Imprensa, cultura e circulação de ideias / Estudos Ibero-Americanos / 2020

Este dossiê foi proposto, tendo por norte os objetivos do grupo de pesquisa inscrito no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Imprensa e circulação de ideias o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX que reúne cerca de 90 pesquisadores nacionais e estrangeiros, distribuídos em várias linhas de estudos, para pensar a imprensa impressa periódica de grande circulação em suas conexões nacionais e internacionais. Proposto pela linha de pesquisa O Brasil e as Américas, o dossiê aqui apresentado reúne artigos que ultrapassam os limites desta última, apresentando temas que envolvem não só a imprensa ibero-americana, mas também aspectos mais gerais do fazer jornal e do fazer jornalismo.

Demos aos artigos selecionados uma organização cronológica, mas que acaba por atender também a uma divisão temática. O artigo de Karen Racine transporta a questão para a década de 1820, em Birghman, na Inglaterra, a nação mais poderosa do mundo e berço da imprensa periódica. Em um contexto tanto de expansão da imprensa como de novas experiências pedagógicas, jovens estudantes, filhos da elite de uma América hispânica revolucionada foram enviados para o estrangeiro, a fim de estudar numa escola progressiva chamada Hazelwood onde produziram um curioso jornal, o Hazelwood Magazine, que alinhado com os objetivos cívicos e pedagógicos da escola, pretendia formar os cidadãos de bom caráter dentro da lógica revolucionária liberal. Do outro lado do mundo, no Brasil, o embate que se verificava entre as elites de um Maranhão ainda divido entre a adesão à independência brasileira e a fidelidade a Portugal, aparece nas páginas do jornal longevo – para os padrões do tempo –, o Conciliador do Maranhão. Exemplo que demonstra como as notícias e o debate constitucional tiveram uma circulação transatlântica que incluía os pontos mais distantes desse imenso país, como o demonstra o artigo de Marcelo Cheche. Na corte do Rio de Janeiro, uma imprensa incipiente, mas de grande atividade agitaria a cena da independência. Um dos personagens de maior destaque foi João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro que liderou o movimento pela convocação de uma constituinte brasileira, a partir de um abaixo-assinado apresentado a d. Pedro. Soares Lisboa foi um difusor da cultura política das luzes e, em seu artigo, Paula Caricchio apresenta e discute a forma como as ideias de Civique Gastine foram difundidas no Brasil através as páginas do Correio do Rio de Janeiro.

Dentro do mesmo recorte temporal, século XIX, reunimos os artigos que contemplam o papel da evolução das técnicas de impressão e da especialização das atividades jornalísticas que sucederam aos embates travados na imprensa do Primeiro Reinado. O uso da litografia pela imprensa periódica possibilitou o surgimento e a popularização das revistas ilustradas dando vez a um elenco de caricaturistas e ilustradores especialmente estrangeiros, que tornariam bem mais animada a cena impressa brasileira. Um dos que aqui aportou, em 1875, foi Rafael Bordalo Pinheiro, maior nome da caricatura portuguesa do XIX. Rosangela de Jesus analisa as dificuldades de adaptação de Bordalo Pinheiro em um ambiente já consolidado em que outros artistas já tinham conquistado renome. Com a multiplicação de jornais e revistas ao longo do século XIX, os empregos nas tipografias para profissionais do ramo também se multiplicaram. Exercendo uma profissão que requeria o bom conhecimento da língua, os tipógrafos foram uma das primeiras categorias a se organizar e a publicar seus próprios jornais. Tania de Luca analisa esse processo a partir do estudo de uma das publicações do gênero, a Revista Tipográfica, que circulou no Rio de Janeiro entre 1888 e 1890, revelando a forma como os tipógrafos viam a profissão e como avaliavam o avanço da arte tipográfica no Brasil. O progresso da imprensa no dezenove também levou a uma especialização setorial com destaque para a imprensa esportiva uma das que primeiro se firmou. Sendo o famoso esporte bretão o que viria a se tornar o mais popular no Brasil, Victor Melo apresenta as adaptações que o futebol sofreu, comparando as informações que a imprensa fluminense fornecia sobre a prática daquele esporte na Inglaterra, na França e na Argentina. Em 1898, a realização, em Lisboa, do Congresso Internacional da Imprensa, como nos revela Adelaide Machado, seria um fator de reconhecimento da grande transformação que a imprensa sofrera ao longo do século XIX: o jornalismo tinha se firmado como profissão independente; fora criado um estilo jornalístico de escrita e a própria imprensa se convertera um negócio altamente lucrativo dando origem às grandes empresa jornalísticas.

