La historiografía medieval. Entre la historia y la literatura | Jaume Aurell
Jaume Aurell, professor de teoria da história na Universidade de Navarra, na Espanha, é um dos grandes especialistas em história e historiografia medieval catalãs, tendo lugar destacado na historiografia espanhola. Sua área de pesquisa contempla a cultura mercantil, a autobiografia medieval e a historiografia contemporânea. Além de coordenar os volumes da obra Rewriting the Middle Ages in the Twentieth Century (2005 – 2009) e de participar como editor em Medieval and Early Modern Political Theology (2017), Aurell é autor de Els mercaders catalans al Quatre-Cents (1996), La escritura de la memoria, de los positivismos a los postmodernismos (2005), Authoring the Past. Historiography, Autobiography, and Politics in Medieval Catalonia (2012) e Medieval Self-Coronations: The History and Symbolism of a Ritual (2020).
O livro La historiografía medieval. Entre la historia y la literatura, publicado em 2016 em formato físico e e-book, ainda não possui tradução para a língua portuguesa. A obra é resultado da longa trajetória de Aurell como docente e pesquisador e das discussões com colegas do meio acadêmico. As conversas com a professora norte-americana Gabrielle Spiegel teriam constituído o primeiro despertar do autor para a historiografia medieval, algo que se intensificaria com o seu interesse pela historiografia contemporânea. Nesse sentido, esta obra pode ser lida tanto por medievalistas quanto por estudiosos de teoria da história, uma vez que o autor oferece uma visão ampla sobre a trajetória da escrita da história ocidental desde a Idade Média e nos convence que a historiografia medieval, rejeitada e depreciada pelo historicismo, pode estar mais próxima da historiografia atual do que pensamos: a narrativa, já utilizada pelos medievais, é a única forma que os historiadores têm para explicar e interpretar o passado. Para Aurell, essa consciência teórica e epistemológica acerca da escrita da história teria sido uma das consequências benéficas do giro linguístico. Apoiando-se em um intenso debate bibliográfico, diversificado e atualizado, ele desperta o interesse do leitor com sua tese.
Além da introdução, onde o autor apresenta os temas que serão abordados ao longo da obra, o livro é dividido em duas grandes partes com subseções: a primeira aborda os conteúdos e formas de alguns gêneros da historiografia medieval – genealogia, autobiografia e crônicas -, deixando de lado a hagiografia, a epistolografia e os anais, entre outros. A segunda parte expõe a proximidade entre historiografia medieval e contemporânea, ressaltando novas perspectivas teóricas, questões sobre referencialidade, o discurso histórico e seus gêneros e a relação entre história e literatura. La historiografía medieval é uma reunião de textos publicados previamente de maneira dispersa e, por isso, muitos dos argumentos e citações são constantemente retomados em ambas as partes. A recuperação das mesmas ideias ao longo do texto juntamente com uma escrita clara e honesta facilitam a compreensão e reflexão do leitor, mesmo quando se exige a elaboração de raciocínios mais complexos sobre teoria da história.
Aurell explora de forma ampla a documentação medieval e seleciona com acerto os exemplos para cada um dos gêneros historiográficos escolhidos: as Gesta Comitum Barchinonensium para as genealogias, o Libre deles fets del rey Jaime I para as autobiografias e a história de Bernat Desclot para a tipologia das crônicas. Para historiadores que não têm contato direto com a história da historiografia anterior ao século XIX, a primeira parte deste livro é muito enriquecedora. De forma suficientemente detalhada e reverberando o debate entre medievalistas contemporâneos, se evidencia como estes gêneros da historiografia medieval foram se modificando de acordo com as demandas de seu presente – aliás, o presentismo é um dos problemas mais recorrentes e, apesar de abordado desde o início do livro, terá uma seção exclusiva nos capítulos finais.
A genealogia era frequentemente utilizada em momentos de ascensão ao poder, tornando-se o meio privilegiado de estabelecer uma sucessão ordenada e rigorosa de importantes feitos, com forte carga política dos personagens mencionados na narrativa. Apresentava uma sucessão cronológica de monarcas e senhores importantes de modo sucinto, historiando as principais conquistas com um ritmo cadenciado e previsível, sendo geralmente escrito em latim e produzido em ambientes eclesiásticos. Esta listagem, que demandava a marcação do tempo conforme as dinastias é, para Aurell, a primeira secularização do tempo histórico. Os relatos genealógicos e as lendas de seus “heróis fundadores” tinham uma fixação pelas origens, independentemente se estas eram, ou não, verídicas. O passado remoto era mais fácil de reescrever, ficcionar, mitificar, uma vez que o passado recente requeria mais realismo. A estrutura formal da genealogia permitia que as linhagens e as monarquias nascentes criassem fortes laços com o passado, necessários para legitimar o princípio hereditário de sucessão e apelar para a autoridade da tradição e dos costumes – principais legitimadores na sociedade medieval.
