequência incômoda. A tarefa, aqui, é mergulhar no historicamente silenciado em busca de seu som.

Dois termos conduzem as contribuições selecionadas: pluralidade e cidadania cultural. Das frestas de uma sociedade hoje globalizada, através de estreitas passagens que permitem alguma luz e algum ar, materializam-se corpos, rostos e vozes multiplamente apagados na história: vulneraribilis, do latim, “aquele que pode ser ferido”. Sujeitos que, na gramática da vulnerabilidade, são somente pessoas indeterminadas, cujo nome não se enuncia. Submetidos / sujeitados, são o avesso da versão luminosa dos indivíduos modernos – esse espécime em cujo nome se fala de liberdades, direitos e conquistas. No reverso de uma ordem discursiva eufórica, colhidos pela trágica contingência histórica e social, indivíduos e grupos confrontam-se cotidianamente com o risco, a adversidade e a deterioração forçada de seus laços e memórias.

Sem abrir mão da definição econômica de vulnerabilidade, novas reflexões sobre o tema permitem, hoje, ampliar não só o campo de exame do problema – nas ciências humanas e sociais, sobretudo – bem como rejeitar certo determinismo das visões tradicionais. A pobreza, condição decisiva dos grupos vulneráveis não é, assim, tomada como sinônimo de uma passividade incontornável. Nas franjas da lógica do mercado, de uma sociedade sempre disposta a reforçar e reinventar hierarquias, e disposta igualmente a multiplicar os preconceitos correlatos, um repertório de ações às vezes minúsculas, mas constantes, nos dá notícias da existência material e simbólica dessas coletividades e subjetividades caladas à força.

Nesse sentido, a Transversos traz aos leitores e leitoras a possibilidade de pensar a vulnerabilidade como pluralidades e como cidadania cultural, termos que nomeiam uma das Linhas de Pesquisa do Laboratório de Estudos Sobre as Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ). Aliás, é preciso que se diga, o próprio espaço institucional em que se situa o Laboratório experimenta, atualmente, as ambiguidades e as contradições do campo que elegeu investigar. Ao mesmo tempo em que é um espaço legítimo de produção de conhecimento científico, vivencia a situação de vulnerabilidade em que se encontra, hoje, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Produzir mais uma edição da revista é, assim, uma ação política de afirmação e de resistência de pesquisadores e pesquisadoras da instituição.

Este número marca também uma inflexão da própria linha de pesquisa, momento no qual se propõe uma ampliação do entendimento de vulnerabilidade. O conceito, que emerge do debate acerca dos Direitos Humanos, foi apropriado pela Saúde Pública com um fim específico, na década de 1980, o de demarcar os setores sociais com mais riscos de contaminação do vírus da Aids, considerando a relação entre a exposição à doença e a condição socioeconômica do vulnerável.[1] Logo as ciências humanas e sociais entraram no debate, refletindo sobre o perfil concreto da população considerada de risco. Esses estudos mergulharam no tema, investigando os contextos de desigualdade material e simbólica em que tais segmentos se encontravam. Para Rubens de Camargo Ferreira Adorno: “a expressão vulnerabilidade social sintetiza a ideia de uma maior exposição e sensibilidade de um indivíduo ou de um grupo aos problemas enfrentados na sociedade”.[2] O especialista em Saúde Pública acrescenta, ainda, que a vulnerabilidade “reflete uma nova maneira de olhar e de entender os comportamentos de pessoas e grupos específicos e sua relação e dificuldades de acesso a serviços sociais como saúde, escola e justiça”. As ponderações do autor fornecem alguns aspectos do caminho escolhido para mergulhar nesse debate.

Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, no artigo que abre o Dossiê, oferece importantes chaves para a reflexão aqui desejada. Examinando as tensões entre identidade e diferença cultural, o autor mobiliza operadores conceituais decisivos, como o termo différance, cunhado por Jacques Derrida, para problematizar termos fundadores do pensamento ocidental contemporâneo, como, por exemplo, o fonocentrismo. Da perspectiva sugerida pelos Estudos Culturais e Literários, Tonani do Patrocínio atende ao debate sobre a vulnerabilidade ao dar espessura teórica às questões culturais e identitárias. No percurso proposto, problematiza matrizes discursivas dominantes e ilumina um caso específico, o tratamento discursivo da surdez, retirando-a, como assinala, “de uma leitura baseada na patologia e passando a compreendê-la como elemento formador de uma identidade própria: a identidade surda”.

Em seguida, Lucas Freire examina o modo como a luta pelos direitos das pessoas transexuais passa pelo reconhecimento de suas existências como humanas ou não no contexto das relações heteronormativas em que se amparam as representações jurídicas. Nessa relação entre saber e poder, embasado em sólida pesquisa, o autor mostra como o discurso médico é acionado de modo a dar inteligibilidade às existências e habilitá-las como portadoras de direitos civis.

Entre barracões de escolas de samba e a sala de aula: circulando os saberes da arte do carnaval, artigo de André Porfiro, recupera a singularidade da criação artística do carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, para, em seguida, experimentar esse conhecimento em sala de aula. A originalidade da abordagem é realçada pelo texto envolvente, através do qual percebemos que a contingência é a matéria-prima da “invenção”. Desta, como sugere o autor, é possível engendrar novas estratégias de ensino e aprendizado das Artes em uma escola pública do Rio de Janeiro.

Se a linguagem significa aquilo que entendemos como realidade, cabe, então, ao historiador desconfiar de categorias pré-estabelecidas. É o que faz Gustavo Sousa, ao problematizar a construção do Oceano Atlântico como espaço disciplinado-disciplinador, como diria Michel Foucault. Na dimensão concreta e simbólica do mar-oceano, os diferentes Estados Nacionais envolvidos no tráfico de escravos vão reivindicar o uso legítimo de suas águas utilizando, para isso, o moderno discurso jurídico do século XIX, conforme aprendemos do cuidadoso artigo.

Em Uma evangelização duvidosa: o caso do Frei Gaspar, Thiago Bastos de Souza propõe, a partir de fonte inédita, que experiências históricas não são nem essencializadas nem dualistas, mas sim marcadas pelas contradições entre os dispositivos que convocam a assumir categorias hierárquicas e a forma como cada indivíduo responde a tal chamamento. É o caso do processo aberto pelas mulheres indígenas do pueblo de Turuana contra o frei franciscano Gaspar. O ensaio minucioso equilibra reflexão teórica e manejo de dados empíricos. Não apenas no pleito das mulheres submetidas ao abuso sexual, bem como na figura de um mediador local, embaralham-se as certezas previamente dadas na historiografia sobre o período. A reflexão faz lembrar a afirmação de Stuart Hall, segundo o qual as identificações são “pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”.