A segunda parte de nosso dossiê se ocupa do século XX e se divide entre quatro artigos. Os dois primeiros voltados para o tema da imigração em dois contextos bem diferentes. A política de imigração europeia iniciada por d. Pedro II teve grande impulso no final do século XIX. O artigo de Rosane Marcia Neuman nos apresenta curiosa publicação aparecida em Leipzig, na Alemanha, em 1902 e 1903. Era assinada pelo dono de uma empresa de colonização, Hermann Meyer, com o objetivo de fazer propaganda das vantagens de imigrar para o Brasil. Em sua publicação, Meyer reproduz artigos e cartas de e / imigrantes alemães, membros da colônia criada por ele, entre os municípios de Cruz Alta e Palmeira, no Rio Grande do Sul. Uma outra imigração, bem diversa foi a que, depois da Segunda Guerra Mundial, deu origem a uma colônia formada por certa de 2500 pessoas que se estabeleceram no município de Guarapuava, no Paraná, no hoje distrito de Entre Rios. Esse distrito foi fundado, entre março de 1951 e janeiro de 1952, justamente para acolher aqueles imigrantes. Os membros dessa colônia se identificam coletivamente como suábios do Danúbio e eram oriundos de áreas da antiga Iugoslávia, Hungria e Romênia. Marcos Nestor Stein em seu artigo, apresenta e analisa as narrativas desses imigrantes publicadas em 1991 e 1992 no Jornal de Entre Rios em comemoração aos 40 anos de fundação daquele distrito.

O uso da imprensa para a desconstrução de imagem de um político é contemplado com dois artigos que falam sobre Getúlio Vargas em dois períodos momentos distintos. George Seabra escreve sobre o jornal Anhanguera, principal veículo de divulgação do ideário do movimento bandeirante que se apropriava de representações literária dos bandeirantes paulistas com finalidades políticas. O autor apresenta o perfil de alguns de seus membros, analisa a forma como divulgam seu ideário e mostra como o jornal foi recebido por militares e civis. Destaca ainda o papel de Anhanguera na construção da imagem negativa de Getúlio Vargas, em contraste com a do candidato paulista à Presidência da República, Armando de Salles Oliveira, nas eleições de 1937, abortadas pelo golpe do Estado Novo. Outro Getúlio Vargas, eleito presidente em 1951 e já transformado pela história, será o alvo dos ataques do jornal Correio da Manhã. Luiz Carlos dos Passos Martins, mostra em seu artigo como aquele jornal fundando no final do século XIX, seria uma das trincheiras de combate a Vargas e ao próprio regime democrático.

Finalmente, mas não menos importante, é a contribuição que nos traz de Cuba Yaneidys Arencibia Coloma, que nos revela um pouco do que era a imprensa que se fazia na ilha, antes da revolução de Fidel. A autora nos apresenta a Jorge Manach, jornalista, editor e intelectual de grande influência no seu país, destacando o caráter de ensaística cultural que caracterizava seus escritos, seus vínculos com vários projetos editoriais e sua ação decisiva no sentido de que fosse criada a Universidad del Aire. Esse artigo nos ajuda a conhecer o gradual processo de autonomia e de legitimação do pensamento cultural cubano, além de contribuir para nos mostrar formas específicas de sociabilidade intelectual, originadas pela atuação de Manach em seu tempo.

