Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime / Locus – Revista de História / 2018

É com muita satisfação que apresentamos ao leitor o Dossiê Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime. Nossa principal intenção foi criar um espaço para a apresentação, divulgação e debate de resultados de pesquisas que versem a respeito da administração das justiças nos impérios ibéricos durante o Antigo Regime.

Já se vão algumas décadas desde que Stuart Schwartz publicou, em 1973 (traduzida para o português em 1979), Burocracia e sociedade no Brasil colonial. O autor pretendeu esmiuçar as instâncias da administração da justiça no Brasil colonial a partir do estudo do Tribunal da Relação da Bahia e de suas relações quânticas com as representações do poder local. A obra é hoje referência pioneira para o estudo da magistratura portuguesa de Antigo Regime.[1]

Em 1996 foi publicado O desembargo do Paço (1750-1833), de José Manuel Subtil. Aqui encontramos mais uma referência importante para os estudos sobre a administração da justiça no Império Português. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 1994 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e realiza um estudo minucioso sobre as estruturas do tribunal português responsável pela gestão da justiça no reino e por todo império, o Desembargo do Paço. O período estudado também se apresenta revelador, pois José Subtil se debruça sobre o ministério pombalino e o liberalismo vintista das primeiras três décadas do século XIX português.[2]

Mais de quarenta anos se passaram, desde a publicação dessas obras. No entanto, foi somente na última década que o tema adquiriu relevância acadêmica na área de História Moderna e vem substanciando cada vez mais investigações nos programas de pós-graduação. No Brasil, as discussões acerca do tema estão sendo ampliadas. Pesquisadores vêm estabelecendo relações entre a administração das justiças e suas imbricações com a prática dos governos à distância, em todas as suas dimensões e possibilidades, nos âmbitos civil e eclesiástico das monarquias ibéricas de Antigo Regime. Nesse contexto, o Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos foi criado em 2016. Reunindo pesquisadores brasileiros e portugueses, o GP busca matizar os interesses em torno do tema e contribuir para o alargamento dos debates e das possibilidades de pesquisa. Esse dossiê é parte dessa empreitada.

Em “Os conflitos de jurisdição entre os cargos do poder local ou a difícil tarefa de levar justiça aos domínios d’El-Rey”, Thiago Enes propõe um estudo sobre os conflitos de jurisdição que demarcavam a atuação dos ofícios municipais da justiça pelo império português. O autor estabelece relações entre o reino e o ultramar, ressaltando as instabilidades resultantes do estabelecimento do direito positivo e a permanência da tradição consuetudinária.

A seguir, Mônica Ribeiro nos apresenta uma análise da administração da justiça a partir da racionalização administrativa e da prática de uma razão de Estado no setecentos em “Manutenção da justiça e racionalidade política no Império luso, século XVIII: a gestão de Gomes Freire de Andrada, Rio de Janeiro e centro-sul da América portuguesa”. O estudo aborda a época da governação de Gomes Freire de Andrade no centro sul da América portuguesa, conforme indica o título.

O terceiro artigo, intitulado “De Portugal para os sertões do Siará Grande: caminhos de um português em meados do século XVIII”, de Adson Rodrigo Silva Pinheiro trata do trânsito nos sertões do Siará Grande nos idos setecentistas a partir da trajetória de Antônio Mendes da Cunha e suas implicações no Tribunal do Santo Ofício. O autor faz uso de fontes judiciais, além das inquisitoriais, para apresentar o estudo de caso em questão.

José Inaldo Chaves Júnior é autor do quarto artigo, “Reforma dos territórios e das jurisdições nas capitanias do Norte do Estado do Brasil: as atuações do capitão-general Luís Diogo Lobo da Silva e do juiz de fora Miguel Carlos de Pina Castelo Branco na aplicação do Diretório dos Índios (1757-1764)”. A aplicação do Diretório dos Índios nas capitanias do norte do Estado do Brasil é o tema central desse estudo que contempla um dos períodos mais conturbados para a administração da justiça durante o Império português, a época pombalina. O estudo nos revela as complexas relações entre os diversos agentes da governança frente à política de restrição das autonomias locais e de extensão das jurisdições régias sobre a região.

