Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação | Brian Street

Tomando como base os conceitos e concepções acerca dos estudos sobre letramento e suas implicações para as práticas sociais dos sujeitos, estudos revelam que esse termo vem sofrendo ressignificações devido às mudanças sociais ocorridas nos últimos tempos, bem como às pesquisas realizadas em diversos campos que se dedicam ao estudo da escrita e seus impactos na sociedade. Tais ressignificações mostram, entre outros, que o papel da escola é ampliar o letramento dos alunos, para que estes possam desenvolver capacidades de leitura e escrita em diversos contextos sociais, com vistas à participação ativa na sociedade.

A produção de estudos e pesquisas no Brasil sobre letramento, desde a década de 90, é bastante vasta. Autoras de referência que pesquisam o tema, como Magda Soares, Roxane Rojo, Ângela Kleiman, têm como referencial também os trabalhos de Brian Street, o que mostra a importância da tradução desta obra para a nossa realidade. O livro Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação vem contribuir com a comunidade acadêmica brasileira, sendo mais um dos trabalhos de Street traduzidos para a língua portuguesa [1]. Escrito originalmente em inglês por Brian Street, e traduzido por Marcos Bagno em 2014, a obra propõe uma reflexão sobre o letramento como prática social e ressalta a natureza social e cultural da leitura e da escrita, considerando o caráter múltiplo das práticas letradas. Para isso, o livro se divide em cinco seções, estas subdividas em capítulos, nas quais o autor discute alguns conceitos e concepções sobre o letramento. Nas palavras de Clecio Bunzen, autor que escreve a apresentação,

o livro, publicado em inglês na década de 1990 e organizado originalmente em quatro seções, cinco na edição brasileira, propõe um leque de reflexões sobre o letramento que se tornam atuais no contexto político e educacional do Brasil, uma vez que vivemos o forte impacto das políticas públicas internacionais e nacionais de avaliação e compreensão leitora, da aquisição em larga escala de materiais didáticos impressos pelos governos federais, estaduais e municipais e no investimento público na formação continuada de professores alfabetizadores e de língua portuguesa. (STREET, 2014, p.10)

Brian Street é professor emérito do King’s College London e professor visitante da University of Pennsylvania; dedica-se a pesquisas sobre letramento nas vertentes teórica e aplicada. Street tem realizado pesquisas também no Brasil, com foco nas perspectivas etnográficas e acadêmica do letramento. O tradutor dessa obra, professor Marcos Bagno, é professor-adjunto do departamento de Línguas Estrangeiras da UnB, atuando na área de Tradução Francês/Português.

Na apresentação, Bunzen, professor do Departamento de Educação e Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo, apresenta um histórico das discussões sobre o ensino no Brasil e cita alguns pesquisadores que discutem as concepções do letramento e suas contribuições junto aos estudos de Street. Assim, os novos estudos do letramento (NLS) colaboram com as discussões e modelos apresentados no livro, confrontados posteriormente como modelo ideológico e autônomo. Em seguida, no prefácio é apresentado o objetivo do livro que, entre outros, busca desenvolver abordagens alternativas de letramento, além de trazer críticas a uma concepção de letramento divulgada em âmbito internacional. Além disso, toda a organização do livro é descrita de forma objetiva e clara.

A introdução sintetiza os conceitos abordados no decorrer do livro e introduz os estudos do letramento na vertente social. O autor afirma, neste tópico, que os estudos do letramento podem ser caracterizados como em fase de transição, pois as novas pesquisas estão afetando de maneira desigual as diferentes áreas de conhecimento. Ainda na introdução, Street apresenta o conceito de eventos e práticas de letramento e discorre sobre o modelo autônomo e ideológico, ressaltando críticas e reflexões a respeito do modelo autônomo; defende explicitamente o modelo ideológico, uma vez que acredita que o aprendizado da escrita se dá considerando as práticas concretas e sociais, ou seja, as práticas letradas são produto da cultura, da história e do discurso. Por fim, temos um panorama detalhado sobre os tópicos discutidos em cada seção.

A primeira seção, intitulada “Letramento, política e mudança social”, composta pelo capítulo um e dois, enfatiza o dualismo entre o modelo ideológico e autônomo, apresentando argumentos consistentes e exemplos reais, a fim de consolidar o letramento como resultado de práticas sociais de leitura e escrita, tal concepção é caracteriza o modelo ideológico. Distingue ainda o letramento colonial, trazido por forasteiros como parte de uma conquista e o letramento dominante, conduzido por membros da mesma sociedade, mas pertencente a diferentes classes, grupos étnicos e localidade. Nessa seção, são apresentados alguns conceitos e análise de dados de pesquisas fundamentais no campo de estudo sobre letramento, alguns deles já apresentados na obra de 1984, como os conceitos autônomo e ideológico.

Na seção seguinte, “A etnografia do letramento”, constituída pelos capítulos três e quatro, o autor expõe relatos etnográficos de práticas letradas sobre os usos locais de letramento no Irã na década de 70. Para isso, Street descreve de forma detalhada suas experiências e dificuldades enfrentadas com o trabalho, focando os usos do letramento e da antropologia no Irã governamental. Ele destaca, ainda, o procedimento clássico da antropologia do século XIX, conhecido como a abordagem “se eu fosse um cavalo”. O autor critica fortemente tal visão, de forma tão aprofundada, que ficamos convencidos de que é necessária nova abordagem; afirma, ainda, a necessidade de um quadro teórico metodológico para o estudo de oralidade e letramento em contextos sociais.