Problematizar os papéis supostamente passivos das “excluídas” diante da atuação ativa dos “incluídos” é a proposta de Maria Eugenia Cruset em Imigración y exilio: el papel de las mujeres. Ao investigar a atuação de mulheres bascas na Argentina, a autora recusa-se a afirmá-las como simples vítimas, propondo-se a validar positivamente suas atuações políticas – ainda que se vejam inseridas em posições hierárquicas desiguais. Cruzet nos informa sobre as diferentes atuações e papéis destas mulheres imigrantes, enfatizando aquilo que Michel de Certeau definiria como um jogo de tática e resistência.

Ainda na perspectiva de renovação das pesquisas sobre migrações em seus aspectos transnacionais, El exilio radical y la última dictadura militar en Argentina, de María Soledad Lastra, analisa as tensões e conflitos dos exilados do partido argentino Unión Cívica Radical (1974-1983), grupo duplamente marcado por sua condição externa, no exílio, e sua condição interna, pois a UCR se manteve atuante na Argentina durante o período ditatorial. Para melhor compreender essa vulnerabilidade, Lastra apresenta o caso específico do jornalista argentino Miguel Ángel Piccato em seu exílio no México. Aqui, a suposta identidade oculta dos exilados é questionada para acentuar a naturalização de contradições como efeito dos próprios dispositivos de poder em que são construídas.

História, ficção e cinema: distopias sobre a personagem indígena argentina, de Juliano Gonçalves da Silva e Érica Sarmiento, apresenta uma perspectiva diferenciada acerca de duas produções cinematográficas contemporâneas: os filmes Jauja (2014) e Bolívia (2001), respectivamente do argentino Lisandro Alonso e do uruguaio Israel Adrián Caetano. Num caminho original, os autores examinam as duas obras sob o ponto de vista teórico da ficção, realçando a trágica persistência histórica do extermínio do indígena e seu apagamento discursivo e simbólico.

Desde Descartes, partimos do princípio do cogito para considerar a existência humana. A partir daí, a racionalidade guiaria a compreensão do que chamamos de realidade, presidindo nossa forma de atuação sócio-política, ética e estética. Em Aos simbolistas, as margens: experiências estéticas e subjetividades politicas marginalizadas, Mariana Albuquerque Gomes questiona a primazia da racionalidade como sistematizadora das ações políticas. Por meio de um sensível partilhado, conforme apresenta Jacques Rancière, a autora afirma a criação estética dos simbolistas brasileiros do final do século XIX como ato político. Tal produção resulta do desencanto desse grupo com a funcionalidade lógica da vida moderna e da percepção de que suas subjetividades políticas e estéticas não são aceitas como legítimas. O texto pensa a vulnerabilidade a partir de um exercício densamente teórico em torno da marginalidade, articulando referenciais historiográficos, filosóficos e sociológicos.

Reforçando a articulação entre vulnerabilidade e cidadania cultural proposta neste Dossiê, Flávia Almeida nos informa das relações socioeconômicas que as atrizes das companhias de teatro portuguesas vivenciavam no final do século XIX e início do século XX no Rio de Janeiro. Almeida destaca a precariedade das condições de trabalho dessas atrizes, inseridas num ordenamento social que as categorizava em identidades profissionais e de gênero hierarquicamente inferiores. No entanto, em meio às contradições do mercado teatral carioca, essas atrizes, como nos casos examinados, se apropriavam desses conflitos com vistas a defender interesses próprios, explorando afirmativamente as rivalidades instigadas pelos fãs e repercutidas pela imprensa, numa estratégia que ampliava a legitimidade de seu trabalho e o poder de suas vozes.

Na sessão Notas De Pesquisa, José Roberto Saiol e Lorelai Kury discutem o tema da modernização técnica e científica a partir do trabalho do ilustrador francês J. J. Grandville (1803-1847). Examinando a interação dos aspectos descritivos à natureza imaginada e propriamente artística das imagens, os autores mostram como a modernização penetra o cotidiano e é percebida na obra de Grandville. Na investigação dessa tópica visual específica, revelam-se importantes referências ao campo das artes, especialmente à música, à escultura e à literatura.

Em Do quimono à casaca: transformações e marcas identitárias no indumentário japonês, Jaqueline de Sá Ribeiro e Fabiano Vilaça apresentam um objeto de estudo pouco prestigiado pela historiografia brasileira: o “distante” oriente japonês e a moda, aqui tratada como fonte legítima de trabalho para o historiador. As relações de poder – tanto material quando simbólico – são problematizados por meio da indumentária. O resultado é uma análise sensível e inovadora do Japão em seu momento de transformação social em direção a uma sociedade moderna e ocidentalizada.

A sessão Artigos Livres se abre com a colaboração de Tatyana Maia, As comemorações cívicas do 1º de Maio nos cinejornais da Agência Nacional da Ditadura Militar (1964-1979). Em artigo marcado pela precisão e sensibilidade, a autora examina três diferentes momentos, refletindo sobre a evolução das representações visuais do trabalhador no período da ditadura civil-militar brasileira. Remontando ao Governo Vargas, estabelece e analisa as ressignificações políticas das relações entre trabalhador, patronato e Estado durante a ditadura. Das imagens fílmicas examinadas no artigo depreendem-se as linhas mestras da cultura visual oficialmente orientada: a figura do trabalhador simultaneamente partícipe e beneficiário da modernização-conservadora. Na contrapartida, como o texto demonstra, evidencia-se o silenciamento das vozes da oposição e dos movimentos sociais.

Aceleração do tempo e processo histórico em Reinhart Koselleck e Timothy Brook, de Luís Claudio Palermo, propõe um exercício de aproximação entre duas reflexões historiográficas distintas no intuito de aprofundar noções de tempo histórico. Em seguida, Luciana Christina Cruz e Souza, em Patrimônios possíveis: modernidade e colonialidade no campo do patrimônio, instiga à discussão sobre as categorias de episteme que definem o que é aceito como conhecimento inteligível e, por isso, verdadeiro. A partir da noção de colonialidade, a autora analisa os critérios de seleção do que é ou não um patrimônio cultural. O artigo questiona a especialização do saber embasada unicamente em referenciais teóricos globais do eixo norte, como forma universal de legitimação sobre o conhecimento das humanidades. Afirma, assim, a importância de criarmos categorias de pensamento próprias às experiências de colonialidade e de analisarmos o campo do patrimônio e as possibilidades de constituição de novos saberes para as políticas de preservação.

