Machado de Assis: por uma poética da emulação | João Cezar Castro Rocha

Em abril de 1878, em resenha ao recém-saído O Primo Basílio de Eça de Queirós, Machado de Assis – comentando o diálogo estabelecido pelo autor português com a tradição francesa, especialmente com Zola – afirma que se Eça “fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento” (CASTRO ROCHA, 2013, p.138). Ora, para quem bem conhece o vocabulário intelectual do século XIX brasileiro, associar a imitação da tradição francesa com talento pode soar com certa estranheza, haja vista o intenso esforço para a afirmação de uma produção cultural e literária dita própria e conseguir a denominada “independência de espírito” da nação. A resenha de Machado registra, porém, um importante influxo nessa linhagem interpretativa que irá marcar daí em diante a obra do autor, dando início à recuperação de uma interessante prática intelectual que se caracteriza, dentre outras formas, por uma maneira particular de lidar com a tradição e com a posição do homem brasileiro de letras naquele contexto.

A proposta de João Cezar de Castro Rocha, neste seu mais recente livro, trata justamente de investigar tal “virada machadiana”, guiada sob o princípio de uma “poética da emulação”, isto é, uma espécie de retomada do princípio clássico da aemulatio como uma técnica literária e um esforço deliberadamente anacrônico, especialmente em circunstâncias classificadas pelo autor como “não-hegemônicas” (categoria discutida mais adiante), de comprimir épocas históricas e se apropriar de seus autores e obras. Castro Rocha, desde a sua primeira obra intitulada Literatura e Cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira – decorrente de sua tese doutoral defendida em 1997 no Instituto de Letras da UERJ –, pode ser inserido em um movimento de revalorização da história intelectual brasileira, que vem ganhando força talvez nas últimas duas décadas. Menos que denunciar a submissão desse intelectual como propriamente um importador de discursos, bem como sobre o lugar das ideias nesse espaço consideradas sob o prisma dos desvios e de uma “arqueologia da ausência”, tal movimento procura compreender as propriedades constitutivas desse campo intelectual brasileiro por sua lógica própria de atuação, por seu potencial inventivo ou mesmo nas estratégias criadas para afirmar seus valores.

Partido em sete momentos, o livro, contudo, não guarda em seus capítulos grandes rupturas entre si, privilegiando uma narrativa fluida e interconectada. Uma leitura que opta por cruzar vários momentos da obra machadiana sem, porém, esquecer suas descontinuidades. Pelo contrário. Acentua-as, principalmente quando a obra de Machado passa a evidenciar ali a existência de um “autor-matriz”. Registra-se desde os princípios do jovem Machado – e sua agenda ainda preocupada com a afirmação da originalidade da literatura nacional – até o amadurecimento da poética da emulação em sua obra, passando também pela constituição do campo semântico próprio à emulação junto a seus conceitos-chave, tais como cópia, imitação, autoria, plágio, dentre outros. O grande alcance da reflexão de Castro Rocha traz temas caros não só à Literatura, mas à Filosofia e à História, de modo que optamos apenas por nos concentrar nas implicações teóricas de sua abordagem e sua contribuição para um maduro exercício de história intelectual.

Uma das primeiras lembranças que nos vem à mente é que em uma obra tão estudada como a de Machado de Assis, por quais caminhos incorrer sem cair numa tautologia e insistir em temas já extensamente trabalhados pela fortuna crítica do autor? A proposta de Castro Rocha neste sentido é de um retorno ao texto. Consciente da impossibilidade de desvelamento de uma verdade em si ou que esteja “encoberta”, a interpretação que o autor efetua nada mais é que uma tentativa de reconstrução parcial de elementos centrais do texto machadiano. A hipótese da presença da técnica da emulação em Machado não se caracterizaria então por algo apriorístico, mas como uma longa tentativa de imersão num contexto e de reconstrução de sentidos que lhe eram próprios. Ainda que talvez Roberto Schwarz (2000) tenha tateado tais questões, alguns elementos não estavam disponíveis ao seu momento como agora os tem Castro Rocha, aproveitando-se, obviamente, do acúmulo e enriquecimento dos estudos sobre Machado.

