Justiça do Antigo Regime / Textos de História / 2003

Apresentação

Enquanto na Europa é crescente o interesse pela História do Direito, no Brasil esta vertente da produção histonográfica encontra-se ainda em fase rudimentar. Especialmente para o período moderno, no qual o Brasil se insere em seu momento colonial, as pesquisas são ainda escassas.

Embora seja digna de destaque a recente obra de Amo Wheling e Maria José Wheling — Direito e justiça no Brasil colonial —, 1 a questão do direito e da justiça neste período tem despertado pouco interesse entre os pesquisadores.

Quando abordada, a administração da justiça na colônia é pensada em geral fora dos referenciais da cultura política e jurídica do antigo regime português e tem sido interpretada como “irracional”, “caótica” e até mesmo “esquizofrênica”. Sem dúvida, assim poderia ser interpretada, se orientada, anacrônicamente, pelos parâmetros do direito moderno, marcado pela racionalismo e pelo papel central atribuído ao Estado, fenômeno para o qual as pesquisas de Antônio Manuel Hespanha sobre as práticas da justiça no Portugal moderno têm chamado a atenção2.

Até a segunda metade do século XVIII, no âmbito da cultura jurídica portuguesa, a lei era uma fonte de menor importância no campo de um direito cuja natureza era basicamente doutrinai. E, além de fenômeno minoritário, a lei era também um fenômeno subordinado. De um lado, o soberano era limitado pelo direito natural e divino, de outro, os juizes não eram obrigados a seguir aquilo que lhes parecia contrário ao direito doutrinai.

Por outro lado, a ordenação dos corpos políticos inferiores e os privilégios também impunham limitações à lei. Assim, a lei situava-se entre a doutrina do direito comum que a limitava por cima e um direito dos corpos políticos que a esvaziava por baixo3.

Embora no período pombalino tenha havido uma valorização da lei, interpretada como manifestação da vontade do monarca, as reformas realizadas no âmbito do direito parecem ter tido impacto reduzido. Permaneceram muitos obstáculos para uma eficácia ampliada da lei, como, por exemplo, o número insuficiente de funcionários administrativos para exercer controle sobre a sua aplicação, as deficiências de comunicações, a permanência de juizes iletrados na maior parte das câmaras municipais e o peso do direito costumeiro nas regiões do interior. Para completar, predominou em Portugal, até a revolução vintista do século XIX, a idéia de uma justiça cristã voltada prioritariamente para o bem comum que revestia o monarca do poder, não apenas de punir exemplarmente seus vassalos, como de agraciar e perdoar.

A idéia de bem comum, embora re-atualizada pela noção de progresso no final do século XVIII, estimulava a prática de uma justiça que priorizava a conciliação em situações de conflito.

Os textos reunidos neste dossiê tratam, sob ângulos diferentes, e em contextos também distintos, da questão da justiça no Antigo Regime, expressão que, embora originária do final do século XVIII e estreitamente associada à Revolução Francesa, é hoje de uso corrente na historiografia para designar os regimes políticos da Europa moderna. Com a preocupação de fugir ao anacronismo, os textos resgatam antigas maneiras de se conceber a justiça, que não apenas foram hegemônicas no passado como se prolongaram no período de transição para o Estado Liberal.

O artigo de Benoít Garnot trata da justiça no antigo regime francês e propõe a interpretação das relações justiça-sociedade a partir das práticas sociais e não apenas das normas jurídicas. O autor insere-se no grupo de autores que tem renovado a história da justiça e da criminalidade na França.

Os demais artigos abordam a questão da justiça no Brasil. Maria • Filomena Nascimento examina a questão da corrupção e do suborno no contexto de uma cultura jurídica que coexistia com as lógicas do privilégio e da hierarquia. Sua reflexão tem como suporte documentação relativa à capitania de Pernambuco dos meados do século XVIII.

Tereza Cristina Kirschner salienta a importância dos canais de comunicação entre vassalos e soberanos na Bahia do final do século XVIII e a associação presente no imaginário social entre a figura do soberano e a justiça.

Entre o rei e a lei interpunha-se a justiça cristã, o bem comum e a graça.

O artigo de Jean-Phüippe Challandes procura mostrar a permanência de antiga concepção da justiça, associada à moral e ao bem comum, no período de formação do Estado nacional brasileiro. Articulada ao Estado constitucional, a justiça assim concebida constituía a base de um dos projetos políticos para o Brasil na primeira metade do século XIX.

Notas

1 WHELING, Arno e JOSÉ, Maria. Direito e justiça no Brasil colonial. 0 Tribunal da Relação do Rio de janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

2 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade: História eprospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; As vésperas do heiiathã,. Instituições e poder político.

Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994; Panorama histórico da cultura juríàca européia. Lisboa: Europa- América, 1998 e Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra: Almedina, 2004.

3 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade. História e prospectiva. op.át.

Tereza Cristina Kirschner

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.