Temos o privilégio de encerrar esse número com uma entrevista com Celia Del Palácio Montiel, importante pesquisadora da história da imprensa mexicana, fundadora da Red de Historiadores de la Prensa en Iberoamérica (1999) e, desde 2018, coordenadora do Grupo Temático Historia de la Comunicación, da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC) e autora de inúmeras publicações. Nesta entrevista, Célia del Palácio reafirma a importância da imprensa como campo estratégico fundamental para a história e demonstra como esse campo de estudos vem se consolidando na América Latina. A historiadora também destaca o papel dos estudiosos da imprensa no atual contexto mundial: “A los estudiosos de los medios toca analizar a profundidad lo que ocurre, desde la academia, denunciar los ataques a la libertad de expresión y presentar la evidencia en los foros más allá del reducido espacio académico” [3]. Esperamos que este Dossiê seja uma contribuição à essa tarefa.

Notas

3. PALÁCIO, Célia Del. Depoimento de Célia Del Palácio. Destinatários: Marlise Regina Meyrer e Helder V. Gordim da Silveira. [S. l.], 7 abr. 2020. 1 mensagem eletrônica.

Isabel Lustosa – Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, RJ. orcid.org / 0000-0003-2456-6925 E-mail: [email protected]

Marlise Regina Meyrer – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). orcid.org / 0000-0002-6446-7799 E-mail: [email protected]


LUSTOSA, Isabel; MEYRER, Marlise Regina. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 2, maio / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Intelectuais e circulação de ideias na América Latina / Varia História / 2014

O presente dossiê de Varia Historia é dedicado à História Intelectual Latino-Americana, com ênfase na história dos impressos, das ideias e de sua circulação.

A História Intelectual é um campo de estudos que vem crescendo nas universidades e instituições de pesquisa latino-americanas, particularmente a partir dos anos 1980 e 1990, juntamente com os processos de redemocratização em vários países do continente e a necessidade de se repensar o papel dos intelectuais na vida política e social de cada um dos países e na América Latina como um todo.

O importante ensaísta e crítico literário uruguaio Ángel Rama já havia, em seu famoso livro La ciudad letrada, de 1984, indicado alguns caminhos que seriam percorridos pela história intelectual latino-americana nas décadas seguintes, particularmente sobre as vinculações entre os intelectuais e os núcleos urbanos de poder.[1]

Conforme Carlos Altamirano, em sua introdução geral aos dois volumes da Historia de los intelectuales en América Latina, além das ideias, era necessário aprofundar a reflexão sobre a posição dos letrados latino-americanos no “espaço social, suas associações e formas de atividade, instituições e campos da vida intelectual, seus debates e relações entre ‘poder secular’ e ‘poder espiritual'”.[2]

Os estudos na área de História Intelectual, em um sentido amplo, têm como seus objetos de pesquisa e reflexão não apenas a história do pensamento e o debate de ideias e ideologias, mas questões como a constituição de redes e sociabilidades intelectuais; os variados tipos de impressos, sua circulação e articulação com o debate público; as viagens e intercâmbios; as experiências de exílio e deslocamento etc. São estudos que buscam analisar as conexões entre os intelectuais e as diversas instâncias da vida pública, como a política, a diplomacia, os meios de comunicação, as instituições educativas e científicas, as expressões artísticas, associações e movimentos sociais, entre outras.

Na América Latina, as pesquisas nessa área tiveram um incremento muito vigoroso a partir dos anos 1990. A criação do Programa de História Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina, em 1994,[3] e a publicação de Prismas – Revista de historia intelectual pela editora da UNQ, desde 1997, são marcos importantes para essa área de estudos. Em vários países latino-americanos – com destaque para Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai – é crescente o número de pesquisadores e trabalhos publicados na área de História Intelectual. Esse aumento teve, como um de seus desdobramentos, a realização do I Congreso de Historia Intelectual de América Latina, em Medellín, Colômbia, em setembro de 2012, e o II Congreso de Historia Intelectual de América Latina, que será realizado em Buenos Aires, em novembro deste ano.

O dossiê que ora apresentamos traz cinco artigos que abordam algumas das temáticas elencadas acima: o debate de ideias e sua circulação entre países e continentes; os periódicos, sua importância e repercussão; as trajetórias e inserção de intelectuais na cena pública.

