Intelectuais e circulação de ideias na América Latina / Varia História / 2014

O presente dossiê de Varia Historia é dedicado à História Intelectual Latino-Americana, com ênfase na história dos impressos, das ideias e de sua circulação.

A História Intelectual é um campo de estudos que vem crescendo nas universidades e instituições de pesquisa latino-americanas, particularmente a partir dos anos 1980 e 1990, juntamente com os processos de redemocratização em vários países do continente e a necessidade de se repensar o papel dos intelectuais na vida política e social de cada um dos países e na América Latina como um todo.

O importante ensaísta e crítico literário uruguaio Ángel Rama já havia, em seu famoso livro La ciudad letrada, de 1984, indicado alguns caminhos que seriam percorridos pela história intelectual latino-americana nas décadas seguintes, particularmente sobre as vinculações entre os intelectuais e os núcleos urbanos de poder.[1]

Conforme Carlos Altamirano, em sua introdução geral aos dois volumes da Historia de los intelectuales en América Latina, além das ideias, era necessário aprofundar a reflexão sobre a posição dos letrados latino-americanos no “espaço social, suas associações e formas de atividade, instituições e campos da vida intelectual, seus debates e relações entre ‘poder secular’ e ‘poder espiritual'”.[2]

Os estudos na área de História Intelectual, em um sentido amplo, têm como seus objetos de pesquisa e reflexão não apenas a história do pensamento e o debate de ideias e ideologias, mas questões como a constituição de redes e sociabilidades intelectuais; os variados tipos de impressos, sua circulação e articulação com o debate público; as viagens e intercâmbios; as experiências de exílio e deslocamento etc. São estudos que buscam analisar as conexões entre os intelectuais e as diversas instâncias da vida pública, como a política, a diplomacia, os meios de comunicação, as instituições educativas e científicas, as expressões artísticas, associações e movimentos sociais, entre outras.

Na América Latina, as pesquisas nessa área tiveram um incremento muito vigoroso a partir dos anos 1990. A criação do Programa de História Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina, em 1994,[3] e a publicação de Prismas – Revista de historia intelectual pela editora da UNQ, desde 1997, são marcos importantes para essa área de estudos. Em vários países latino-americanos – com destaque para Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai – é crescente o número de pesquisadores e trabalhos publicados na área de História Intelectual. Esse aumento teve, como um de seus desdobramentos, a realização do I Congreso de Historia Intelectual de América Latina, em Medellín, Colômbia, em setembro de 2012, e o II Congreso de Historia Intelectual de América Latina, que será realizado em Buenos Aires, em novembro deste ano.

O dossiê que ora apresentamos traz cinco artigos que abordam algumas das temáticas elencadas acima: o debate de ideias e sua circulação entre países e continentes; os periódicos, sua importância e repercussão; as trajetórias e inserção de intelectuais na cena pública.

Abrindo o dossiê, Maria Ligia Coelho Prado analisa os artigos publicados a respeito do México na famosa publicação francesa Revue des Deux Mondes, entre 1840 e 1870. A revista, muito lida pelos intelectuais latino-americanos, expressava, como demonstra a autora, os interesses nacionais e a perspectiva imperial da França. De todos os países latino-americanos abordados pela Revue, o México foi o objeto predileto das reflexões do periódico, no período estudado, em cerca de 30 artigos. Os intelectuais franceses que escreveram na Revue defendiam que seu país deveria ocupar um papel de liderança do “mundo latino”. O México era representado, nesses artigos, como um país “exótico, atrasado, anárquico, vivendo nos tempos de Felipe II”. E, como lembra Prado, durante o governo de Napoleão III, os franceses colocaram em prática esta perspectiva, ao enviar tropas para sustentar a monarquia no México, numa intervenção, afinal, derrotada pelos liberais mexicanos. Sendo assim, o artigo de Ligia Prado traz elementos para uma melhor compreensão de um aspecto pouco salientado da ação francesa na América Latina no século XIX, seu papel imperial, para além do lugar da França – e de Paris, especialmente – como o principal centro intelectual, literário e cultural, para onde convergiam, ou desejavam convergir, os intelectuais latino-americanos.