Em Favela, mídia e remoções: discurso jornalístico, imagens sociais e políticas públicas de habitação em favelas cariocas, Pablo Nunes problematiza o papel da imprensa na construção e sedimentação de imagens-estereótipos dos habitantes das favelas cariocas. O autor seleciona três momentos da história dessas comunidades na cidade do Rio de Janeiro para analisar a relação entre Estado, imprensa e sociedade na condução de políticas públicas direcionadas aos moradores de tais comunidades. Nunes destaca os jornais como demarcadores privilegiados da opinião pública, a qual legitima, por sua vez, as políticas violentas e segregadoras do espaço público, bem como naturaliza os tradicionais estereótipos dos chamados favelados.

Um aspecto pouco conhecido do cristianismo é apresentado em Ritos de humilhação: al-qasim ibn ubaydallâh e os cristãos coptas (734-741), de Alfredo Bronzato da Costa Cruz. A vivência dos cristãos coptas, dentro da experiência histórica de um Egito controlado politicamente pelo califado omíada é marcada por repressões, explorações e humilhações públicas destes cristãos por não partilharem da fé islâmica. Por meio da História do Patriarcado Copta de Alexandria, o historiador analisa as táticas de resistência dessa comunidade ao criar uma realidade na qual os eventos ocorridos adquiriram significados religiosos que possibilitaram a união e preservação do grupo. Aqui, mais uma vez, a importância do cultural se faz presente nas estratégias de construção de si e do outro por meio de significações partilhadas socialmente.

Finalizando essa edição, Horacio Miguel Hernán Zapata apresenta a resenha do livro Una “guerra que se continúa por otros medios”. Acerca de los Tratados de Paz entre el estado argentino y las sociedades indígenas de la Frontera Sur (1850- 1880), de Graciana Pérez Zavala. A obra aborda os conflitos e negociações entre o Estado Nacional Argentino e as chamadas fronteras interiores (Chaco, Pampa y Patagonia), região em que o governo argentino não conseguiu estabelecer seu controle durante o século XIX. O autor destaca a renovação interpretativa empreendida por Pérez Zavala, autora que destaca, ao lado das ações violentas, o modo como o governo central teve que desenvolver outras formas de atuação – diplomáticas – com as comunidades indígenas para, assim, negociar o estabelecimento de suas fronteiras. Aqui, novamente, as relações históricas não são polarizadas entre vítimas e opressores; destacam-se, outrossim, suas características híbridas, os confrontos e negociações entre os grupos analisados. O que contribui para o atual debate sobre as demarcações de terras indígenas e os direitos das populações originárias da América dentro dos Estados nacionais modernos.

As múltiplas respostas à chamada desta Transversos confirmam o quanto pulsam, inquietos, o pensamento e a curiosidade. Os vulneráveis são aqui os que resistem; são os que delatam a falha do discurso. Aqueles que, na sua forçada inexistência e mudez, insistem em apontar as fraturas do mundo e em desenhar seus nomes com letras, às vezes mínimas, no livro cotidiano.

Esta edição não seria possível sem a colaboração de José Roberto Saiol, Juliana Martins, Priscila Araújo e Paulo Henrique Pacheco. Juntos, inauguramos a nova fase da Transversos, que passa agora a sair trimestralmente. Visibilidade e vida longa.

Notas

  1. A esse respeito, consulte-se Carolina Salomão Corrêa. Violência urbana e vulnerabilidades: O discurso dos jovens e as notícias de jornais. Rio de. Janeiro, PUC-RJ, 2010, Tese de Doutorado.
  2. Rubens de Camargo Ferreira Adorno. Um olhar sobre os jovens e sua vulnerabilidade social. São Paulo: AAPCS -Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001

Laura Nery

Marina Carvalho

Rio de Janeiro, 17 de abril de 2017.


CARVALHO, Marina; NERY, Laura. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 9, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Resistências: LEDDES 15 anos / Revista Transversos / 2016

LEDDES 15 anos. Atravessando Experiências: diversificando possibilidades [1]

Comemorar é resistir

Comemorar é combater e, nesse sentido,

comemorar é lutar.

Lutar é verbo que destaca ação

verbo que propõe flexão,

inflexão, reflexão…

Verbos que me lembram LEDDES.

Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais.

Espargindo…

Transversal,

Transcultural,

de saber / sabor de saber / fazer

de saber / poder.

Eu posso, tu podes, ele pode… nós LEDDES [2]

As resistências funcionam como pontos e nós irregulares que se distribuem com maior ou menor densidade no tempo e no espaço. Podemos falar numa cotidiana resistência ou como afirmava De Certeau (1994) na microfísica da resistência em resposta a provocação de outro Michel, desta feita Foucault (1979) para quem as táticas e suas clivagens são resistências fragmentadas que fazem emergir as relações de poder em suas múltiplas tramas. O trabalho intelectual como método de invenção, investigação e intervenção que resiste desde seu próprio procedimento ativa um saber que nasce resistindo, saber que informa a trajetória do nosso LEDDES como um dente de leão em sua reprodução rizomática.[3]

Propomos inquirir o pensamento como forma de resistência de análise das diferenças e, em especial, das matrizes que as inventam, justificam e transformam em desigualdades sociais. Desconfiar das evidências e universalidades que indicam as inércias e coações do presente, as brechas, as linhas de força da violência dos próprios regimes de verdade são questões problematizadas em nossas linhas de pesquisas. Afinal vivemos sob o signo das diferenças agudizadas e ao mesmo tempo saturadas, logo naturalizadas e invisibilizadas. O que confere cada vez mais relevância social ao LEDDES como locus provocador do debate.