A perspectiva de uma “descrição densa”, tal qual Clifford Geertz (2008), adotada por Castro Rocha, possibilita – se não resolver – ao menos tornar mais palatável alguns dilemas clássicos da história intelectual como texto e contexto, forma e conteúdo etc., iluminando os instantes de interlocução entre tais instâncias. Valoriza-se tanto o gesto autoral em si quanto o contexto que estimula sentidos possíveis. Por tal motivo, escolhe tomar a obra machadiana como um sistema próprio, o “sistema Machado de Assis”, constituído de uma dinâmica interna com seus termos específicos, nos quais a emulação se transforma em fator decisivo. Decisivo até mesmo para transformar Machado no dito “autor-matriz”: um autor que aprende a lidar com os efeitos que a tradição o lega e simultaneamente lança novos efeitos e sentidos. Seus textos, por possuírem uma multiplicidade de possibilidades interpretativas, favorecem o surgimento de querelas hermenêuticas e metodológicas. Favorecem, sobretudo, o surgimento de novos horizontes de exploração. Machado, em última instância, lê e age profundamente sobre a tradição.

Com uma leitura ao mesmo tempo intensa e extensa da obra machadiana, o autor escolhe cruzar dois momentos que são divididos pela leitura de O Primo Basílio de Eça. A argúcia teórica de Castro Rocha, contudo, não o permite traçar uma divisão estanque e que pretende esgotar a obra. Seu objetivo, antes que um preciosismo cronológico de nomear estilos e épocas, é observar a lógica interna de uma obra, assinalando momentos significativamente distintos que possibilitam uma complexificação da mesma. É desse modo que o autor evidencia um Machado de Assis “esteticamente tradicional e moralmente conservador”, nas suas palavras. Um Machado que utilizava largamente critérios convencionais que o ajudavam numa inserção social e de sociabilidade intelectual com temáticas um tanto quanto já localizadas naquele contexto. Um Machado que, entre suas obras de maior destaque entre 1858 e 1878, insistia em máximas de caráter moralizante, em personagens que transitavam entre os polos da felicidade e da infelicidade, do amado e do não amado e de uma perfeição que coloca o sentido último do texto.

Em Contos Fluminenses (1870), é recorrente ver Machado explorando temas como o ciúme, o adultério e a vaidade, condenando expressamente as duas últimas. Fica também visível seu desconforto ao tratar de temas como as alusões diretas ao corpo e o erotismo. A década de 1870 vai evidenciando, entretanto, um Machado que, em boa medida, passa a desconfiar dos seus anteriores preceitos, já se permitindo até mesmo satirizar situações como aquelas geradas pelo ciúme. Aquele texto bem comportado e que exige pouco do leitor, que talvez tenha poucos desafios interpretativos, vai cedendo espaço a uma prosa efervescente em que é ele leitor uma espécie de termômetro dessas alterações. Este passa a encontrar, sem dúvida, um texto mais enigmático, difícil de ser reduzido às interpretações sugeridas pelo narrador (o capítulo Das negativas de Brás Cubas é um bom exemplo), de modo que a ironia de Machado leva-o a ter que imaginar alternativas, pois é marca desse outro Machado a impossibilidade conclusiva. Como insiste Castro Rocha, vê-se o naufrágio da ilusão de uma interpretação holística que seria revelada por uma “chave do escrito”. Há uma superação de certos índices normativos, sendo que temas antes condenados como a dissimulação, recebem agora um tratamento incontornável de uma máscara que usamos no dia a dia.

A leitura de O Primo Basílio não representou propriamente uma influência para Machado. Nem mesmo a relação de Eça se apropriando de Flaubert pode ser descrita dessa forma, como na recorrente esquematização de uma história das ideias que procura quem “bebeu” em quem. Está em jogo outra questão, que Castro Rocha prefere apontar como um tropeço de Machado em Eça. Ao tropeçar em Eça, como um elemento catalisador, Machado se viu diante de um novo universo semântico que o permitiu se tornar um agudo leitor da tradição literária e da sua literatura contemporânea.

Seguindo o princípio da emulação, que prefigura uma apropriação seguida da inserção de novos elementos, é possível avaliar a mudança no vocabulário machadiano em análises como aquela do dramaturgo Antonio José, O Judeu. Nesta, Machado insiste que Antonio José imitou e transplantou Moliére, imprimindo elementos próprios do escritor e da sua obra. Metaforicamente, Machado afirma que a obra do dramaturgo “é taça que pode haver lavores de igual escola, mas leva outro vinho”. A receita não era difícil e passava por um trabalho sobre a tradição sem, com isso, se esquecer das propriedades do seu tempo. Emular Molière, antes que um problema, era um necessário ponto de partida. Assevera ainda que: “pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica.” Caminho similar para Castro Rocha foi o de Eça que nas suas recriações de Flaubert foi capaz de criar novos diálogos e situações tão ou mais ricas que o autor de Madame Bovary.