Marcello José Gomes Loureiro encerra nosso dossiê discutindo o poder de arbítrio e justiça representado pelo Conselho Ultramarino, durante os primeiros anos da Restauração. Em “Como poderemos restaurar depois de perdido, senão fazendo Justiça?” O Conselho Ultramarino e o diálogo com as conquistas em tempos de incerteza (1640-1656) nos será possível analisar, junto com o autor, as estratégias buscadas pelo tribunal para mediar a justiça e garantir a harmonia em um período de instabilidade política e administrativa para os domínios ultramarinos.

Por fim, nos resta desejar boa leitura. Esperamos também que o dossiê “Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime” possa contribuir de forma significativa para os avanços dos estudos sobre a administração da justiça durante o Antigo Regime.

Claudia C. Azeredo Atallah

José Subtil

Organizadores do dossiê

Notas

1. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

2. SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Editora da Universidade Nova de Lisboa, 1996. José Subtil possui uma vasta obra sobre o governo da justiça em Portugal e em seus domínios de Antigo Regime. Sobre as reformas pombalinas e suas conexões com o vintismo ver SUBTIL, José. O terremoto político (1755-1759). Memória e poder. Universidade Autónoma de Lisboa: Lisboa, s / d; SUBTIL, José. Portugal y la Guerra Peninsular. El maldito año 1808. In: Cuadernos de Historia Moderna; Anejo VII: Crisis política y deslegitimación de monarquias, 2008 e SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização? In: Ler História, n. 60, 2011.

Claudia C. Azeredo Atallah

José Subtil

Organizadores do dossiê


ATALLAH, Claudia C. Azeredo; SUBTIL, José. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.24, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Cultura escrita, educação e instrução no antigo regime português / História – Questões & Debates / 2014

Este número da Revista História: Questões & Debates traz o Dossiê “Cultura escrita, educação e instrução no Antigo Regime português”, organizado por integrantes do Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa, que reúne pesquisadores de vários estados brasileiros e de Portugal. O Grupo vem atuando desde 2010, com o propósito de verticalizar discussões sobre a cultura escrita entre o século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, em diferentes vertentes que integram os interesses de pesquisa da equipe. Essas vertentes vêm se dedicando ao estudo (i) dos projetos educacionais no Império português, particularmente na América, (ii) das relações entre instrução e educação na formação dos quadros administrativos, nas atividades econômicas e na formação profissional, (iii) das relações entre Iluminismo e cultura escrita, e entre esta e práticas culturais e educativas como mediadoras de sociabilidades, e (iv) das instituições e de seus componentes num mundo supostamente Ilustrado. São temáticas fundamentais para documentar e discutir a passagem do domínio político ao império da língua, assim como para perceber a presença e a importância do elemento letrado, sua demografia, geografia, formação, formas e mecanismos de sociabilidade. Em vista deste programa de pesquisa, o Grupo entende que, para a compreensão dos fenômenos relacionados a este processo, é necessária uma visão que combine, ao mesmo tempo, a atenção às especificidades de cada uma das partes com o entendimento das dinâmicas mais gerais que estiveram em ação no momento em que o Estado português procurava soluções para os seus dilemas políticos, econômicos e culturais, e que as estruturas do Antigo Regime iam dando lugar a novas formas de organização e exercício do poder.

Estas preocupações também surgem por se considerar que a segunda metade do século XVIII foi uma época de profundas mudanças no reino de Portugal e em seus territórios ultramarinos. A área educacional foi particularmente atingida, verificando-se um desejo de transformação na mentalidade dos portugueses, principalmente dos jovens. A reforma dos Estudos Menores (1759 e 1772), a criação da Aula de Comércio (1759) e do Real Colégio dos Nobres (1761), além da reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), são as faces visíveis desse processo que, em certos aspectos, precedeu a diversos outros estados europeus, como a Prússia, Áustria e França, e mostrou uma sintonia entre reformas e o “espírito” daquele século.