O dossiê, portanto, não se restringe à produção de uma ilusão biográfica do nascimento e institucionalização de mais um laboratório no cenário acadêmico. O que se pretende é iluminar de forma biografemática, um heteretópico espaço de escrituras de vidas abertas às formas diferentes de criação de condição de possibilidades do dizer e, principalmente, da experimentação ética de uma amigável vida acadêmica. Uma jornada que se inicia em 2001 na cumplicidade intelectual e afetiva de Ana Moura, Marilene Rosa e Silvio Carvalho, colegas do Curso de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro nos tempos sombrios da ditadura. O reencontro como experientes profissionais de História que acontece na Universidade do Estado do Rio de Janeiro é enunciado a partir do inventor de neologismos, Roland Barthes no seu biografema (…)

Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com espaços vazios, como Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da imagens (esse flumen orationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é entrecortado, como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante …(BARTHES, 1971, p.14)

O método aponta o fazer de um laboratório onde se cria e se recria uma complexa gestão coletiva. Saber / sabor compartilhado nas permutas constantes entre orientadores / as e orientandos / as, professores / as e alunos / as, quer seja da graduação ou da pós, numa peculiar intertextualidade com diferentes construtores de discursividades. A materialidade do dossiê e os lugares sociais que marcam e demarcam a tessitura de cada narrativa contam um pouco dessa história. Num diálogo transdisciplinar que espelha a plataforma ética sobre a qual nossas pesquisas e intervenção social se assenta- a luta pelos direitos humanos, por uma educação inclusiva, logo, democrática.

Essa viagem começa com a provocação de Laura Nery em Grotesco, caricatural, pornográfico: notas sobre a insubmissão da forma. O ensaio, experiência modificadora de si e não um mero jogo simplificador da comunicação, exercício de pensamento que assume os riscos do engajamento pessoal ancora a reflexão. O texto estabelece algumas relações entre Grotesco, caricatural e pornográfico em seu sentido mais extremo, ou “satânico”, como definiu Charles Baudelaire ainda no século XIX, segundo a autora, destacando semelhanças de estratégias expressivas entre eles. No âmbito da linguagem, a presença desses modos permite entrever um jogo entre experimentação formal, liberdade e interdição.

Seguindo a insubmissão como tática de resistência A Dama e o Amor: Cortesia e heresia na poética medieval de Benjamin Rodrigues Ferreira Filho (UFMT); Shirlene Rohr de Souza (UNEMAT), propõe a leitura do poema “Aquele que não viu o Amor”, do poeta galego-português Nuno Fernandes Torneol. Escrito provavelmente no século XIII, o poema é tomado pelos autores como pulsão para identificar os indícios de subversão da linguagem, ou quem sabe da transvaloração de palavras que guardavam segredos perseguidos por uma igreja inquisidora que ao implantar um ideal dogmático de amor, perseguia “hereges” e condenava ao paganismo das comunidades cátaras e sua crença na “Igreja do Amor”. Através da leitura do poema de Torneol, e de alguns outros poetas, revelam-se os interesses e as disputas de poder travadas pela igreja de Roma.

Com Selma Pantoja o destaque à Historiografia Africana e os Ventos Sul: desenvolvimento e História uma escrita da história, no âmbito dos estudos pós-coloniais, da colonialidade e da experiência Sul. O que faz emergir as narrativas sobre o Estado-Nação africano e o Homem Novo tomando como mote a questão do desenvolvimento e os elementos simbólicos de recuperação. Instigante o relato de sua experiência como professora de história por três anos na cidade de Maputo e os impedimentos no acesso ao acervo da Biblioteca Colonial como representativo dos desafios na descolonização do saber. Ainda nesse viés, chama a atenção para a ressignificação de heróis e heroínas, de fundo nem colonial nem nacionalista ensejando outras perspectivas de produção de conhecimento histórico. Transversos: Revista de História Transversos: Revista de História.

No artigo Terra, Trabalho e Conflitos Escravos no Vale do paraíba Fluminense na Segunda Metade do Século XIX, Keith Barbosa analisa a partir de inventários, correspondência entre autoridades policiais e notícias da imprensa, o modo como os conflitos travados entre os herdeiros pela herança de família e prováveis novos proprietários das fazendas teriam motivado o aumento das tensões entre escravos destacando as estratégias múltiplas para se lidar com a exploração cada vez mais intensa nas plantations de café.

No ensaio A educação como condição e prática da democracia, Aimberê Guilherme Quintiliano da Universidade Federal de Juiz de Fora articula a efeméride de uma publicação- Democracy and Education, de John Dewey, em 1916 às questões contemporâneas da educação, em que o modelo empresarial estaria tomando lugar do modelo educacional nas instituições de ensino e formação profissional, principalmente nas redes públicas. O temas essenciais da filosofia da educação são retomados para traçar um retrato da relação entre o professor e o aluno, mostrando que para uma educação que faça progredir a sociedade e que permita uma melhora das relações entre os seres humanos exige a ampla liberdade de pensar.

Ainda sobre os desafíos de uma Educação de viés igualitário e transformador, Davi Avelino Leal e Juliana Ventura Brasil em A política de ação afirmativa e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas desenvolve breve, mas pertinente, reflexão sobre a compreensão dos alunos cotistas do Ensino Médio Técnico acerca das políticas de ação afirmativa implementadas no IFAM. Através de entrevistas semi-estruturadas e análise da legislação e atas dos conselhos de classe buscou identificar os efeitos da implementação da Lei de Cotas, em destaque o risco de estigmatizaçãos dos sujeitos por ela alcançados.

O dia que durou 21 anos: A simbiose entre passado e o presente pelas lentes do cinema Joana D Arc Ferraz problematiza o uso que fazemos da História a partir do filme documentário. Os efeitos de poder deste presente intolerável provocam a engajada cientista social, professora da Universidade Federal Fluminense e membro atuante do Grupo Tortura Nunca mais. Ancorada em Nietzsche e Foucault o texto procura identificar nas análises de autores que, ainda na ditadura, nas décadas de 1970 e de 1980 do século passado pensaram o golpe o contexto político e econômico de dependência ao capital internacional. Nesta démarche denunciaram algumas questões que, pelas mais variadas percepções, acabaram se empoeirando e se distanciando de nossos olhares.

Na trilha de texto denuncia Mujeres del Cauca: Colonialidade y patriarcado na guerrila de las FARC-EP, Amanda Ledezma Meneses (Universidade Surcolombiana) e Gerson Galo Ledezma Meneses (UNILA), apresentam o conflito armado e a violência vivida na Colômbia como herança colonial. O especismo, que segundo os autores, possibilitou a constituição do racismo e de um complexo sistema de inferiorização de homens e mulheres ressoa na atualidade legitimando o sistemático extermínio de camponeses, indígenas e comunidades afrocolombianas, pelas ações violentas do exército, da guerrilha e dos grupos paramilitares, que agem sob os auspícios do Estado-nação. Neste contexto, emerge o cotidiano de quatro mulheres do Departamento de Cauca na Colombia violentadas sexualmente por guerrilheiros. Seus testemunhos permitem a interrogação sobre o silêncio que cobre o flagelo a que estão submetidas e ainda a confirmação de que o “Estado colombiano mata mulheres, indígenas, pobres e negros, por meio de sus instituições e da mesma sociedade formada em suas filas.”