José Luis Bendicho Beired, em seu artigo Hispanismo e latinismo no debate intelectual ibero-americano, analisa a constituição de vertentes defensoras do hispanismo e do latinismo nos dois lados do Atlântico, entre meados do século XIX e meados do XX. Utilizando-se de revistas e jornais como principais fontes documentais, o autor mostra que, até inícios do século XX, não havia evidente oposição entre essas duas correntes, sendo predominante, inclusive, uma visão de complementaridade. Para intelectuais franceses, assim como para espanhóis, devia-se contrapor, às intervenções norte-americanas sobre a América ao sul do Rio Bravo, a “cultura latina”. E nos países hispano-americanos, principalmente após a intervenção dos Estados Unidos na guerra de independência de Cuba, fortaleceu-se uma afirmação latino-americanista. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, as distinções entre o latinismo, vinculado às pretensões hegemônicas francesas, e o hispanismo, encabeçado pela Espanha, ficaram mais pronunciadas. O autor faz referências, também, acerca do debate sobre o iberismo, tanto na Espanha como em Portugal. Ao analisar concepções formuladas por intelectuais da península Ibérica e da América Hispânica, além de ações concretas para incrementar os vínculos com os países ibero-americanos, tanto por parte da França como da Espanha, Beired mostra a riqueza dos debates que envolviam, por um lado, filiações e vínculos intelectuais entre hispano-americanos e europeus, e, por outro, afirmações identitárias dos países latino-americanos – que cada vez mais se reconheciam como parte de uma região denominada América Latina –, sem ignorar as alterações que se estabeleceram nos termos do debate em função das significativas mudanças ocorridas na Espanha, a partir da Guerra Civil e da vitória franquista, em outros países europeus e nas Américas, ao longo do período enfocado.

No terceiro artigo do dossiê, Alejandra Mailhe analisa a revista Archivos de psiquiatría, criminología, medicina legal y ciencias afines, dirigida pelo médico e ensaísta argentino de origem italiana José Ingenieros (1877-1925), um dos mais importantes intelectuais latino-americanos de sua geração. A revista Archivos, publicada em Buenos Aires de 1902 a 1913, ocupou um lugar central, como mostra Mailhe, no desenvolvimento da psiquiatria e da criminologia como áreas especializadas do conhecimento, não só na Argentina como em muitos países da América Latina, contribuindo para a formação de uma rede de contatos e de ideias no continente. Entre seus colaboradores, Archivos teve autores latino-americanos e europeus. Entre os primeiros, brasileiros como Evaristo de Moraes, Francisco Franco da Rocha e Raimundo Nina Rodrigues. Conforme esclarece a autora, a revista tinha, como principal objetivo, o “estudo científico dos homens anormais”, especialmente criminosos e dementes, com ênfase em concepções positivistas de começos do século XX, mas com aberturas para outros enfoques. Para o leitor brasileiro, é de especial interesse a abordagem de Mailhe sobre as contribuições de Nina Rodrigues a Archivos e as divergências entre o autor brasileiro e José Ingenieros. O artigo de Mailhe procura mostrar, também, como a revista contribuiu para um processo, ainda que “muito moderado”, de “latino-americanização” dos intelectuais argentinos.