Abrindo o dossiê, Maria Ligia Coelho Prado analisa os artigos publicados a respeito do México na famosa publicação francesa Revue des Deux Mondes, entre 1840 e 1870. A revista, muito lida pelos intelectuais latino-americanos, expressava, como demonstra a autora, os interesses nacionais e a perspectiva imperial da França. De todos os países latino-americanos abordados pela Revue, o México foi o objeto predileto das reflexões do periódico, no período estudado, em cerca de 30 artigos. Os intelectuais franceses que escreveram na Revue defendiam que seu país deveria ocupar um papel de liderança do “mundo latino”. O México era representado, nesses artigos, como um país “exótico, atrasado, anárquico, vivendo nos tempos de Felipe II”. E, como lembra Prado, durante o governo de Napoleão III, os franceses colocaram em prática esta perspectiva, ao enviar tropas para sustentar a monarquia no México, numa intervenção, afinal, derrotada pelos liberais mexicanos. Sendo assim, o artigo de Ligia Prado traz elementos para uma melhor compreensão de um aspecto pouco salientado da ação francesa na América Latina no século XIX, seu papel imperial, para além do lugar da França – e de Paris, especialmente – como o principal centro intelectual, literário e cultural, para onde convergiam, ou desejavam convergir, os intelectuais latino-americanos.

José Luis Bendicho Beired, em seu artigo Hispanismo e latinismo no debate intelectual ibero-americano, analisa a constituição de vertentes defensoras do hispanismo e do latinismo nos dois lados do Atlântico, entre meados do século XIX e meados do XX. Utilizando-se de revistas e jornais como principais fontes documentais, o autor mostra que, até inícios do século XX, não havia evidente oposição entre essas duas correntes, sendo predominante, inclusive, uma visão de complementaridade. Para intelectuais franceses, assim como para espanhóis, devia-se contrapor, às intervenções norte-americanas sobre a América ao sul do Rio Bravo, a “cultura latina”. E nos países hispano-americanos, principalmente após a intervenção dos Estados Unidos na guerra de independência de Cuba, fortaleceu-se uma afirmação latino-americanista. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, as distinções entre o latinismo, vinculado às pretensões hegemônicas francesas, e o hispanismo, encabeçado pela Espanha, ficaram mais pronunciadas. O autor faz referências, também, acerca do debate sobre o iberismo, tanto na Espanha como em Portugal. Ao analisar concepções formuladas por intelectuais da península Ibérica e da América Hispânica, além de ações concretas para incrementar os vínculos com os países ibero-americanos, tanto por parte da França como da Espanha, Beired mostra a riqueza dos debates que envolviam, por um lado, filiações e vínculos intelectuais entre hispano-americanos e europeus, e, por outro, afirmações identitárias dos países latino-americanos – que cada vez mais se reconheciam como parte de uma região denominada América Latina –, sem ignorar as alterações que se estabeleceram nos termos do debate em função das significativas mudanças ocorridas na Espanha, a partir da Guerra Civil e da vitória franquista, em outros países europeus e nas Américas, ao longo do período enfocado.

No terceiro artigo do dossiê, Alejandra Mailhe analisa a revista Archivos de psiquiatría, criminología, medicina legal y ciencias afines, dirigida pelo médico e ensaísta argentino de origem italiana José Ingenieros (1877-1925), um dos mais importantes intelectuais latino-americanos de sua geração. A revista Archivos, publicada em Buenos Aires de 1902 a 1913, ocupou um lugar central, como mostra Mailhe, no desenvolvimento da psiquiatria e da criminologia como áreas especializadas do conhecimento, não só na Argentina como em muitos países da América Latina, contribuindo para a formação de uma rede de contatos e de ideias no continente. Entre seus colaboradores, Archivos teve autores latino-americanos e europeus. Entre os primeiros, brasileiros como Evaristo de Moraes, Francisco Franco da Rocha e Raimundo Nina Rodrigues. Conforme esclarece a autora, a revista tinha, como principal objetivo, o “estudo científico dos homens anormais”, especialmente criminosos e dementes, com ênfase em concepções positivistas de começos do século XX, mas com aberturas para outros enfoques. Para o leitor brasileiro, é de especial interesse a abordagem de Mailhe sobre as contribuições de Nina Rodrigues a Archivos e as divergências entre o autor brasileiro e José Ingenieros. O artigo de Mailhe procura mostrar, também, como a revista contribuiu para um processo, ainda que “muito moderado”, de “latino-americanização” dos intelectuais argentinos.

