Jinga de Angola: a rainha Guerreira da África | Linda M. Heywood

Cercada por mitos e controvérsias, a história da Rainha Jinga já inspirou livros, canções, filmes e movimentos sociais. No Brasil, trabalhos como de Selma Pantoja (2000) e de Mariana Bracks Fonseca (2018) ilustram a importância da rainha Jinga no contexto africano as representações dela ao longo do tempo. Atualmente, o livro “Jinga de Angola: a rainha guerreira da África”, escrito por Linda M. Heywood, é o mais recente e um dos mais completos estudos sobre a história da rainha africana que enfrentou disputas internas e externas para reconstruir o reino do Ndongo entre os séculos XVI e XVII.

A autora tem uma carreira consagrada ao estudo das sociedades na África Centro Ocidental (grosso modo atual Angola), tendo publicado monografias e organizado livros sobre o tema. Seus trabalhos versam sobre assuntos relacionados à política, cultura, poder e diáspora no contexto africano. Entre nós, a produção de Heywood é tímida, resumindo-se ao livro de organização “Diáspora Negra no Brasil” (2008), da editora Contexto, versão do livro Central Africans and Cultural Transformations in American Diaspora, mas composta apenas com artigos relacionados ao Brasil.

A obra aqui resenhada foi publicada inicialmente em inglês com o título Njinga of Angola: Africa’s Warrior Queen pela Harvard University Press (2017), e publicada no Brasil em 2019 pela jovem editora. Antes disso havia sido publicado em Portugal, um dos raros casos de livros sobre a história da África rapidamente traduzidos à língua de Camões, talvez pelo apelo da biografada.

A nova capa e o posfácio de Luiz Felipe de Alencastro dão charme especial à versão brasileira.

Nesse trabalho a autora buscou enfatizar os aspectos políticos, militares e da religiosidade que permearam a trajetória da personagem. Com uma escrita clara e direta, o denso trabalho apresentado no livro se divide em sete capítulos, tratando desde a divisão geográfica da África Central à narrativa da ascensão da rainha Jinga. A constar, o território do reino do Ndongo hoje corresponde ao norte da Angola, que a autora apresenta com riqueza de detalhes, referências atuais e mapas a facilitar a compreensão de leitores não iniciados na história da África.

Organizado cronologicamente, o primeiro capítulo intitulado “O reino de Ndongo e a invasão portuguesa” apresenta o seu fundador, Ngola Kiluanje kia Samba (1515-1556), e a sucessão de soberanos para o cargo de ngola (rei do Ndongo) paralelamente aos primeiros contatos com portugueses. Com a série de tensões e a instabilidade dos conflitos, o capítulo dois trata da “Crise e ascensão de Jinga”, no espaço em que seu irmão assumiu e perdeu o controle do trono (e da própria vida), recaindo sobre Jinga as responsabilidade do trono.

Jinga nasceu em 1582, filha de Mbande Ngola e sua concubina favorita Kengela ka Nkombe. Dessa relação tinha três irmãos: Ngola Mbande (o mais velho), Funji e Kambu, as duas últimas batizadas mais tarde como Graça e Bárbara, respectivamente (HEYWOOD, 2019, p. 51, 116). Sua ascendência advinha de uma dupla realeza ambundo: sua mãe, membra de uma linhagem real matrilinear, e seu pai, um soberano reinante. Seu nome é oriundo do termo quimbundo (uma das línguas locais) “Kujinga”, que significa “torcer, virar, envolver” em alusão ao seu nascimento com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Segundo a tradição, o parto anunciava como seria a vida da criança e logo entenderam que Jinga enfrentaria muitas batalhas para sobreviver (HEYWOOD, 2019, p. 63).

Jinga testemunhou a resistência e o insucesso de seus antecessores — após a morte do fundador do reino, o cargo de ngola foi ocupado por seu avô, seu pai e seu irmão. A autora não conseguiu levantar muitas informações sobre a vida de Jinga antes de 1624, mas se entre os quarenta e setenta anos ela foi capaz de realizar tantos feitos, seu preparo baseava-se na formação intelectual e militar dos membros da corte. Tendo recebido tratamento privilegiado de seu pai ou pelo próprio treinamento feminino.

Em fins da década de 1620, Jinga começou oficialmente sua luta pelo trono. Era “uma rainha combativa”, título de Heywood para o terceiro capítulo. Com o desenrolar dos conflitos internos e a interferência portuguesa, Jinga precisou negociar com seus aliados e adversários, adotando também estratégias de guerra e fugas, amplamente discutidas em “Política traiçoeira” e “Guerra e diplomacia”, capítulos 4 e 5, respectivamente.

