Literatura/História e Memória em Gabriel García Márquez | Michelle Márcia Cobra Torre

O Caribe Colombiano é um território mágico e singular, com múltiplas influências culturais e uma vasta produção artística. Na literatura, citando apenas alguns nomes, autores como Álvaro Cepeda Samudio, Roberto Burgos, Clinton Ramirez, Teobaldo Noriega expressam essa riqueza e diversidade. Nascido em Aracataca, pequeno povoado do Departamento de Magdalena, um ambiente rodeado por trens, telégrafos e fazendas bananeiras – sob a exploração da legendária United Fruit Company –, Gabriel García Márquez se tornou um escritor universal e consagrado, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1982.

O presente texto traz a resenha do livro da historiadora mineira Michelle Márcia Cobra Torre Literatura, História e Memória em Gabriel García Márquez, publicado pela Editora Appris (Curitiba, 2020) a partir de sua tese de doutoramento em Literatura na Universidade Federal de Minas Gerais (em 2018). A pesquisa da autora foi embasada em importantes periódicos e publicações de diferentes regiões da América ressaltando a relevância de García Márquez e da literatura na construção de um imaginário local, influenciado por correntes de interpretações da memória e da conjuntura latinoamericana.

No primeiro capítulo, Torre apresenta o cenário de discussão literária, escopo do desenvolvimento de sua produção acadêmica, tendo como propósito a articulação das relações entre Literatura, História e Memória, ressaltando as perspectivas da utilização da Literatura como fonte de pesquisa histórica, tendo como premissa o argumento de que os autores das obras literárias vivenciam um contexto histórico e carregam consigo os valores culturais pré-estabelecidos, e buscam criar seus personagens e suas narrativas amparados em aspectos técnicos, explorando as possibilidades de inserção do real – presente no mundo imaginado dos romances.

Para a “distinção” sobre como o debate entre o caráter funcional e histórico do texto analisado, a autora apresenta a questão da presença do real na perspectiva teórica de Wofgang Iser: “…a proposta de Iser é pensar a relação realidade e ficção não de forma oposta, mas como uma relação tríplice” (TORRE, 2020, p. 27), e essa relação envolve tanto o real quanto o ficcional e o imaginado.

A interpretação de Lucien Febvre, historiador francês da “Escola dos Annales” compreende a História e o método de pesquisa histórica como seleção dos fatos. Sendo assim, torna-se necessário, no conjunto de trabalho interpretativo (ou hermenêutico), por meio dos recortes temporal e espacial (ou espaço-temporal) no contexto de produção da análise e na organização da pesquisa histórica, levando-se em conta as fontes históricas de diferentes naturezas e o contexto de produção dessas fontes, bem como a participação de outras ciências no conjunto de análise e interpretação. Isto posto, e o reconhecimento dos diferentes contextos e cenários do fato histórico permite a metodologia de produção historiográfica dos fenômenos histórico-culturais em foco.

Torre sustentou que a relação entre Literatura e História, neste viés interpretativo, convém na superação do positivismo histórico. E assim, o esforço dos teóricos da “Escola do Annales” buscou outra forma de produzir ciência histórica, assim como expresso na vanguarda interpretativa de Marc Bloch e Lucien Febvre ao substituir a “histoire événementielle” (história de eventos) no paradigma positivista pela “história-problema”. Ao citar Jacques Le Goff, a autora entende a Nouvelle Histoire por meio da proposta de novos problemas, novos métodos e novos objetivos, e cita, ainda, o historiador brasileiro José Carlos Reis compreendendo que: “…a História-Problema não irá tratar de eventos, indivíduos e política (…), mas sim de estruturas, conjunturas, coletividades, sociedades, economias, conspirando-se a História como uma construção realizada pelo historiador” (TORRE, 2020, p. 30).

No segundo capítulo, intitulado “Cien Años de Soledad: Literatura, História e Diálogo Cultural”, Michelle Torre analisa a obra de Gabriel García Márquez em quatro seções, estabelecendo o diálogo entre os elementos que compõem o livro com os elementos históricos, literários e culturais, e as relações entre Literatura e História, suscitadas no esclarecimento dos caminhos entre o real e o ficcional. O capítulo apresenta uma vasta referência bibliográfica, entre críticos, teóricos e historiadores que ajudam a desvelar o processo de símbolos e simbologia e entre tempos e memórias presentes nesta obra. Na seção “Cien Años de Soledad e o ‘boom’ da narrativa latino-americana”, a autora articula o trajeto cultural do escopo de sua pesquisa com o contexto de desenvolvimento cultural da Colômbia, compreendendo o fenômeno do “boom” como elemento de influência latino-americana. Enfatiza que os romances produzidos no período ganham características de unidade, mostrando um novo sentido de internacionalização da Literatura, ao abordar diferentes ângulos sociais e econômicos ao assumir aspectos de tradição latina em suas narrativas e a busca por uma identidade.