Paralelamente às tentativas de impulsionar a educação, a vigilância sobre o que era publicado e lido ganhou novos contornos, com a criação da Real Mesa Censória, em 1768. Neste âmbito, o Tribunal da Inquisição também foi objeto da ação reformista empreendida no reinado de D. José I. Na área da cultura escrita, a própria atividade editorial foi, em muitos momentos, patrocinada pela própria Coroa, interessada em tornar seus jovens “bons cidadãos”, em consonância às ideias então propaladas em obras de intelectuais portugueses influenciados pela Ilustração. Diversos textos foram também publicados pela Imprensa Régia e, mais tarde, pela Imprensa da Universidade de Coimbra. Não menos importante, deve-se considerar que o comércio de livros produzidos fora de Portugal manteve-se muito ativo, como demonstram os inventários de diversas bibliotecas. Ainda nesta perspectiva, a relativa ampliação do ensino das primeiras letras e das gramáticas latina e portuguesa trazia outras populações para o mundo da escrita, com impactos culturais e sociais importantes, sobretudo na América. Estas atividades tiveram continuidade nos reinados de D. Maria e de D. João VI, matizando os efeitos da propalada “Viradeira”.

Assim, os textos apresentados neste Dossiê procuram discutir a importância da cultura escrita e suas relações com a educação e a instrução no Antigo Regime português. Os textos percorrem diferentes temas e investem em abordagens que recorrem a fontes e orientações teórico-metodológicas ainda pouco exploradas pela historiografia, verticalizando discussões sobre o contexto reformista que marcou o mundo luso-americano a partir da segunda metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. Esse movimento renovador também é tributário da interlocução mais frequente entre historiadores e pesquisadores de áreas limítrofes, como Estudos Literários, Sociologia e Educação. É nesta perspectiva que se vislumbra a contribuição destes estudos e sua articulação com um programa de pesquisa mais ampliado.

O primeiro texto, de autoria de Thais Nívia de Lima e Fonseca, a par de apresentar uma concisa discussão acerca dos caminhos da historiografia da educação voltada ao período colonial brasileiro, mostra os resultados do investimento em um novo veio documental, a correspondência trocada entre professores régios, governadores de capitania, bispos, funcionários da Junta da Diretoria Geral de Estudos e o Conselho Ultramarino, a partir da qual são discutidas as relações estabelecidas entre os professores régios e os responsáveis pelo controle administrativo do ensino régio na América portuguesa. A autora destaca, assim, os interesses e conflitos dos sujeitos envolvidos com a educação no contexto colonial, abordando também aspectos do funcionamento cotidiano das escolas régias instituídas, a partir de 1759, com as reformas pombalinas da educação.

A seguir, Antonio Cesar de Almeida Santos revisita o conjunto dos diplomas legais que instituíram as reformas pombalinas da educação, apontando para o tipo de estudante e, consequentemente, para o “profissional” desejado pelos propositores das tais reformas, considerando que elas estiveram orientadas pelo interesse em desenvolver uma mentalidade que se coadunasse à nova realidade que se queria construir. Assim, seu interesse maior é o de perceber os nexos entre as novas ideias que permeavam o ambiente intelectual europeu e os conhecimentos e as metodologias de ensino que foram propostos para a instrução dos jovens portugueses.

Por sua vez, Justino Pereira de Magalhães aborda a administração municipal pela ótica de sua ordenação por intermédio do uso da escrita administrativa, apontando para uma crescente formalização, profissionalização e especialização desse domínio. Enfocando a figura do escrivão, sujeito responsável pelo registro escrito dos atos municipais, mostra como ocorreram a adequação e a legitimação de uma escrita municipal, particularmente a colonial, ao longo do século XVIII, frente às instâncias decisórias do centro. Conforme o entendimento do autor, a escrita municipal é instituidora do próprio município, desvelando-se como texto, e é como tal que precisa ser interpretada.

Em um registro de longa duração, Ana Rita Bernardo Leitão aborda a instrução dos indígenas da América Portuguesa, especialmente no que concerne à introdução do idioma português entre estes sujeitos. Aqui, a atividade educacional, especialmente aquela promovida pela Companhia de Jesus, mistura-se à missionária, vislumbrando-se estratégias de incorporação das populações autóctones à fé católica e à cultura portuguesa. Apesar da relativa eficácia da ação de civilização das populações ameríndias, no que se refere especialmente ao domínio da língua portuguesa, não ficam ausentes os obstáculos enfrentados, em destaque aqueles que serão objeto de atenção do gabinete pombalino.