Regina Crespo, no artigo seguinte, intitulado O México de Rodrigo Otávio e de Cyro dos Anjos: entre as atribuições do funcionário e o olhar do escritor, analisa os olhares dos dois intelectuais brasileiros sobre o México, a partir de suas experiências no país setentrional em atividades diplomáticas. Depois de breves considerações sobre autores brasileiros que escreveram sobre o México – como Ronald de Carvalho, Erico Verissimo e Vianna Moog –, Crespo dedica-se à análise dos textos que, sobre o México, escreveram dois outros escritores brasileiros: o jurista Rodrigo Otávio e o escritor e funcionário público Cyro dos Anjos. Otávio esteve no México algumas vezes, entre 1923 e 1926, nas quais atuou em missões diplomáticas. Cyro, por sua vez, viveu na Cidade do México três décadas depois, de 1953 a 1954, atuando como professor da cátedra de Estudos Brasileiros na Universidad Nacional Autónoma de México e, a serviço da Embaixada brasileira, dando palestras sobre o Brasil em várias cidades mexicanas. No caso de Rodrigo Otávio, a principal fonte de Crespo foi seu livro México e Peru, publicado em 1940, além de jornais mexicanos da década de 1920 e da correspondência diplomática. Para analisar a visão de Cyro dos Anjos sobre o país hispano-indígena, a autora também se utilizou, principalmente, da correspondência diplomática, além das cartas entre o romancista de Montes Claros e o conterrâneo mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Carlos Cortez Minchillo, no artigo que fecha o dossiê – intitulado A América Latina de Erico Verissimo: vizinhança, fraternidade, fraturas –, aborda a presença da América Latina na obra e trajetória do escritor gaúcho Erico Verissimo, com ênfase no seu relato de viagem México, publicado em 1957, e no romance O senhor embaixador, de 1965. Como sustenta o autor, Verissimo pensou a América Latina tendo os Estados Unidos como contraponto, tanto em razão do contexto da Guerra Fria como da polarização do debate político nos países latino-americanos, particularmente após a vitória, em 1959, da Revolução Cubana. A contraposição entre a América Latina e os Estados Unidos deu-se, também, face à própria vivência pessoal e profissional de Erico nos Estados Unidos, como palestrante e professor visitante em universidades norte-americanas, em 1941 e 1943-1945, e como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, de 1953 a 1956 – períodos em que Verissimo ampliou sua sociabilidade intelectual não só com norte-americanos como também com vários hispano-americanos. Se nos anos 1940, no contexto da Segunda Guerra, Erico assumiu a defesa do pan-americanismo, na década seguinte, em plena Guerra Fria, o escritor brasileiro tornou-se cada vez mais crítico da política interna e, principalmente, da política externa dos Estados Unidos, e mais sensível às sociedades latino-americanas, suas culturas, histórias e problemas sociais. Carlos Minchillo mostra, entretanto, as ambiguidades das representações do “povo” latino-americano nessas duas obras de Erico. O artigo busca avaliar, ainda, a recepção das obras de Verissimo entre os anos de 1950 e 1970, assim como as possíveis implicações das posições políticas do autor, um social-democrata crítico tanto dos regimes ditatoriais de direita como dos regimes totalitários do Leste Europeu, naqueles anos polarizados e de intensos debates em torno do compromisso político dos escritores e intelectuais.

Esperamos que este dossiê de Varia Historia contribua com o crescimento do interesse pela História Intelectual Latino-Americana e para incrementar as pesquisas, o intercâmbio e a circulação de ideias entre pesquisadores brasileiros e hispano-americanos.

Notas

1. RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover, New Jersey: Ediciones del Norte, 1984. [ Links ] A primeira edição brasileira foi publicada no ano seguinte: A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vale lembrar que Rama teve fortes vínculos com a cultura e a literatura brasileiras, tendo ministrado aulas na Universidade de São Paulo, em 1974, em disciplina sob a responsabilidade de Antonio Candido, e retornado ao Brasil em 1980 e 1983, apenas dois meses antes do acidente aéreo que o vitimou. Cf. AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra G. T. (orgs.). Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001, p. 30-35.     [ Links ] 2. ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 11.     [ Links ] 3. O Programa de História Intelectual esteve sob a direção de Oscar Terán até 2005, Carlos Altamirano até 2009 e, desde então, Adrián Gorelik. Em 2011, foi criado o Centro de História Intelectual da UNQ. Cf. http: / / www.unq.edu.ar / secciones / 243-centro-de-historia-intelectual-chi / . Acesso em: 15 set. 2014.

Kátia Gerab Baggio – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.


BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.54, set. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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