Regina Crespo, no artigo seguinte, intitulado O México de Rodrigo Otávio e de Cyro dos Anjos: entre as atribuições do funcionário e o olhar do escritor, analisa os olhares dos dois intelectuais brasileiros sobre o México, a partir de suas experiências no país setentrional em atividades diplomáticas. Depois de breves considerações sobre autores brasileiros que escreveram sobre o México – como Ronald de Carvalho, Erico Verissimo e Vianna Moog –, Crespo dedica-se à análise dos textos que, sobre o México, escreveram dois outros escritores brasileiros: o jurista Rodrigo Otávio e o escritor e funcionário público Cyro dos Anjos. Otávio esteve no México algumas vezes, entre 1923 e 1926, nas quais atuou em missões diplomáticas. Cyro, por sua vez, viveu na Cidade do México três décadas depois, de 1953 a 1954, atuando como professor da cátedra de Estudos Brasileiros na Universidad Nacional Autónoma de México e, a serviço da Embaixada brasileira, dando palestras sobre o Brasil em várias cidades mexicanas. No caso de Rodrigo Otávio, a principal fonte de Crespo foi seu livro México e Peru, publicado em 1940, além de jornais mexicanos da década de 1920 e da correspondência diplomática. Para analisar a visão de Cyro dos Anjos sobre o país hispano-indígena, a autora também se utilizou, principalmente, da correspondência diplomática, além das cartas entre o romancista de Montes Claros e o conterrâneo mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Carlos Cortez Minchillo, no artigo que fecha o dossiê – intitulado A América Latina de Erico Verissimo: vizinhança, fraternidade, fraturas –, aborda a presença da América Latina na obra e trajetória do escritor gaúcho Erico Verissimo, com ênfase no seu relato de viagem México, publicado em 1957, e no romance O senhor embaixador, de 1965. Como sustenta o autor, Verissimo pensou a América Latina tendo os Estados Unidos como contraponto, tanto em razão do contexto da Guerra Fria como da polarização do debate político nos países latino-americanos, particularmente após a vitória, em 1959, da Revolução Cubana. A contraposição entre a América Latina e os Estados Unidos deu-se, também, face à própria vivência pessoal e profissional de Erico nos Estados Unidos, como palestrante e professor visitante em universidades norte-americanas, em 1941 e 1943-1945, e como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, de 1953 a 1956 – períodos em que Verissimo ampliou sua sociabilidade intelectual não só com norte-americanos como também com vários hispano-americanos. Se nos anos 1940, no contexto da Segunda Guerra, Erico assumiu a defesa do pan-americanismo, na década seguinte, em plena Guerra Fria, o escritor brasileiro tornou-se cada vez mais crítico da política interna e, principalmente, da política externa dos Estados Unidos, e mais sensível às sociedades latino-americanas, suas culturas, histórias e problemas sociais. Carlos Minchillo mostra, entretanto, as ambiguidades das representações do “povo” latino-americano nessas duas obras de Erico. O artigo busca avaliar, ainda, a recepção das obras de Verissimo entre os anos de 1950 e 1970, assim como as possíveis implicações das posições políticas do autor, um social-democrata crítico tanto dos regimes ditatoriais de direita como dos regimes totalitários do Leste Europeu, naqueles anos polarizados e de intensos debates em torno do compromisso político dos escritores e intelectuais.

Esperamos que este dossiê de Varia Historia contribua com o crescimento do interesse pela História Intelectual Latino-Americana e para incrementar as pesquisas, o intercâmbio e a circulação de ideias entre pesquisadores brasileiros e hispano-americanos.