Ao aliar-se com os holandeses e ser traída na década de 1640, Jinga concentrou suas forças em impedir o avanço político e econômico dos portugueses a menos que aceitassem tratar com ela. Apesar de reconhecer seu poder político, os portugueses não a reconheciam como rainha pelo fato de ser mulher e querer administrar o reino sozinha, problema que se agravava com o passar do tempo e o apoio popular que ela recebia (HEYWOOD, 2019, p. 91-96). Depois de muitas idas e vindas nas negociações, os capítulos finais resumem o desenrolar desses acordos como “Um ato de equilíbrio” e a retomada “A caminho dos ancestrais”.

Em síntese, a versão consiste no cruzamento entre espiritualidade, guerra, e diplomacia presentes nas ações realizadas pela rainha. Contextualizando a trajetória de Jinga no processo de colonização, a autora apresenta um debate historiográfico interessante e enriquece a narrativa com variado acervo documental que abarca desde os relatos portugueses até as histórias orais que resistiram ao tempo.

Jinga nunca foi menos combativa nas batalhas ou menos autoritária em relação a seus antecessores. Quando “Senhora do Ndongo”, jamais permitia que um de seus funcionários a subjugasse por ser mulher ou traí-la, correspondendo com crueldade à altura do delito (HEYWOOD, 2019, p. 65-66). Afastando-se da visão tenebrosa propagada pelos escritores do século XVIII e XIX, Linda Heywood apresenta uma visão mais humana da rainha Jinga, enfatizando como as decisões tomadas por ela eram bem articuladas a ponto de causar mobilização popular e o temor de quem ousasse desafiá-la.

Heywood construiu a narrativa a partir do contexto político que Jinga enfrentou, englobando economia, brigas hereditárias, disputas pelo trono etc. Porém, da mesma forma que espiritualidade, guerra e diplomacia perpassam todos os capítulos, a discussão de gênero também está presente. Apenas com menor ênfase, tornando-se algo ocasional. Na historiografia não causa nenhum estranhamento falar de soberanos que não poupavam seus inimigos, sabiam recuar em momentos estratégicos, aliavam-se com adversários em comum de seus inimigos e desafiavam as ordens de outro governante. Tão comum um soberano demonstrar sua virilidade na quantidade de parceiras que possuía. Então, quão poderosa é uma mulher que tantos homens querem seu poder? Mesmo os portugueses não aceitando Jinga como soberana, nos campos de batalha, ela foi tratada por seus adversários de igual para igual, durante as negociações utilizou das mesmas estratégias de outros governantes portugueses, holandeses e africanos. Assim, o fato de ser mulher poderia até ser considerado um mero detalhe se não houvesse a interferência portuguesa, inclusive porque os sobas (chefes locais) da região a consideravam uma rainha destronada. Grosso modo, para os portugueses ela poderia ser uma rainha, mas no posto de auxiliar de um rei, sem conotação política ou militar. Logo, grande parte dos problemas enfrentados por Jinga consistia no fato dos estrangeiros não aceitarem uma governante, e não podendo controlá-la, procuravam difamá-la. Não é à toa que o governador Fernão de Sousa atribuiu o rastro de destruição causado nas duas décadas de rebeliões ao fato dela ser mulher, e não aos conflitos ocasionados pela colonização (HEYWOOD, 2019, p. 104).

Apesar do choque cultural, Jinga seguiu todos os protocolos de um governante para aliar-se aos portugueses, a exemplo do batismo. A autora demonstra como isso parecia lhe fortalecer politicamente. Receber o nome cristão, Ana de Sousa, parecia tão natural como o que ela recebeu ao nascer. Tampouco o casamento afetaria sua vida, tanto que se tornou esposa de Kassanje quando preciso. Acreditando ou não nos extremos dessas cerimônias, pesava também o cunho político. No entanto, na relação com os portugueses o pivô dos conflitos era o desacordo em se submeter a outro soberano, ainda mais sendo uma mulher.