Em “O letramento na educação”, seção com quinto e sexto capítulos voltados para a abordagem educacional, Brian Street apresenta um estudo de caso de salas de aula, desenvolvido nas comunidades dos Estados Unidos, relacionado às discussões acerca do letramento cultural. Ao iniciar, o autor problematiza o tema com a seguinte questão: “se, como argumentamos, existem múltiplos letramentos, como foi que uma variedade particular veio a ser considerada como único letramento?” (STREET, 20014, p.121). Nesse sentido, ele desenvolve o tema com fundamentos sofisticados e apresenta o conceito de “pedagogização” do letramento, ou seja, o letramento associado apenas às noções educacionais. Ao contrário dessa concepção, Street argumenta, por meio de exemplos de pesquisas, que existem outros letramentos, além do dominante, que não estão relacionados à escolarização. Logo, ele defende o modelo ideológico, pois “aprender letramento” não é simplesmente adquirir conteúdo, mas aprender como um processo. Acredita que é dever do professor conceber o letramento como prática social, a fim de ampliar as capacidades comunicativas dos alunos. Essa seção propicia-nos muitas relações com a realidade educacional brasileira que, muitas vezes, tem privilegiado classificações gramaticais em detrimento das práticas de leitura e escrita situadas em contextos sociais de uso da língua (TRAVAGLIA, 1998; MARCUSCHI, 2008).

Na quarta seção, “Para um quadro teórico crítico”, composta pelos capítulos sete e oito, o autor retoma alguns conceitos discutidos nos capítulos anteriores e propõe aprofundada reflexão para o prosseguimento dos estudos, examinando criticamente algumas posturas teóricas, destacando as concepções de Walter Ong sobre os estudos do letramento. Street analisa o trabalho de Ong e sua influência sobre o letramento ao sustentar a grande divisão entre oralidade e letramento, que Street rejeeita fortemente. Para isso, analisa os argumentos de Ong sobre os estudos em letramento em três níveis: metodológicos, empírico e teórico, de forma a rebatê-los com mais fundamento. Para discutir e examinar alguns conceitos e teorias a favor do modelo ideológico de letramento, Brian Street apresenta os mitos do letramento, apoiado em argumentos sobre os usos e significados que as pessoas atribuem à leitura e escrita.

Por fim, na seção cinco “Relações entre políticas, teoria e pesquisa no campo do letramento”, composta pelo capítulo nove, o autor reafirma a perspectiva social do letramento, defendida ao longo de toda a obra, perspectiva essa que integra a política e as contribuições entre pesquisa e teoria. De forma eficaz, ele faz uma reflexão sobre os relatórios de políticas internacionais, destacando que tais políticas influenciam o currículo e a avalição na aprendizagem de línguas, entre eles o PISA e o relatório EFA. Street revela, ainda, a importância do letramento familiar no processo de “letrar como prática social”. Após os dados e as descobertas de tais pesquisas, Brian Street acredita que uma mudança na política pública de letramento é urgente, centrando-se no letramento ideológico como perspectiva essencial para a construção de novas teorias e práticas em contexto sociais diversos.

O livro Letramento sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação contribui sobremaneira para os estudos sobre letramento no Brasil, uma vez que traz uma abordagem crítica que corrobora o processo de compreensão do letramento como prática concreta e social. Ademais, apresenta e discute conceitos, teorias e resultados de pesquisas que podem sustentar a prática profissional de professores e pesquisadores na atualidade. Essa obra constitui uma excelente ferramenta de estudo e pesquisa antropológica sobre as práticas de letramento.

Nota

1. Cf. alguns dos artigos e entrevistas de Brian Street em português, 2007, 2009, 2010a, 2010b, 2012, 2013.

Referências

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 2. ed. Rio de Janeiro: Parábola: 2008.

STREET, B. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

_______. Perspectivas interculturais sobre o letramento. Revista Filologia e Linguística Portuguesa. São Paulo, v.8, 2006.

_______. Entrevista concedida aos professores Gilcinei Teodoro Carvalho e Marildes Marinho. (trad. Gilcinei Teodoro Carvalho). Revista Língua Escrita, n. 7, jul/dez de 2009.

_______. Os novos estudos sobre letramento: histórico e perspectivas. In: MARILDES, M. e CARVALHO, G. T. Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010a.

_______. Dimensões “escondidas” na escrita de artigos acadêmicos. Revista Perspectiva, Florianópolis, v.28, n. 2, 541-567, jul./dez. 2010b.

_______. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria e prática nos novos estudos de letramento. In: MAGALHÃES, I. (org). Discursos e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012

_______. Políticas e práticas de letramento na Inglaterra: uma perspectiva de letramentos sociais como base para uma comparação com o Brasil. Cadernos CEDES. v. 33, n. 89. Campinas. jan./abr. 2013.


Resenhista

Ariane Alhadas Cordeiro – Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduada em Letras pela UFJF. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

STREET, Brian V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2014. Resenha de: CORDEIRO, Ariane Alhadas. Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v.6, n. 1, p.115-120, jan./ jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

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