A partir do momento em que as monarquias e linhagens confirmaram seu prestígio e solidez, por volta do século XIII, elas foram capazes de intensificar uma estratégia de justificar sua expansão política, militar e comercial, cujo relato era feito através de crônicas. Estas narravam os feitos militares mais importantes, com um ritmo muito mais expressivo e dramático, cheio de saltos cronológicos, reflexões e detalhes cotidianos, sendo escritas em língua vernácula e em ambientes laicos e cortesãos. Nas crônicas, a compilação de documentos deixa de ser o critério mais importante; a prosa vernácula, mais flexível que o latim, se adaptava melhor ao critério de referencialidade e aos relatos testemunhais de seus autores, possibilitando, inclusive, o desenvolvimento da autobiografia.
Segundo Aurell, Bernat Desclot foi um dos cronistas mais preocupados com a historicidade, podendo ser considerado não apenas um cronista medieval, mas um historiador “moderno”. Esta classificação se justificaria pelo fato de o autor medieval abordar três temas diferentes na mesma crônica, utilizando uma tipologia documental para cada um deles, mas mantendo o mesmo método narrativo – a prosa de chancelaria – para garantir coerência e unicidade à obra. Na primeira parte, em que se recriam as histórias míticas sobre os condes de Barcelona, são utilizadas lendas como fonte. A segunda seção se concentra no reinado de Jaime I, o Conquistador, e utilizam-se poemas épicos orais, contos populares e outras crônicas contemporâneas como fontes historiográficas. A última parte conta os feitos de Pedro, o Grande, nos finais do século XIII, a partir de uma combinação de memórias pessoais, tradição oral e documentos de chancelaria. Ao mesmo tempo que o cronista analisa os discursos das lendas – tal como um historiador “pós-moderno” -, ele as equipara epistemologicamente às suas fontes mais referenciais, a partir da segunda parte do texto – historiador “moderno”. Desclot combinou fatos históricos e imaginativos, sendo habilidoso para dar autoridade privilegiada a determinadas fontes e metodologias de acordo com as circunstâncias dos eventos que representava e encontrando a melhor informação para cada período que queria historiar. Sua intenção de selecionar ou de descontextualizar um fato e sua preocupação de dar uma forma narrativa à sua trama, preocupada com o presente, seriam elementos que contribuem para que sua crônica seja vista como uma obra historiográfica.
Com o exemplo de Desclot, Aurell nos atenta para o juízo simplista, difundido pela historiografia oitocentista, que concebe a imagem do historiador medieval como um mero compilador ou um estático observador da realidade, destituído de racionalidade. Contudo, se todo historiador tem que se relacionar com o passado e com acontecimentos da ficção e da realidade, as escolhas e as estratégias utilizadas para elaborar uma narração histórica na Idade Média possibilitam que os cronistas medievais sejam exemplos de experimentação deste método, assim como historiadores posteriores.
A preocupação com a forma narrativa ganhou peso após as proposições de Hayden White, no polêmico giro linguístico, na década de 1970. A crença de que os historiadores constroem um passado real foi posta em dúvida e forçou os pesquisadores a se aproximarem dos documentos como textos, deixando de considerá-los como fontes neutras e de procurarem a “verdade”. A influência do pós-estruturalismo de Foucault, do desconstrucionismo de Derrida, da hermenêutica de Paul Ricoeur e Michel de Certeau e do formalismo de Hayden White vieram alertar sobre a força mediadora da linguagem na representação do passado, enfatizando a impossibilidade do acesso direto aos acontecimentos e às pessoas do passado.