A seção Entrevista destaca a participação da professora Ana Maria da Silva Moura na idealização e construção do LEDDES. O comprometimento entre entrevistadores e entrevistado transforma o encontro numa saborosa conversa. A rememoração dos múltiplos e complexos tempos afetados pela experiência discursiva do fazer lembrar são iluminados pelas possibilidades do biografema. A seguir é possível acompanhar os efeitos das atividades do laboratório no ofício da História de dois jovens pesquisadores: Gustavo Pinto de Sousa, professor da Universidade Federal do Pará expõe as Experimentações históricas: da casa de correção ao direito das gentes e, na fala de Daniel Thomaz Mandur, hoje professor em OXFORD, a Trajetória de um pesquisador em seu espargir por outros espaços acadêmicos.

Nas Notas de Pesquisas o foco estaria na construção do trabalho acadêmico em seu movimento de elaboração marcado pelo provisório. Em vez do produto acabado, os caminhos e descaminhos complexos da busca de uma Clio negra para uma nação multicor: a escrita da história na imprensa negra-1926-1937 do doutorando João Paulo Lopes -PPGH / UERJ; da Descolonização e justiça: fundamentos para a educação e políticas da interculturalidade de Aline Cristina Oliveira do Carmo do Curso de Filosofia da UERJ; ou ainda dos Territórios dos afetos: O cuidado nas práticas femininas quilombolas contemporâneas do Rio de Janeiro de Mariléa de Almeida da UNICAMP; concluindo com a problematização dos “Grandiosos batuques”: notas de uma pesquisa em História sobre as experiências dos classificados como “indígenas” em Lourenço Marques(1890-1930) de Matheus Serva Pereira também da UNICAMP.

Em Experimentadores, diferentemente, das exigências de uma História profissional, o que se propõe é publicizar as narrativas produtoras de sentidos que auxiliem a reflexão de questões históricas do passado e contemporâneas. Deste modo se inscreve as reflexões sobre a Comunidade da Ilha do Bananal: auto organização da população em situação de Rua na cidade de Cuiabá-MT, de Eliete Borges Lopes (SEDUC / MT). A partir de um longo percurso pelas ruas desta quente capital do Centro-Oeste, fotografando moradores em situação de rua; criando táticas de aproximação e de estabelecimento de algum contato e conexão; tomando como tarefa a composição de um minucioso arquivo visual dos grafites que cobrem esta capital de arte, denúncias e vida; presenciando mortes, percebendo desaparecimentos e testemunhando ações violentas da polícia para com esta população, identifica comunidades de rua nascentes e em extinção e compõe uma cartografia dos arte-fatos e afetos que as constituem, entre elas a Ilha do Bananal. Em prédios antigos, tombados pelo Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), debaixo da ponte que liga (ou separa), as duas maiores e mais violentas cidades de Mato Grosso, Cuiabá e Várzea Grande, nas proximidades do Morro da Luz, ou mesmo sob e atrás de out-doors as comunidades vão erguendo outros lugares. O modo como se movimentam pela cidade, a lentidão que caracteriza seu aprendizado sobre o território da rua, os espaços que ocupam, revelam a vida que toma posição e combate no front.

A seção Resenha, que encerra a edição, apresenta o diálogo entre autores / as, no exercício do habitar e comentar a textualidade de uma obra. Os trabalhos em questão identificam os dilemas do fazer História, suas fontes ou materialidades e, em especial, os diferentes lugares socio-institucionais da produção historiográfica. Assim, ser autor e objeto, ser afetado mas procurar controlar a subjetividade agarrando-se aos procedimentos teórico- metodológicos do ofício. O primeiro desafio foi aceito pelo experiente pesquisador do tempo presente Francisco Carlos Teixeira – No olho do furacão: 2016 historiadores pela democracia – expõe o impacto do acelerado processo de impedimento da presidente Dilma Rousset. A obra organizada por Beatriz Mamigoniam (UFCS), Hebe Mattos (UFF) e Tania Bessone (UERJ) reúne historiadores / as de diferentes gerações e textos, originalmente publicados, no calor do momento e nas mais diversas mídias, propondo-se a elaborar a cronologia do golpe.

Saímos da História em cena para a representação cinematográfica dos dilemas da democracia contemporânea, na resenha de José Ramon Narvaes Hernandes do livro 12 Hombres en pugna: Ni castigo, ni perdón. El derecho a dudar, do Director Eddy Chávez Huanca. Segundo livro da Coleção Cinema e Direito. Trata de uma experiência que vem se consolidando como área de pesquisa que é trabalhar questões relativas e bastantes caras ao Direito, a partir das provocações que o cinema nos convida. Porém, mais que isso, há histórias ocultas e periféricas, bem como as outras linguagens cinematográficas que orquestram a narrativa e revelam vozes e possibilidades de interpretação. A atualidade desta discussão está em exatamente avaliar o comportamento dos jurados na democracia.

Conclui a seção a tese transformada em livro do professor Silvio Carvalho nomeada Utopia de uma nação: construção do imaginário social angolano a partir da produção literária no pós-independência (1975-1985) por Fabia Barbosa Ribeiro. A professora e pesquisadora do Campo dos Malês na Bahia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) destaca como objetivo central do estudo a questão do imaginário social sobre a nação angolana, construído a partir de uma nascente literatura nativa, assentada sobretudo nas relações políticas constituídas durante e imediatamente após a guerra de libertação colonial. Enfatiza a importância de uma obra que se inscreve e contribui sobremaneira aos Estudos Africanos no Brasil.

Encerramos a apresentação propondo um convite ao bom debate instigado pelas reflexões dos diferentes articulistas. Enfim, a coragem de ser um eterno aprendiz que ecoa da Aula de Barthes.

Há uma idade em que se ensina o que se sabe: mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar de trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei tomar aqui sem complexo, na sua própria encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível (BARTHES: 1977. p47)

Por mais atenta que esteja no passado a História ainda se escreve no presente. Experimentar, diversificar e, é claro, saborear o pensamento como ação que emerge deste dossiê- convite à resistência em suas múltiplas condições de possibilidades que se afirmam no “eu posso, Tu podes, Ele pode…e Nós LEDDES”.