Ana Cristina Pereira Lage trabalha com dois conceitos essenciais para os estudos que o Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa vem desenvolvendo: letramento e cultura escrita. Em seu artigo, a autora busca compreender, a partir destes conceitos, a produção e a utilização de livros devocionais pelas mulheres que seguiam a Regra de Santa Clara na América Portuguesa. Assim, a partir de uma análise que conjuga a interpretação da Regra, das práticas de leitura, da escrita e dos livros que orientam para o caminho da perfeição religiosa, aponta para o caminho que essas mulheres pretendiam seguir: a busca de uma vida exemplar. A partir da documentação, torna-se possível identificar o estilo literário predominante nos conventos que seguiam a Regra de Santa Clara, estabelecendo padrões para o letramento religioso conventual e que circulava entre Portugal e a América portuguesa, em meados do século XVIII.

Sílvia Maria Amâncio Rachi Vartuli discute os usos sociais que mulheres de Minas Gerais fizeram da escrita, no período de 1780 a 1822, considerando que as relações com a escrita ultrapassam em muito a capacidade de redigir de “próprio punho”. Aborda, assim, os fenômenos da alfabetização e do letramento nas sociedades do período colonial brasileiro, realizando também uma breve discussão acerca da cultura escrita, privilegiando a observação das elaborações discursivas empregadas por aquelas mulheres no momento de redação de seus testamentos. Trata-se, enfim, de um trabalho que destaca a autoria de textos, mesmo que redigidos por mãos alheias, mas que mostram a utilização da escrita no referido contexto.

Completando esta incursão sobre a cultura escrita e suas relações com a educação e a instrução no mundo luso-brasileiro das décadas finais do século XVIII e das décadas iniciais do século XIX, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves enfoca os esforços da Coroa portuguesa em criar, no Rio de Janeiro, uma sociedade mais conforme aos hábitos de uma Europa culta e ilustrada. Assim, discutem-se certas ações do governo joanino que permitiram a criação de escolas e a edição de livros por intermédio da Impressão Régia, buscando difundir uma cultura escrita e propiciando a instrução dos jovens que acompanharam suas famílias na transferência da corte. A circulação de novas ideias permitiu, como aponta Lucia Bastos, o surgimento de novas formas de sociabilidade e de um espaço público que, mais tarde, sediou o questionamento de alguns valores tradicionais, como o governo absoluto e a expressão retórica.

Completando este sexagésimo número da Revista, temos os artigos de Moisés Antiqueira, que empreende um estudo sobre a leitura que Tito Lívio fez do julgamento de Cesão Quíncio, na Roma republicana; de Patrícia Falco Genovez e Flávia Rodrigues Pereira, que abordam políticas de saúde voltadas ao combate da hanseníase e as memórias que a doença provoca em uma comunidade da região leste de Minas Gerais, na década de 1980; e de Coral Cuadrada, que trata da transmissão de saberes medicinais entre mulheres na Catalunha, em um estudo de longa duração (sécs. XV a XX). Também é apresentado artigo de Ray Laurence, sobre a exploração turística das ruínas de Pompeia, em tradução de Pérola de Paula Sanfelice e Daphne de Paula Manzutti.

Desejamos uma boa leitura!

Thais Nívia de Lima e Fonseca

Antonio Cesar de Almeida Santos


FONSECA, Thais Nívia de Lima e; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.60, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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O Antigo Regime no Império Atlântico Português / Canoa do Tempo / 2008

“Outros haverão de ter

O que houvermos de perder.

Outros poderão achar

O que, no nosso encontrar,

Foi achado, ou não achado,

Segundo o destino dado.”

Fernando Pessoa

O novo número da Canoa do Tempo se propôs a contribuir para um debate fundamental na historiografia brasileira contemporânea e que diz respeito às múltiplas formas de interpretação da natureza do Império colonial que se estabeleceu no Novo Mundo. Autores como A J. Russell-Wood, afirmam que estamos diante do “ápice de um processo historiográfico iniciado na década de 1970”. 1

O impacto dessa vigorosa produção pode ser dimensionado não apenas pelas refinadas abordagens, que combinam metodologias inovadoras a pesquisa documental de peso, mas também pela intensidade das polêmicas que protagoniza em diferentes quadrantes. Acreditando no caráter produtivo e estimulante da discussão historiográfica, o Dossiê O Antigo Regime no Império Atlântico Português pretendeu reunir alguns desses autores e colocar em perspectiva novos movimentos analíticos nesse complexo jogo.