Jaume Aurell adota uma postura crítica ao expor os problemas e os efeitos positivos do impacto pós-moderno na disciplina histórica. Embora muitos historiadores revelem receio quanto à ameaça relativista, a corrente acabou resultando numa abertura da história para os campos da antropologia simbólica, da filologia e, sobretudo, da crítica literária. Houve ainda uma ampliação das fontes e uma valorização dos textos medievais, uma vez que se passou a aceitar a noção de que qualquer documento, antigo, medieval ou moderno, oferece uma aproximação ao passado através de discursos. Sem se preocupar em classificar a história como ciência – já que ela trata do ser humano -, e sem descartar todos os avanços da escola metódica, Aurell retoma Carlo Ginzburg para defender que é melhor adotar um critério científico pouco sólido que garanta resultados significativos do que adotar critérios científicos rígidos para gerar resultados insignificantes.1
Um dos grandes exemplos de inspiração pós-moderna apresentados é a corrente do New Medievalism, muito forte nos Estados Unidos e na Inglaterra e fruto das iniciativas de Paul Freedman e Gabrielle Spiegel. A perspectiva, cada vez mais influente dentro do medievalismo – com exceção da Espanha – recupera a narrativa e amplia os temas e documentos ainda utilizados de maneira residual sem desconsiderar as técnicas do “velho medievalismo”. Há um forte interesse pelos discursos e sua linguagem metafórica, identitária, simbólica e alegórica e por matérias relacionadas à alteridade, marginalidade, bruxaria, loucura, pobreza, sexualidade e minorias raciais. Estes historiadores encaram o texto medieval como artefato literário, como narração histórica e como intermediário entre o presente em que é produzido e o passado que evoca. Portanto, o texto passa a ser produto e agente da sociedade de seu tempo, oferecendo pistas do período a que se refere e do período em que foi articulado.
A influência em via de mão dupla entre texto e contexto é algo muito visível no que Aurell chama de presentismo – tendência que pode ocorrer não só nas fontes que os historiadores abordam, mas também na escrita destes. O medievalista se mostra otimista em relação ao uso que se pode fazer do passado e do presente: enquanto o historiador é um cidadão que deve usar a experiência intelectual do passado para pensar sobre problemas do presente, ele também precisa se manter atento ao presente, a fim lançar novas questões para a compreensão do passado. Apesar do presentismo ter sido mais evidente na escrita da história anterior ao século XIX, a História é uma disciplina das humanidades, o que faz com que historiadores, de qualquer época, não estejam imunes à inclinação de filtrar o passado pelo presente.
Se, para ele, a História não é uma ciência social, o historiador também não é um mero cientista transmissor de conhecimento entre o passado e o presente. Apesar da forma narrativa unir historiadores de épocas diferentes e autores da literatura, a tendência ao presentismo mostra que o historiador é um mediador ativo. Ele não é apenas autor; ele aplica uma metodologia sobre a documentação e segue o critério de referencialidade a uma realidade extratextual. Contudo, seu trabalho contém uma parte de autoria e de intencionalidade, uma vez que deve ser desenvolvido um estilo narrativo cuidadoso que transmita com qualidade o conhecimento produzido. Na defesa de que se conheçam as obras pós-modernas com maior profundidade – sem posturas defensivas acríticas -, Aurell retoma a proposta do giro ético de Hayden White para ressaltar a responsabilidade do historiador ao criar sua trama: o papel narrativo da historiografia não deve degenerar em invenção autoral. O que é essencial na história é o rigor criado “pela referencialidade, a paixão pela boa escrita e o apreço pelo debate respeitoso.”2 E ressalta: a única coisa não respeitável no ambiente da historiografia é a invenção deliberada de dados ou sua manipulação.
A narrativa, portanto, é a maneira mais eficaz da História difundir sua produção escrita e de se tornar acessível e compreensível, no presente. Essa forma de escrita necessita de elementos metahistóricos que acabam por diminuir as barreiras e os distanciamentos entre historiadores e autores, mas também entre historiadores pós-modernos e medievais. Para Aurell, a historiografia apresenta mais continuidades que rupturas. O interesse pós-moderno pelo irracional e emotivo cria uma conexão direta com os valores medievais, sendo a modernidade – racional e positivista – a verdadeira Idade Média da escrita da história. Historiografia medieval e historiografia pós-moderna, desse modo, se posicionam entre a História e a Literatura. A tese do livro, apresentada de maneira complexa e muito satisfatória, não tem uma seção de conclusão. Mas, se pode concluir, com uma das frases do autor que “a história se faz maior quando, sem perder a referencialidade, é capaz de negociar com o que é essencialmente humano: a narração das histórias.”3
Notas
1 AURELL, Jaume. La historiografía medieval. Entre la historia y la literatura. Valencia: Publicacions de la Universitat de València, 2016. Formato Kindle. Paginação irregular.
2 Ibidem, paginação irregular.
3 Ibidem, paginação irregular.
Resenhista
Scarlett Dantas de Sá Almeida – Programa de Pós-graduação em História Universidade de Brasília.
Referências desta Resenha
AURELL, Jaume. La historiografía medieval. Entre la historia y la literatura. Valencia: Publicacions de la Universitat de València, 2016. Formato Kindle. Resenha de: ALMEIDA, Scarlett Dantas de Sá. A historiografia medieval e a pós-moderna: uma aproximação. Signum- Revista da ABREM, v. 20, n. 1, p.205-211, 2019. Acessar publicação original [DR]