No terceiro capítulo, Torre trabalha com o romance El General en su Labirinto com a perspectiva da História, Literatura e arquivo – vale dizer, forte teor de memória cultural. Iniciando a abordagem com uma análise histórica do personagem central Simon Bolívar, a autora destacou momentos históricos divergentes entre a Academia Colombiana de la História e o romance de García Márquez, obra que ressalta os conflitos que ocorrem pelas características humanas do personagem Bolívar de Márquez e que contradiz o contexto de construção heroica na trajetória do “Libertador” da América. A autora analisa a trajetória histórica da exaltação da memória de Bolívar por diferentes governos que utilizaram a imagem “endeusada” do “Libertador” para a construção de justificativas sociais e populares para a manutenção do poder.

Toda a trama perpassada neste terceiro capítulo está interligada ao diálogo de García Márquez com a historiografia biográfica de Bolívar. Vale dizer, com a interposição entre seções que tratam de elementos variantes de interpretação do romance e da trajetória do General Bolívar, seu tempo histórico, a trajetória de ascensão e queda do ‘Libertador’, os conflitos ideológicos e as propostas de unificação da América Latina, seus desgastes físico, social e político que o levaram ao exílio. Torre salienta: “…vale ressaltar que existem vários estudos sobre Simon Bolívar, que constroem diferentes imagens sobre o General, propiciando uma visão desmistificada do personagem” (TORRE, 2020, p. 127).

O quarto capítulo do livro de Michele Terra trata do romance El Otoño del Patriarca, obra de Máquez escrita num contexto de forte influência de outros autores latino-americanos que publicaram romances sobre ditadores, como o peruano Mario Vargas Llosa, o paraguaio Augusto Roa Bastos e o cubano Alejo Carpentier. A autora demonstra, com clareza e objetividade, as relações entre Literatura e História, identificando períodos e/ou tempos históricos que se entrelaçam com aspectos culturais, sociais e econômicos da América Latina, no entanto, lembrando que essa composição de narrativa não tem a intenção de tratar da História em si, mesmo que o livro El Otoño del Patriarca tenha sido escrito após vastas influências de leituras de Márquez.

Finalmente, no quinto capítulo, a autora define a intencionalidade da relação entre Literatura e História e esclarece o uso da memória como elemento constitutivo de análise das ações dos ditadores de García Márquez, onde o cenário latinoamericano permeia os sentidos culturais e da narrativa, disposto como destaque na caracterização dos ditadores.

Michelle Márcia Cobra Torre desenvolveu uma análise acurada que possibilita compreendermos a relação estabelecida entre Literatura e História compartilha da relação com os diferentes tempos – ora aproximando, ora distanciando os dois elementos – mas que deve ser observada de forma múltipla, direcionando para diferentes sentidos: “Dessa forma, a História como conhecimento é uma construção, uma representação dos múltiplos tempos vividos, que não pode ser tomada como o próprio tempo experimentado pelos homens” (TORRE, 2020, p. 204).

A memória é um importante elemento, contido na conjunção do tempo e na observação da relação de força dos dominadores sobre os vencidos, no qual podem envolver a produção literária numa conjuntura histórico-crítica das relações de poder, como instrumento de resistência das memórias silenciadas: “Ao se valerem da memória, História e Literatura abrem possibilidade para manutenção ou o esquecimento, bem como ajudam a forjar ou a transformar imaginários e identidades” (TORRE, 2020, p. 205).

Torre “não estudou os textos de García Márquez como reflexo da História da América” (TORRE, 2020, p. 207), mas fez a escolha pelo autor e seus romances, devido à composição técnica metodológica de construção literária, nos quais Cem anos de solidão, O general em seu labirinto e O outono do Patriarca apresentam e possibilitam importantes relações entre Literatura e História, possibilitando a compreensão dos elementos sociais, culturais, econômicos e, sobretudo, históricos que marcaram – e ainda marcam – a História da América Latina.


Referência

TORRE, Michelle Márcia Cobra. Literatura, História e Memória em Gabriel García Márquez. Curitiba: Appris, 2020.


Resenhistas

Thiago de Araújo Lira – Graduado em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), é mestrando em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal do Triângulo Mineiro (MPET/IFTM). E-mail: [email protected]  Lattes: http://lattes.cnpq.br/8254106351939923

Anderson C. Ferreira Brettas – Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pós-doutor em História da América Latina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pela Universidad del Magdalena, na Colômbia, é professor permanente do mestrado em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (MPET/IFTM) e do mestrado em Educação Profissional e Tecnológica em Rede Nacional (ProfEPT). E-mail: [email protected]  Lattes: http://lattes.cnpq.br/1123425845213618


Referências desta Resenha

TORRE, Michelle Márcia Cobra. Literatura, História e Memória em Gabriel García Márquez. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: LIRA, Thiago de Araújo; BRETTAS, Anderson C. Ferreira. História e memória na literatura colombiana de Gabriel García Márquez: uma análise da obra de Michele Márcia Cobra Torre. Literatura, História e Memória. Cascavel, v. 18, n. 32, p. 294-297, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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