Castro Rocha não pretende, com isso, apontar uma excepcionalidade histórica em Machado. O salto do autor de Dom Casmurro foi saber ativar essa que é uma potencialidade de culturas que se encontram em condições, a princípio, desfavoráveis no contexto das trocas simbólicas. O lugar central, por exemplo, da língua francesa no século XIX – como a língua utópica da cidade das letras – juntamente à sua capacidade de circulação, colocava ao espaço latino-americano e seus autores o pressuposto da mediação e da tradução como estratégias para limar o isolamento em seu idioma, seu meio e no tempo. Um desejo de atualização a todo custo, aquele representado pela circunstância latino-americana frente a Europa no século XIX. É neste sentido que Castro Rocha amplia seu escopo de análise e evidencia a presença do campo semântico da emulação em importantes autores das culturas por ele denominadas “não hegemônicas” como Domingo Sarmiento, Pedro Henriquez Ureña, Alejo Carpentier, entre outros, abrindo assim um importante lócus de investigação para os estudos culturais, literários e históricos. Especialmente para uma história intelectual “desessencializada”.

A crítica certamente cobrará do autor definições precisas sobre seu argumento do relativo “privilégio” das culturas “não-hegemônicas” em poder ativar o princípio da emulação com muito mais astúcia, justamente por ter à sua disposição um repertório de experiência e conhecimento que faltariam às culturas centrais por guardarem níveis menores de permeabilidade. Castro Rocha demonstra consciência dessa crítica. Não é seu interesse recuperar o debate um tanto quanto esgotado que marcou a cena intelectual brasileira nos anos 1970 sobre um suposto lugar das ideias (CARVALHO FRANCO, 1976; SCHWARZ, 2000). Entretanto, é enfático ao falar de condições objetivas que estabelecem polos como centro e periferia, haja vista a situação francesa e inglesa no século XIX. Seu interesse ao afirmar que há uma assimetria no contexto da emulação e das trocas simbólicas, mas que pode se tornar pressuposto de inventividade, não está propriamente uma essência periférica [1], não é uma questão de latitudes, mas de estratégia. É um campo de possibilidades a ser explorado, algo em potencial.

Talvez, um questionamento mais preciso a ser colocado para Castro Rocha é se ao insistir que a emulação se perfaz no ato de assenhorear-se da tradição – mas ao mesmo tempo ir além dela –, ainda não se está mantendo categorias como “fora” e “dentro”, “próprio” e “alheio” etc.? Ou seja, ainda seria necessário procurar o que de “próprio” um autor traz na sua obra. Buscar o outro vinho, ainda que em lavores de igual escola. Ainda que num nível menor, mantém-se o pressuposto da criação autoral romântica. O certo é que mesmo que Castro Rocha ofereça uma grande contribuição através da evidenciação da emulação em Machado – para o questionamento de fronteiras entre conceitos como criação, imitação, cópia etc –, talvez seja preciso apostar numa forte indeterminação entre o “eu” e o “outro”. Que torne uma tarefa difícil reconhecer, estavelmente, onde termina o legado da experiência e começa o novo.

Neste sentido, a proposta de uma copertinência entre texto e contexto, entre autoria e circunstância histórica, tal como argumenta Dominick LaCapra (1998), oferece um caminho para observar os instantes de interlocução entre os componentes documentários (histórico determinados) e aqueles do “ser-obra”, nas suas palavras. Ainda que de forma reduzida, é possível dizer que enquanto a dimensão histórica assinala diferenças, o “serobra” constitui uma diferença. Da historiografia que, até pouco tempo, concedia um privilegiado espaço à dimensão documentarista e ideológica, passa-se a compreender uma historia intelectual como uma “historia de textos”. Significa que agora o problema deixa de ser qual explicaria qual (texto/contexto), e sim se transforma sua interelação no próprio problema de investigação.