Notas

1. RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover, New Jersey: Ediciones del Norte, 1984. [ Links ] A primeira edição brasileira foi publicada no ano seguinte: A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vale lembrar que Rama teve fortes vínculos com a cultura e a literatura brasileiras, tendo ministrado aulas na Universidade de São Paulo, em 1974, em disciplina sob a responsabilidade de Antonio Candido, e retornado ao Brasil em 1980 e 1983, apenas dois meses antes do acidente aéreo que o vitimou. Cf. AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra G. T. (orgs.). Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001, p. 30-35.     [ Links ] 2. ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 11.     [ Links ] 3. O Programa de História Intelectual esteve sob a direção de Oscar Terán até 2005, Carlos Altamirano até 2009 e, desde então, Adrián Gorelik. Em 2011, foi criado o Centro de História Intelectual da UNQ. Cf. http: / / www.unq.edu.ar / secciones / 243-centro-de-historia-intelectual-chi / . Acesso em: 15 set. 2014.

Kátia Gerab Baggio – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.


BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.54, set. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Espaços públicos e circulação de ideias nas Américas / Territórios & Fronteiras / 2014

Há algumas décadas a historiografia dedicada às Américas, e especialmente à América Latina, tem experimentado uma diversificação de temas e enfoques que dialogam com os processos históricos vivenciados após o final de regimes ditatoriais e com as novas conformações políticas e econômicas do continente. Questões levantadas sobre temas capitais como o par público / privado, as demandas da sociedade civil, as dimensões constitutivas da cidadania, as diferentes abordagens de temas culturais explicitam uma premissa que nos parece basilar: a história é sempre escrita desde um presente! Um presente amplo, é verdade, capaz de reunir em si categorias que o complementam e, no mesmo passo, o definem, a exemplo da noção de espaço, de instituição, de tempo, de temporalidade etc.

Considerando tal pressuposto, temos a satisfação de apresentar este dossiê, cuja proposta contempla uma reflexão tão valiosa quanto necessária ao tempo presente. “Espaços públicos e circulação de ideias nas Américas”, tal foi tema oferecido como desafio aos autores que escreveram neste volume. De modo geral, buscamos com o conjunto “espaço público e circulação de ideias” a agência de diferentes grupos e os enfrentamentos que compuseram um repertório de indagações de domínio amplo e compartilhado – em suas concordâncias ou nas discordâncias, por meio do debate público perceptível em circunstâncias de maior ou menor liberdade, e mesmo nos períodos de interdições que marcaram a história do continente. Num mesmo golpe, visualizamos movimento (as circulações) e uma arena capaz de capturá-lo (os espaços públicos), ainda que instantaneamente, a fim de compreendê-lo, esmiuçá-lo.

O historiador Tulio Halperin Donghi já nos havia indicado uma chave de leitura importante para esse jogo entre circulações e suas apropriações. O “uso público da razão”, conforme ele notara, elabora-se com base em discursos mobilizadores e estruturadores das linguagens políticas, constituindo-se, portanto, em produto e produtor de significados heterogêneos. A pulverização entre diferentes audiências e identidades que podem ser reivindicadas por ideias que circulam em espaços públicos sugere outro exercício relevante, e que atravessa este dossiê: questionar premissas homogeneizantes e, ao mesmo tempo, reconhecer a variedade das pesquisas que consideram a existência de espaços públicos como o local privilegiado para a ação política, e que observam como a circulação de ideias ultrapassa fronteiras, criando significações distintas em cada época. Do legado colonial à emergência das nações contemporâneas, recuperando a ideia do letrado colonial de Angel Rama ou do letrado patriota do período das independências, por exemplo, há um vasto repertório de ênfases e questões próprias à formação das sociedades americanas, com seus traumas, fragmentações e pluralidades. Os paradoxos na construção do espaço público e da circulação de ideias exigem, ainda, questionar a idealização dos feitos da moderna cidadania na emergência das repúblicas ou mesmo dos grupos políticos que se organizaram em torno das questões da memória nos debates estabelecidos a partir do final das mais recentes ditaduras militares.