No que tange a relação gênero e poder, a possibilidade de outras mulheres terem inspirado Jinga aparece muito resumida, possivelmente pelo limite de fontes. Informa a autora que apesar de Jinga ter sido a primeira rainha do Ndongo, as mulheres possuíam ativa participação política na corte, assistiam algumas reuniões e podiam compor as tropas, apesar daquelas próximas ao ngola não participarem das batalhas. Além disso, disputavam o trono através dos filhos, a exemplo de Zundu que matou o sobrinho, e depois foi assassinada pela irmã Hohoria Ngola, ambas filhas do fundador de Ndongo. Na cultura imbangala (grupo étnico da região), Jinga se apropriou de rituais específicos para mulheres se prepararem para a guerra, inclusive alguns criados por Tembo a Ndumbo, uma líder imbangala. Não menos importante, os exércitos de Jinga eram formados por homens e mulheres, ambos com seus próprios oficiais de comando durante as campanhas militares (HEYWOOD, 2019, p.165). Suas irmãs, aparentemente, exerciam uma espécie de micropoder, auxiliando Jinga no que era possível.

Uma delas, Funji, foi assassinada por ser informante durante o cativeiro; a outra, Kambu, chegou a ser cogitada como rainha durante as negociações com o governador Manuel Pereira Coutinho (HEYWOOD, 2019, pp. 154-157; 121). Claramente as mulheres não ocupavam postos decorativos nessas sociedades, mas somente com o avanço de pesquisas poderemos definir melhor sua participação.

É preciso ressaltar também como a percepção de gênero era algo mutável entre os ambundos e como o uso de rituais foi importante para que líderes como Jinga pudessem transitar entre o que concebemos por masculino e feminino. Muito além de definidores dos papéis sociais, como na Europa, o gênero aparece na obra como atributo manipulado pela realeza para seu fortalecimento. Assim, grosseiramente falando, o ser masculino ou feminino pode ser entendido como um estado de espírito evocado em rituais religiosos. Tais práticas exumavam dos antepassados habilidades militares e políticas, não necessariamente relacionadas ao sexo biológico, mas ao saber ancestral.

Sem deixar de abordar assuntos atribuídos na visão europeia à esfera feminina, Linda Heywood toca em temas como relações familiares, matriarcado, monogamia e poligamia, maternidade, esterilidade e aborto, ponderando o que poderia ser concepção africana a partir de eventos similares e, principalmente, o cunho político dessas relações que também eram afetivas.

Paralelamente, permite entender a conveniente flexibilidade cultural de Jinga não como uma “fragilidade sexual”, mas um teatro político em prol da reconstrução do reino.

Outro ponto complexo, que poderia render maiores discussões no livro, são as violências sofridas por essas mulheres durante o período. Ainda que movidas por questões políticas, duas situações são marcantes: a primeira quando Ngola Mbande mandou preparar uma mistura de ervas para tornar suas irmãs inférteis, e assim não ter concorrência na sua descendência; a outra quando Kambu é capturada e estuprada por um soldado ambundo durante a perseguição a Jinga (HEYWOOD, 2019, p. 153). Nitidamente havia uma correlação entre os gêneros, mas a disputa pelo poder no Ndongo, ao que parece não se dava pela inferiorização do feminino. No entanto, a influência portuguesa potencializou essas diferenças, a exemplo, do estupro ser uma forma de exercer o poder masculino sobre uma membra da realeza capturada.

A grandeza da trajetória de Jinga deve continuar rendendo e inspirando outros trabalhos, assim como esta importante contribuição de Linda Heywood para a historiografia. A obra colabora tanto para a História da África de maneira geral, quanto para os estudos de gênero numa perspectiva africana, entendendo o papel de Jinga e de outras mulheres em sociedades não europeias no período pré-colonial e durante a transição para as comunidades coloniais.

Referências

HEYWOOD, Linda M. Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora.

Cambridge: Cambridge University Press, 2001 ___________. (Org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

___________. Njinga of Angola: Africa’s Warrior Queen; Harvard University Press, 2017.

FONSECA, Mariana Bracks. Ginga de Angola: memórias e representações da rainha guerreira na diáspora. 2018. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.8.2018.tde- 31072018-172020. Acesso em: 2021-05-28.

PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília: Editora Thesaurus, 2000. Jinga at a crossroads: spirituality, war, diplomacy and gender


Resenhista

Alanna Peronio Bacelar Pereira – E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

HEYWOOD, Linda M. “Jinga de Angola: a rainha Guerreira da África”. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo. Ed. Todavia. 2019. Resenha de: PEREIRA, Alanna Peronio Bacelar. Jinga numa encruzilhada: espiritualidade, guerra, diplomacia e gênero. Cantareira. Niterói, n.35, 2021. Acessar publicação original [IF]

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