Assim, os artigos aqui apresentados formam um conjunto, não necessariamente homogêneo, mas que mantêm um intenso diálogo interno. Inicialmente, pensamos que as discussões poderiam partir do geral (o Reino) para o particular (o Estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará). Porém, e ainda que esta seja a forma final de apresentação do dossiê, os trabalhos, lidos em conjunto, revelaram desenhos inovadores, instigantes e, em alguns casos, com discussões inéditas. Era muito mais do que esperávamos e, diante disso, pareceu-nos evidente que qualquer apresentação ficaria muito aquém da riqueza do dossiê. Optamos, então, por apresentar algumas de nossas impressões iniciais, sem a menor pretensão de esgotar os temas possíveis.

O texto de Antônio Manuel Hespanha (que dispensa maiores apresentações) discute o lugar das cortes nos sistemas de poder da época moderna, refletindo, de modo particular, sobre o período filipino; parte de sua discussão dialoga, diretamente, com o artigo de João Luis Ribeiro Fragoso, quando este apresenta as possibilidades analíticas abertas pela noção de monarquia pluricontinental, em um artigo instigante que combina pesquisa de fôlego com a abordagem inovadora que tem se constituído em uma marca de seu trabalho.

Por outro lado, o artigo de Miguel Jasmins, sobre as ilhas do Cabo Verde, e o de Maria de Fátima Gouvêa, sobre a Capitania do Rio de Janeiro, abordam, por diferentes ângulos e situados em diferentes lados do mar, questões cruciais para a administração colonial, tendo no horizonte as injunções próprias de sociedades de Antigo Regime e as implicações nas estruturas daí decorrentes. Poderiam ser agregados a este bloco de análise, o texto de Rafael Chambouleyron discutindo o lugar e a importância das ilhas (inclusive Cabo Verde) para o povoamento da Amazônia colonial e o de Fabiano Vilaça dos Santos, que realiza uma leitura fina da trajetória do coronel Joaquim Tinoco Valente, na Capitania do Rio Negro.

Rafael Ruiz, parafraseando João Francisco Lisboa, lida com uma “questão abrasadora”: o lugar das populações nativas nos cenários jurídicos coloniais. Suas análises permitem aproximações com as leituras renovadas efetuadas por Mauro Cézar Coelho, a respeito da aplicação de uma das mais famosas legislações indigenistas coloniais: o Diretório dos Índios.

Os caminhos, sejam os trilhados por São Tomé, sejam aqueles por onde circulavam o ouro e as gentes nos sertões da América Portuguesa, estão presentes nas abordagens fecundas de Leda Oliveira e Anderson Fonseca. Por fim, a Canoa do Tempo inaugura, com os artigos de Otoni Mesquita e James Roberto, uma nova seção Explorando Arquivo com a finalidade de refletir sobre os espaços de trabalho de nosso ofício.

As organizadoras aproveitam a oportunidade para agradecer, penhoradamente, a todos os autores deste número que, aceitando o convite, garantiram a qualidade deste dossiê. Agradecem a Otoni Mesquita, pela arte da capa, e também a James Roberto Silva, pela revisão técnica final, e a todos os professores e alunos do Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais – POLIS/UFAM. Por fim, agradecem uma a outra não apenas por este, mas por inúmeros outros trabalhos realizados em conjunto e sempre construídos sobre uma relação de respeito e profunda amizade.

Marcia Eliane Alves de Souza e Mello – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas.

Patrícia Maria Melo Sampaio –  Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas.

Nota

1 RUSSELL-WOOD, A J. Prefácio in Fragoso, J., Bicalho, M. F e Gouvêa, M. F. (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 11.

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Justiça do Antigo Regime / Textos de História / 2003

Apresentação

Enquanto na Europa é crescente o interesse pela História do Direito, no Brasil esta vertente da produção histonográfica encontra-se ainda em fase rudimentar. Especialmente para o período moderno, no qual o Brasil se insere em seu momento colonial, as pesquisas são ainda escassas.

Embora seja digna de destaque a recente obra de Amo Wheling e Maria José Wheling — Direito e justiça no Brasil colonial —, 1 a questão do direito e da justiça neste período tem despertado pouco interesse entre os pesquisadores.