É considerável então a abordagem do autor ao analisar, no interior da aemulatio, que o verbo Augeo do latim possa ser entendido como “aumentar”. Se “Auctor” dá continuidade ao verbo Augeo, exclama Castro Rocha, todo “Auctor” é, no limite, um “aumentador” e não propriamente uma individualidade em si. No mesmo caminho está a etimologia de “cópia”, que no latim evoca uma pluralidade de sentidos: abundância, poder, riqueza, faculdade, licença, permissão. É o caso de Rubião que, em Quincas Borba, transita sem cerimônias entre as funções de leitor e autor, trazendo aos nossos olhos uma interessante simultaneidade entre leitura e escrita. Para mediar tal complexidade é que Castro Rocha se vale do conceito de “leitura-colagem” como um dispositivo textual que só pode ser determinado com um gesto próprio de determinação de sentido.

Em tempo, é possível ainda destacar que a emulação, antes da inauguração do tempo histórico moderno – se aqui tomarmos como princípio a teoria koselleckiana da modernidade como um momento qualitativamente distinto por comportar em si simultaneamente múltiplas temporalidades –, não se caracterizava exatamente por comprimir épocas distintas, como fizera Machado no século XIX. Nos casos citados por Castro Rocha, como aqueles em que Luciano de Samósata emula a autorictas da escrita da história no seu tempo – Heródoto e Tucídides – ou que Camões emula Virgílio, há um tempo até certo ponto contínuo entre emulador e emulado. É isso que tornava a emulação em um contexto anterior à modernidade não um anacronismo, mas uma prática de intensificação da tradição, tomada como um estímulo à invenção.[2]

A temporalidade, como traço fundamental da técnica empregada por Machado, é enfrentada na forma do anacronismo como base das ações humanas, ou seja, tomando o acúmulo de temporalidades como parte edificante de uma dita realidade que se acreditava única e individual. O que Castro Rocha denomina de “compressão dos tempos históricos” pode ser caracterizado como uma estratégia machadiana para enfrentar a efemeridade de um tempo histórico acelerado e carregado de rupturas como aquele moderno, sem, contudo, negá-lo. Prevalece a máxima baudelaireana de uma modernidade como um equilíbrio entre o atemporal e o efêmero, ou mais que isso, de um tempo histórico não fechado em si mesmo, mas formado por vários outros tempos históricos mais sedimentados e que deixaram suas marcas. A marca do passado que Machado faz questão de ativar para relembrar que nenhuma época é contemporânea a si mesma. Algo magistralmente elaborado na escrita do defunto-autor Brás Cubas, que visita com assiduidade esse território discursivo do passado. Uma visita decididamente anacrônica. A reconciliação com o passado no interior da poética da emulação aponta que este deixa de ser um fardo. A tradição deixa de ser um peso para se tornar um elemento constitutivo do Ser. Até mais que isso: um potencial para a ação.

Notas

1. Nas suas palavras: “Tal postura levaria inevitavelmente ao constrangedor elogio do atraso, como se ele assegurasse uma misteriosa vantagem epistemológica, inacessível aos artistas de países centrais. No caso do contexto não hegemônico, penso em gestos estratégicos e não em traços essenciais” (CASTRO ROCHA, 2013, p. 190).

2. Importante relembrar a distinção feita pela modernidade, que Castro Rocha prefere dizer mais especificamente ter sido instaurado pelo romantismo, entre inventio e creatio. Anteriormente, pressupunha-se uma compreensão mútua de ambas, na qual a primeira sugeria a invenção a partir da existência de elementos prévios e legados pela tradição, enquanto a segunda apostava numa criação mais autoral. Ambas compunham o universo clássico da aemulatio.

Referências

CARVALHO FRANCO, Maria S. de. As ideias estão no lugar. Cadernos de Debate, n. 1, 1976.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio e Janeiro: LTC, 2008.

LACAPRA, Dominick. Repensar la historia intelectual y leer textos. In: PALTI, Elias. Giro Linguístico e Historia Intelectual. Buenos Aires: Universidade Nacional de Quilmes, 1998.

SCHWARZ, Roberto. Ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Editora 34, 2000.


Resenhista

Mauro Franco – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura da PUC, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CASTRO ROCHA, João Cezar. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Resenha de: FRANCO, Mauro. Tradição, emulação e temporalidade no “sistema Machado de Assis”. Diálogos. Maringá, v. 17, n.3, p. 1267-1276, set./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

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