O leitor encontrará nas páginas desta edição de Territórios & Fronteiras um rol de artigos que desdobraram o tema proposto em muitas faces distintas e instigantes, oferecendo aos interessados em história das Américas reflexões originais. As boas vindas à discussão ficaram por conta de Pablo Piccato e seu artigo A esfera pública na América Latina: um mapa da historiografia, versão em língua portuguesa do texto publicado originalmente em 2010 na revista Social History. Além de propor uma revisão historiográfica criteriosa, Piccato nos convida a pensar sobre as implicações teóricas e metodológicas dos usos da categoria de “esfera pública”, e também a respeito das possibilidades de se fazer uma “história da esfera pública” no continente. Esfera pública e hegemonia; Habermas e Gramsci: tais são os pontos que balizam sua análise, aproximando-se muitas vezes, mas sem necessariamente se misturar.

Ao percorrer o texto de Pablo Piccato o leitor perceberá que os historiadores interessados no debate em torno da esfera pública na América se dedicaram majoritariamente ao período posterior às independências. A definição dos espaços da ação política, de outras linguagens e de novos atores nas repúblicas recém-independentes foi acompanhada de recorrentes investidas de cunho intelectual com vistas a construir sentimentos de pertença, laços nacionais. Um conjunto de análises sobre esse tema, enfatizando tempos e espaços distintos na América espanhola, é o que se encontrará nos três artigos que se seguem ao texto de abertura. Maria Elisa Noronha de Sá, em Por uma nova ordem de coisas: as reformas rivadavianas na década de 1820 na província de Buenos Aires, retoma as proposições de Reinhart Koselleck para examinar as experiências de tempo dos sujeitos envolvidos com os processos de emancipação política e construção do Estado-nação na Argentina dos anos 1820. Conceitos caros a intelectuais e políticos do século XIX, a exemplo de “revolução”, “nação”, “progresso”, “história”, consistem em vigorosas portas de entrada para a compreensão histórica na medida em que permitem aos historiadores acompanhar e interpretar as mutações semânticas pelas quais eles passam. Conceitos, linguagens, circulações, apropriações, modernização dos espaços políticos, formação dos estados nacionais: esses são alguns dos elementos em torno dos quais se organiza o referido artigo.

A circulação de ideias e linguagens pode ser observada em fontes menos exploradas no debate sobre o espaço público. A troca de cartas entre um soldado e seu irmão durante os anos 1862 e 1867, período em que no México materializaram-se os desejos de expansão de Napoleão III, é reveladora de apreensões e questionamentos abordados por Gabriela Pellegrino Soares em A correspondência de Augustin-Louis Frélaut durante a intervenção francesa no México (1862-1867). Como as populações indígenas teriam se movimentado ante a intervenção francesa no México? As respostas emergem do conjunto epistolar de Frélaut, juntamente com as possibilidades variadas de se pensar a circulação de bens, pessoas, ideias e as tensões que permeavam as relações entre os diferentes atores que se enfrentavam nos espaços políticos e intelectuais do México dos anos 1860. Se com o texto de Gabriela Pellegrino Soares vislumbramos a percepção “estrangeira” sobre os indígenas “mexicanos”, elaborada num momento em que se buscam as raízes históricas e nacionais do novo país, no artigo de Maria Helena Rolim Capelato, encontramos o tema da produção da identidade nacional e política, porém agora no Chile. Da emulação dos modelos europeus, própria do impulso modernizador verificado a partir das últimas décadas do século XIX, até a emergência de um pensamento conservador após o golpe de Pinochet, em 1973, acompanhamos a trajetória de uma proposta: a criação da identidade nacional chilena em três tempos. O ser chileno, argumenta Capelato, é criado e recriado em três chaves distintas: com a recuperação do mito de Diego Portales, um dos pais fundadores da pátria, nos anos 1920 e 1930; com a propagação de uma historiografia revisionista que pretendia responder às crises pelas quais passava a sociedade chilena de meados do século XX; e com um discurso conservador sobre a identidade, formulado nos anos da ditadura. A leitura desse artigo não deixa dúvidas: a história é sempre escrita desde um presente!