Notas

1 Título do Seminário que aconteceu na UERJ nos dias 6, 7 e 8 de dezembro de 2016. Para além da comemoração o evento permitiu um encontro de pesquisadores / as, estudantes, professores e demais interessados / as nas questões leddeanas, assim nas Margens da História: artes, corpos e invenções como táticas da cidade da linha -Vulnerabilidades e Controle Social; Ordem e progresso: como fazer História no Brasil pós-impeachment da Escritas da História e por fim Áfricas: trajetórias e pesquisas. Entre outras provocações destacamos a exibição e debate do filme Menino 23.

2 Pedro Henrique Torres, mestrando do PPGH / UERJ, pesquisador do LEDDES, bolsista da FAPERJ.

3 O rizoma para Deleuze e Guattari (1995) seria um modelo de resistência ético-estético-político, trata-se de linhas e não de formas. Pesadelo do pensamento linear, não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix Editora, 1998.

______. Sade, Fourier, Loiola. São Paulo: Brasiliense, 1998.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo: Editora 34, 1995.

Ana Lúcia Vieira de Carvalho – UFAM Marilene

Rosa Nogueira da Silva – UERJ

Priscila Xavier Scudder – UFMT

Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2016.


CARVALHO, Ana Lúcia Vieira de; SILVA, Rosa Nogueira da; SCUDDER, Priscila Xavier. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.8, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História Pública: escritas contemporâneas de História / Revista Transversos / 2016

Com muito prazer, entregamos aos nossos leitores mais uma edição da revista de história TransVersos. Desta feita, além dos costumeiros artigos livres, apresentando um variado escopo de trabalhos pertinentes às linhas de pesquisa do LEDDES, propusemos um dossiê que repercutisse a prática e o valor social do ofício d@ historiad@r a partir do debate da complexa noção de história pública, cada vez mais presente entre historiadores e diferenciados movimentos e setores sociais no Brasil.

Nada mais atual, e ao mesmo tempo tradicional, do que a reflexão acerca do significado social da história. Por isso mesmo, as atuais discussões sobre a concepção de história pública no país têm necessariamente soprado ventos revigorantes mesmo entre aqueles que discordam da aplicação da expressão ao campo da história. Desde o evento precursor “Curso de Introdução à História Pública”, desenvolvido em 2011, na Universidade de São Paulo, o conceito e suas diversas aplicações reverberam pelo país, tanto no cenário acadêmico, convocando profissionais da área ao debate, quanto em outros campos e práticas que têm entre seus fazeres a produção de significado para o passado entre audiências não acadêmicas. Leia Mais

Áfricas: história, literatura e pensamento social / Revista Transversos / 2016

História, Literatura e Pensamento Social

Esse número da Revista Transversos, além da costumeira seção de artigos livres, vinculada, em sua maior parte, às discussões problematizadas no Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades (LEDDES), responsável por esse periódico, oferece-nos dossiê intitulado Áfricas: história, literatura e pensamento social, com destaque para a seção Notas de Pesquisa. Essa duas partes do periódico são fruto de desdobramentos das atividades do grupo de pesquisa Áfricas – LEDDES (UERJ), vinculado a esse laboratório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bem como de parcerias com outros núcleos de estudos, pesquisa e extensão, tais como o Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assim, como o tecido africano estampado na capa deste número da Transversos, o seu dossiê e notas de pesquisa tecem tramas com fios policromáticos: há uma diversidade de objetos e abordagens relativos à multifacetada África, mas que de certa forma, giram em torno do trinômio história, literatura e pensamento social africano, tema deste dossiê.

A trama inicia-se com o debate sobre a importância do documentário como fonte para a história angolana a partir da análise de Oxalá cresçam pitangas! Numa implícita formação discursiva fundamentada por Robert Rosenstone, que assinala que o cinema pode “transmitir um tipo de História séria (com H maiúsculo)”, a historiadora Paula Faccini de Bastos Cruz, pesquisadora do LEÁFRICA, ilumina como a aludida película cinematográfica explicita as resilientes identidades de luandenses após as guerras infindáveis, entre 1961 a 2002. O filme permite nos tornarmos testemunhas oculares de vidas vulnerabilizadas pelas sequelas persistentes dos conflitos e da desigualdade social.

Mas, os africanos não são só assujeitados pelas estruturas, pois geraram eloquentes lideranças na luta pelas transformações sociais. Seguindo essa motivação a historiadora Raquel Gomes, doutora pela UNICAMP, recorre a um romance histórico sul-africano Mhudi, An Epic of South African Native Life a Hundred Years Ago para urdir o pensamento e a práxis social do político, literato e jornalista sulafricano Sol Plaatje durante as décadas de 1910 e 1920, logo após o surgimento do domínio inglês da União Sul-Africana. É o único artigo do dossiê que se desvia da tendência predominante na historiografia brasileira sobre o continente: os estudos sobre as regiões africanas tocadas ou colonizadas pelos portugueses.

Por outro lado, Jane Rodrigues dos Santos, pós-doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) e uma das participantes da Oficina “Literatura, História em contextos africanos” oferecido pela linha “Áfricas” em 2015, abre uma nova tonalidade na trama, articulando as possibilidades dialógicas entre história e literatura, por meio da discussão comparativa entre as obras Becos da Memória da brasileira Conceição Evaristo com Amkoullel, o menino fula do africano Amadou Hampâte Bã.

Os três artigos que se seguem discutem diferentes dimensões de aspectos ligados à história e à literatura angolana, bem como ao pensamento social do escritor Uanhenga Xitu, um dos autores abordados naquela oficina. Assim sendo, Letícia Villela Lima da Costa, doutora em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), analisa as distintas formas de se contar a história por meio da tradição oral, fazendo por isso uma análise sobre um conto de Xitu.

Já o pensamento social deste autor é analisado de forma comparativa ao do também angolano Luandino Vieira por Maria Cristina Chaves de Carvalho, pós-doutoranda pela Universidade Federal do Espirito Santos (UFES). Em seu artigo, ela analisa o quanto os dois apresentam, de forma ambivalente, o colonialismo no qual estavam inseridos.