Quando abordada, a administração da justiça na colônia é pensada em geral fora dos referenciais da cultura política e jurídica do antigo regime português e tem sido interpretada como “irracional”, “caótica” e até mesmo “esquizofrênica”. Sem dúvida, assim poderia ser interpretada, se orientada, anacrônicamente, pelos parâmetros do direito moderno, marcado pela racionalismo e pelo papel central atribuído ao Estado, fenômeno para o qual as pesquisas de Antônio Manuel Hespanha sobre as práticas da justiça no Portugal moderno têm chamado a atenção2.

Até a segunda metade do século XVIII, no âmbito da cultura jurídica portuguesa, a lei era uma fonte de menor importância no campo de um direito cuja natureza era basicamente doutrinai. E, além de fenômeno minoritário, a lei era também um fenômeno subordinado. De um lado, o soberano era limitado pelo direito natural e divino, de outro, os juizes não eram obrigados a seguir aquilo que lhes parecia contrário ao direito doutrinai.

Por outro lado, a ordenação dos corpos políticos inferiores e os privilégios também impunham limitações à lei. Assim, a lei situava-se entre a doutrina do direito comum que a limitava por cima e um direito dos corpos políticos que a esvaziava por baixo3.

Embora no período pombalino tenha havido uma valorização da lei, interpretada como manifestação da vontade do monarca, as reformas realizadas no âmbito do direito parecem ter tido impacto reduzido. Permaneceram muitos obstáculos para uma eficácia ampliada da lei, como, por exemplo, o número insuficiente de funcionários administrativos para exercer controle sobre a sua aplicação, as deficiências de comunicações, a permanência de juizes iletrados na maior parte das câmaras municipais e o peso do direito costumeiro nas regiões do interior. Para completar, predominou em Portugal, até a revolução vintista do século XIX, a idéia de uma justiça cristã voltada prioritariamente para o bem comum que revestia o monarca do poder, não apenas de punir exemplarmente seus vassalos, como de agraciar e perdoar.

A idéia de bem comum, embora re-atualizada pela noção de progresso no final do século XVIII, estimulava a prática de uma justiça que priorizava a conciliação em situações de conflito.

Os textos reunidos neste dossiê tratam, sob ângulos diferentes, e em contextos também distintos, da questão da justiça no Antigo Regime, expressão que, embora originária do final do século XVIII e estreitamente associada à Revolução Francesa, é hoje de uso corrente na historiografia para designar os regimes políticos da Europa moderna. Com a preocupação de fugir ao anacronismo, os textos resgatam antigas maneiras de se conceber a justiça, que não apenas foram hegemônicas no passado como se prolongaram no período de transição para o Estado Liberal.

O artigo de Benoít Garnot trata da justiça no antigo regime francês e propõe a interpretação das relações justiça-sociedade a partir das práticas sociais e não apenas das normas jurídicas. O autor insere-se no grupo de autores que tem renovado a história da justiça e da criminalidade na França.

Os demais artigos abordam a questão da justiça no Brasil. Maria • Filomena Nascimento examina a questão da corrupção e do suborno no contexto de uma cultura jurídica que coexistia com as lógicas do privilégio e da hierarquia. Sua reflexão tem como suporte documentação relativa à capitania de Pernambuco dos meados do século XVIII.

Tereza Cristina Kirschner salienta a importância dos canais de comunicação entre vassalos e soberanos na Bahia do final do século XVIII e a associação presente no imaginário social entre a figura do soberano e a justiça.

Entre o rei e a lei interpunha-se a justiça cristã, o bem comum e a graça.

O artigo de Jean-Phüippe Challandes procura mostrar a permanência de antiga concepção da justiça, associada à moral e ao bem comum, no período de formação do Estado nacional brasileiro. Articulada ao Estado constitucional, a justiça assim concebida constituía a base de um dos projetos políticos para o Brasil na primeira metade do século XIX.

Notas

1 WHELING, Arno e JOSÉ, Maria. Direito e justiça no Brasil colonial. 0 Tribunal da Relação do Rio de janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

2 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade: História eprospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; As vésperas do heiiathã,. Instituições e poder político.

Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994; Panorama histórico da cultura juríàca européia. Lisboa: Europa- América, 1998 e Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra: Almedina, 2004.

3 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade. História e prospectiva. op.át.

Tereza Cristina Kirschner

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