A noção de que a agência de diferentes grupos e os enfrentamentos nos espaços públicos, nas democracias ou nas ditaduras, integram o tema deste dossiê fica bem documentada no texto de Paulo Renato da Silva, A oposição na “literatura stronista” e a opinião pública na ditadura do general Alfredo Stroessner (Paraguai, 1954-1989). Enquanto notamos no Chile a construção de um discurso identitário, atrelado a um pensamento conservador, observamos no contexto paraguaio analisado as possibilidades de dissenso, interpretadas com base na análise da própria literatura stronista. Na disputa pelo controle do espaço e da opinião públicos, o enfrentamento indicava a necessidade de o discurso oficial reconhecer e se apropriar de princípios que eram identificados nas demandas da oposição, frequentemente representada na literatura simpática ao regime de Stroessner.

Se o tema do dossiê sugere um viés eminentemente político, há que se considerar que ele permite a problematização em outros âmbitos. Com o artigo de Beatriz Helena Domingues, acompanhamos de perto os modos pelos quais o historiador norte-americano, e brasilianista, Richard Morse leu e se apropriou dos escritos de Gilberto Freyre. Ou melhor: o modo como este se fez presente na obra daquele. A hipótese do artigo se cristaliza em seu próprio título: A presença de Gilberto Freyre na obra de Richard Morse. A familiaridade da historiadora com os escritos de Morse e seu entusiasmo ao perseguir as “matrizes freyrianas” no pensamento do brasilianista são reveladoras de uma operação historiográfica que dialoga com ideias e reapropriações de nomes basilares do debate cultural latino-americano. Em O cinema se alastra pela América Latina: repercussões do novo espetáculo, artigo assinado por Miriam V. Garate, a autora analisa uma série de escritores e cronistas de diferentes partes da América que abordaram a novidade que representava o cinema. As relações entre o espetáculo cinematográfico, pleno de efeito de realidade, e a vida cotidiana não demoraram a ser registradas por aqueles cronistas, que muitas vezes conceberam o cinema como um espaço de evasão do mundo real. Ou mesmo como “paliativos imaginários” antes a crueza da vida, publicizando experiências e a formação de uma audiência que traz questões originais na descoberta das sedutoras imagens audiovisuais

O artigo que fecha o dossiê recoloca o problema da circulação de ideias valendo-se de uma proposta metodológica conveniente à própria noção de “circulação”: a história Atlântica. Hereges nos mares de Deus. A ação de corsários como episódio das Guerras de religião no século XVI, de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes, propõe ao leitor um retorno ao período colonial, para que se possam observar as trocas e circulações de ideias, nem sempre amistosas, entre representantes do catolicismo e de grupos reformistas. Tendo o Atlântico como palco, argumenta Luiz Estevam, piratas e corsários, os personagens principais dessa trama, tornavam-se algo além de saqueadores, ou de um entrave político e econômico às monarquias ibéricas: eles passavam a ser agentes disseminadores de ideias religiosas e, portanto, armas eficazes nas disputas pelas almas.

Agradecemos aos pesquisadores que integram o dossiê, ao Conselho Editorial da Territórios & Fronteiras e esperamos que cada um dos trabalhos apresentados, em suas reflexões e propostas peculiares, com seus enfoques e recortes, possa contribuir para a ampliação dos debates sobre o “Espaço público e circulação de ideias nas Américas”. Afinal, trata-se de um território do qual fazemos parte, mas que, por diferentes processos, ainda expressa uma ambiguidade de proximidade e distanciamento para grande parte dos pesquisadores brasileiros.

Boa leitura!

Os organizadores

Anderson Roberti dos Reis – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

José Alves de Freitas Neto – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]


REIS, Anderson Roberti dos; FREITAS NETO, José Alves de. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.7, n.1, jan / Jun, 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Nas Américas, sobre as Américas: redes de conhecimento e circulação de ideias | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2010

Este número publica o dossiê “Nas Américas, sobre as Américas: redes de conhecimento e circulação de ideias”, composto por estudos de casos que analisam a conformação de processos de circulação do conhecimento entre diferentes espaços geográficos e sociais.

Ao abordar o tema da circulação em História, é fundamental abrir mão das discussões acirradas sobre a noção de “centro” e “periferia” – que, muitas vezes, de forma artificial, dividem o mundo – para dar maior ênfase aos mecanismos de comunicação mútua entre contextos nacionais diferentes, numa intricada rede internacional, desde os primeiros contatos entre os chamados Velho e Novo Mundo. Leia Mais