A seção termina com o artigo de Itamar Pereira de Aguiar, pós-doutor pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professor Titular da Universidade do Estado da Bahia (UESB), juntamente com Nathalia Rocha Siqueira, pesquisadora do grupo Áfricas do LEDDES e Washington Santos Nascimento, doutor em História Social (USP) e professor da UERJ. Nesse artigo, os autores verticalizam a análise do pensamento social de Xitu, acerca das suas leituras sobre o universo kimbundu e as simbologias religiosas esquadrinhadas de maneira comparativa com o Brasil.

O primeiro artigo livre é um ensaio de Egbert Alejandro Martina, um intelectual elaborador do blog Processed Life e de Patricia Schor, pesquisadora afiliada à Universidade de Utrecht, Holanda, traduzido por Daniel Mandur Thomaz, pesquisador vinculado à Universidade de Oxford. Os autores trabalham com populações racial e etnicamente segregadas pelo planejamento urbano e gestão espacial holandeses. Um ensaio rico que certamente incitará ao leitor brasileiro comparações com os processos de vulnerabilização alicerçados em raça e classe existentes em nosso país e como eles também se espacializam em nossas cidades.

A História Econômica, campo que sofreu uma certa retração na produção recente da historiografia brasileira, diferencia-se neste número mais preocupado com questões culturais e sociais, com o artigo de Daniel Henrique Rocha de Sousa, Professor de Economia do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), sobre os Monetaristas X Papelistas: Modelos Econômicos Importados e Inaplicáveis ao Brasil da Transição Republicana. Parafraseando o título do fundante artigo de Robert Schwarz, podemos dizer que Daniel de Souza aponta como vários modelos econômicos que se tentaram então aplicar no Brasil eram políticas econômicas “fora de lugar”.

Fechando a sessão de artigos livres, volta-se a abordagens caras à linha de pesquisa “Vulnerabilidades e Controle Social” também do LEDDES como a dos filósofos Nietzsche, Foucault e Deleuze. Esses autores são operados por Kássia de Oliveira Martins Siqueira, assistente social, doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), para contraditar as práticas de atendimento a adolescentes portadores de câncer em um hospital público do Rio de Janeiro.

Retomando o entrançar com as temáticas de nosso dossiê, a seção Notas de Pesquisa abre-se com o projeto de pesquisa de Angélica Ferrarez de Almeida, doutoranda (UERJ), assentado na literatura oral dos griôs senegaleses, recolhida entre 1960 e 1980, momento em que se está estruturando o Estado senegalês. Inquietado com as relações entre a linguagem, a memória e o poder, o projeto põe em alto relevo uma série de questões para solucionar.

Enlaçando a nossa africana teia, Carolina Bezerra Machado, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), propõe-se sondar as relações de poder na sociedade angolana, tais como são imbricadas em quatro romances de um dos maiores escritores de Angola, Pepetela. Os textos desse intelectual revelam que a literatura não é apenas “ficção”, mas pode nos oferecer os enredos que transpassam das macroestruturas do Estado à porosidade das micro- relações de poder que se entrelaçam na sociedade civil angolana.

Por fim, Marilda dos Santos Monteiro das Flores, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), propõe analisar Uma Cena: O uso do filme como estratégia para (re) construção da identidade dos Retornados de Angola (2005-2010). Sua pesquisa versa sobre como um filme e um livro, esse último, fruto de entrevistas jornalísticas, de investigação em arquivos e em jornais portugueses, são utilizados como dispositivos da preservação da memória e da ideação identitária dos retornados de Angola a partir do estertor do processo de descolonização.

Esperando termos entretecido belas e policrômicas narrativas como as texturas estampadas em nossa capa, desejamos uma saborosa leitura a todos, despertando novas reflexões e inauditos debates.

Silvio de Almeida Carvalho Filho – Professor Doutor (LEÁFRICA / UFRJ)

Washington Santos Nascimento – Professor Doutor (AFRICAS – LEDDES / UERJ)

Rio de Janeiro 22 de março de 2016.


CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida; NASCIMENTO, Washington Santos. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 6, n.6, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]

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O Corpo na História e a História do Corpo / Revista Transversos / 2015

CORPO ESPARGINDO

Captar a irregular existência que vem à luz no que se faz e diz.

Michel Foucault

A forma vibrante da nomeada maja tosca (Nery, 2013) figura feminina ou afeminada, estirada num canapé amarelo que emerge da sensualidade congelada de outros tempos, modos de ver e de transcrever ilumina as múltiplas representações ou reapresentação, ativa saberes / poderes nesse e desse dossiê. Assim, faz pensar o outro do corpo em suas problematizações como materialidade da natureza sensível, logo vulnerável. Um enigma que cada um enfrenta, constantemente, de maneira subjetiva e histórica. Como objeto de reflexão significa romper o dualismo entre a superioridade das ideias (espírito) contra a inferioridade do corpo (carne). Após a fratura provocada por Nietzsche, Freud, Foucault, Beauvoir e Butler entre outros / as como negar suas potencialidades de transgressão sociopolítica e de construção de subjetividade que transcendem a marca do sexo de modo a revisar a opressão, inclusive a da regulação sexual, questionando as dissonâncias entre identidades de gêneros e práticas sexuais que, como ponto de interlocução, abrem novas possibilidades epistemológicas

O Corpo na História e a História do Corpo foi tema de uma oficina do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O experimento aconteceu no segundo semestre de 2014 como uma atividade da linha de pesquisa Vulnerabilidades e Controle Social. Pesquisadores / as de diferentes instituições se reuniram para compartilhar seus estudos sobre a emergência de um corpo / discurso que informa e conforma as complexas relações com a sociedade em sua invenção de si. O desafio era desnaturalizar o corpo / objeto para além da disciplina, procurando iluminar a violência dos regimes de verdade e suas obviedades que o aprisiona no biológico.

(…) o que é evidente é violento, mesmo se essa evidência é representada suavemente, liberalmente, democraticamente; o que é paradoxal, o que não cai sob o sentido, é menos violento, mesmo se for imposto arbitrariamente: um tirano que promulgasse leis extravagantes seria, finalmente, menos violento do que uma massa que se contentasse com enunciar o óbvio: o ‘natural’ é, em suma, o último dos ultrajes. (BARTHES, 1975: p. 92).

Está claro que existe uma bios neste corpo transformado em logos, em discursos da natureza e de natureza. O que se pretendeu foi inquirir para além do a priori de uma certa história natural que no século XVIII fundou as pesquisas e / ou debates sobre a existência dos gêneros, estabilidade das espécies, transmissão dos caracteres através das gerações e, que ainda define a sistematização de um certo corpo visível como domínio de saber.

A mutação da oficina ao dossiê e suas sistematizações só se justifica se não o reduzirmos ao procedimento pedagógico de um texto / produto mas, ao contrário, se ficarmos atentos às condições de possibilidades de saberes poderes que em seus discursos científicos ou ficcionais construíram enunciados sobre o corpo subjetivado como pornográfico, erótico, belo, escravizado, generificado, prostituído, violentado, encarcerado, clinicalizado ou matematizado. Como analisa Fábio Henrique Lopes, em Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes, a relação entre violência e transgêneros. Por meio de casos apresentados pela imprensa, o historiador problematiza os mecanismos de regulamentação, controle e naturalização da matriz heterossexual; bem como as diversas modalidades de agressão direcionadas aos “diferentes”: aqueles que desfronteralizam a divisão binária de gênero e sexualidade e que, por isso, são alvo do “ódio heterossexista, cissexista e transfóbico”.

A seguir em Corpos encarcerados em cena, Marilene Rosa Nogueira da Silva experimenta e se experimenta nos possíveis diálogos entre linguagem imagética e linguagem escrita. Estas criam novas identidades: a dos sujeitos dos documentários selecionados, as do Grupo de Informação sobre a prisão (GIP) e a do sujeito sobrevivente do diário / depoimento de um ex-presidiário do Carandiru. Um texto afetado que inquire a naturalização da carceralização e denuncia a banalização da violência e o descaso que a sociedade direciona aos indivíduos excluídos pela inclusão carcerária.

Problematizar a produção de jornais e contos considerados pornográficos no Rio de Janeiro, no momento da chamada Belle Époque é o que propõe Marina Vieira de Carvalho, em A ficcionalização do desejo: a pornografia e o erotismo como objetos de consumo na modernização da cidade do Rio de Janeiro. Com esse fim, traça os diferentes significados que os termos pornografia e erotismo tiveram na modernidade ocidental, para assim compreender o desenvolvimento do mercado editorial de temas lascivos na capital do país. A historiadora analisa os potenciais de transgressão e crítica que a pornografia de então tecia em suas relações com a sociedade carioca.

Antropologia criminal e prostituição: a matematização do corpo segundo Pauline Tarnowsky emerge das inquietações provocadas na sala de aula pelo filme L’Apollonide: Os amores da Casa de Tolerância ( 2011). A Professora Laura Nery e os graduandos José Roberto Silvestre Saiol e Beatriz do Nascimento Prechet discutem a normalização e controle moral na sociedade vitoriana, especificamente, a relação entre antropologia criminal e prostituição no final do século XIX. Em destaque o estudo da médica Pauline Tarnowsky, no Hospital de Kalinkine, em São Petersburgo, (1889) na classificação das prostitutas como degeneradas moral e fisicamente, identificação fundamentada na matematização dos seus corpos.

José Ricardo Ferraz em Ninguém nasce bela, torna-se bela. ‘Miss Brasil’: beleza e gênero (1950 – 1980), elege o concurso da Miss Brasil como possibilidade de análise da constituição do gênero feminino no Brasil, no período de 1950 a 1980 como modelo de beleza e seus efeitos de poder para além do estético. A partir de Beauvoir, com elaborações que transcendem a marca do sexo como por exemplo em Judith Butler, procura destacar o dualismo que matematizava o corpo feminino por meio de um olhar masculino. Logo, tornar-se bela emerge como um dispositivo que (con)formava o comportamento considerado adequado para as mulheres, reforçando os valores da chamada “boa sociedade”.

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro, literalmente, ilumina em Fotografia e história, a existência e o vestígio remanescente: corpos negros de mulheres no ‘teatro de enunciados’ do Brasil oitocentista. São corpos ressignificados como cativos, que podem ser adquiridos, comprados, consumidos, vendidos. Apresenta a ama de leite como corpo / monumento de famílias que desejavam demonstrar sua distinção social, demarcar e, ao mesmo tempo, suavizar, fronteiras hierárquicas entre as “mães pretas” e seus pequenos / grandes senhores brancos. Imagens que não ilustram, mas sim constituem essa realidade social e que, por isso, possibilitam as memórias / dizíveis de como a “sociedade de bem” gostaria de ser lembrada pela posteridade.

Para encerrar Corpos escravizados: que histórias contam?, Iamara da Silva Viana analisa os manuais médicos sobre os corpos dos escravos, com destaque para o médico francês JeanBaptiste Alban Imber que chegou ao Brasil em 1831, momento em que as leis contra o tráfico de escravos estavam em pauta. O discurso médico é pensado como estratégia biopolítica que orienta os senhores na hora de comprar e de preservar a produtividade do escravo como corpo / mercadoria. O estudo propõe investigar os efeitos desta normatividade no debate sobre o fim do tráfico de africanos que eleva o saber médico como um mecanismo de ampliação da vida útil do corpo escravizado.

Esses são apenas alguns fios de uma complexa trama do movimento contínuo da transgressão no sentido de um dos ditos de Foucault (1983) em homenagem a Bataille:

A transgressão é um gesto relativo ao limite; O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente, se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos: ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento, rapidamente, se embaraça por querer apreendê-las (…) A transgressão não está, portanto, para o limite como o negro está para o branco, o proibido para o permitido, o exterior para o interior, o excluído para o espaço protegido da morada. Ela está mais ligada a ele por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir. Talvez alguma coisa como o relâmpago na noite que, desde tempos imemoriais, oferece um ser denso e negro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de alto a baixo, deve-lhe entretanto sua viva claridade, sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e, por fim, se cala, tendo dado um nome ao obscuro. Nada é negativo na transgressão. Ela afirma o ser limitado, afirma o ilimitado no qual ela se lança, abrindo-o pela primeira vez à existência.

Desta feita o Dossiê se inscreve como um vestígio, uma caixa de ferramenta, propondo-se a desnudar o êxtase da naturalização. Enfim, um exercício que objetiva fazer aparecer o corpo como um sujeito histórico, mutável, insistente e visível como um lugar onde habita o poder. Compartilhem da transgressão positivada de pesquisadores / as que ousaram apresentar suas reflexões de forma problemática, sem as certezas e verdades acabadas, ainda em plena dinâmica e provocação como sua maja que se quer tosca.

Marina Vieira de Carvalho

Marilene Rosa Nogueira da Silva

Rio de Janeiro 30 de novembro de 2015


CARVALHO, Marina Vieira de; SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 5, n.5, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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