Nuestras Memorias: poéticas, políticas y feminismos | Grupo de Investigación y Lecturas Femistas

Teresa Valdes Imagem Radio Uchile
Teresa Valdés | Imagem: Radio Uchile

A través de esta compilación de conversatorios se va hilvanando una forma de entretejer la memoria que nos invita a conocer desde la polifonía propia de la epistemología feminista. Una lógica no lineal que entrama el pasado con el presente, urdiendo –conscientes o no– el futuro cercano. Desde el mayo feminista que se toma las calles y universidades al mismo tiempo en que se realizan estos conversatorios, hasta el estallido social que se asoma como vaticinio en el discurso de algunas de estas mujeres. El ejercicio se vuelve, entonces, un gesto de evidente contraposición a la tradicional voz autorial, lineal, jerárquica y monódica de las lógicas patriarcales que monopolizan los discursos oficiales desde los distintos espacios de poder que han ostentado tradicionalmente los hombres, entre los cuales la academia ha sido uno de sus predilectos.

La construcción de esa verdad única desde voces autorizadas (mayoritariamente hombres blancos, de clase alta y heterosexuales, aunque con varias excepciones en un país tan al margen del mundo como el nuestro), ha invisibilizado de forma sistemática procesos, hechos, debates, conflictos y personas, cuya participación e injerencia proviene tanto de círculos institucionales como marginales. Parte importante de esa historia no contada fue protagonizada por mujeres diversas que se dieron a la tarea de luchar por sus derechos y de enfrentar, incluso con más gallardía que sus compañeros, la dictadura cívico militar y su aparato represor. Leia Mais

Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental | Florence Dupont

Aristoteles Francesco Hayez
Aristóteles | Francesco Hayez, 1808

Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, traduzido no Brasil em 2017, pode provocar em seus leitores impressões muito distintas. Não se segue, neste comentário crítico, a sequência de argumentos e capítulos da obra em questão40, apenas uma análise mais particular de determinadas perspectivas ou, até mesmo, de posicionamentos que parecem estar na base da proposta do livro.

Um dos esforços mais longamente empreendidos por Dupont em Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental é o de revelar o quanto a Poética – principal alvo do estudo – não dá a atenção necessária a uma série de práticas que constituíam o acontecimento teatral na Atenas clássica. Como afirmado, desde a Introdução, “Aristóteles isolou o texto de teatro para fazer dele um objeto de análise” (p. 10), produzindo uma reflexão autônoma sobre “um texto objetivável” (p. 22). Esse isolamento faz com que a Poética ignore o papel da música na tragédia antiga; do coro, transformado “em um personagem como outro qualquer” (p. 17); do destinatário dos espetáculos, celebrante de um grande evento, o cidadão ateniense que, aliás, Aristóteles não era, como lembra Dupont. Criou-se, assim, um estatuto específico para os personagens, dentre outros efeitos decorrentes da análise centrada no texto trágico. Florence Dupont é enfática ao afirmar que “nunca se insistirá o bastante na distância que separa a Poética – que é uma teoria do texto trágico – da realidade histórica do teatro em Atenas” (p. 20). O rigor com que lê o texto aristotélico – em grego, como faz questão de ressaltar – e a erudição apresentada ao tratar da experiência teatral antiga, em seu “contexto litúrgico e epidítico” (p. 21), evidenciam o quanto de anacronismo há nas nossas leituras contemporâneas das tragédias gregas, centradas nas perspectivas do filósofo. Leia Mais

Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio

Ao detectar a carência de materiais educativos voltados para o estudo das línguas e culturas clássicas na academia brasileira, Paulo Sérgio de Vasconcellos e Matheus Trevizam resolveram coordenar, junto à Editora da Unicamp, uma coleção intitulada Bibliotheca Latina. O intuito é reunir 19 títulos, voltados para diferentes gêneros literários praticados na Antiguidade. Em 2014, Vasconcellos lançou um trabalho sobre poesia épica, no qual estudou as epopeias de Ênio e Virgílio. Trevizam, no mesmo ano, publicou um livro sobre poesia didática (Virgílio, Ovídio e Lucrécio) e outro sobre prosa técnica (Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela). No ano de 2016, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni escreveram sobre historiografia (Salústio, Tito Lívio e Tácito) e Leni Ribeiro Leite tratou da épica pós-virgiliana (Ovídio, Lucano e Estácio). Um texto sobre epigrama (Catulo e Marcial), de Robson Tadeu Cesila, saiu em 2017. Os outros 13 volumes ainda não foram publicados, mas os coordenadores anteciparam os gêneros que serão abordados: Elegia, Lírica, Comédia, Tragédia, Diálogo filosófico, Bucolismo, Romance, Epistolografia, Tratados gramaticais, Sátira, Fábula, Tratados de retórica e Eloquência. A presente resenha, como o título anuncia, tem por objeto o livro Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio. Sua autora, Leni Ribeiro Leite, é professora de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Espírito Santo. Leia Mais

L’automobile, la nostalgia e l’infinito. Su Fernando Pessoa – TABUCCHI (A-EN)

TABUCCHI, Antonio. L’automobile, la nostalgia e l’infinito. Su Fernando Pessoa. Traduzione di BETTINI, Clelia; PARLATO,Valentina, Palermo: Editora da Sellerio, 2015. Resenha de GUERINI, Andrea. A poética pessoana segundo Antonio Tabucchi. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.3, sept./dec., 2018.

L’automobile, la nostalgia e l’infinito. Su Fernando Pessoa é um livro que agrupa quatro ensaios sobre o autor português, preparados por Antonio Tabucchi como aulas para serem ministradas em francês, na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, em 1994, acrescido de um Prólogo, e uma parte final intitulada “Pessoa e os seus heterônimos”, que é uma breve apresentação dos heterônimos para indicar ao leitor “quem é quem” no interior da poética do poeta português (TABUCCHI, 2015, p. 103).

Conforme descrito por Tabucchi, essas aulas foram preparadas levando em conta e privilegiando, de um lado, aspectos da poética de Fernando Pessoa e a sua adesão às vanguardas do início do século XX (futurismo, cubismo, simultaneísmo de Delaunay) e de outro, a relação com o “Tempo, la Nostalgia, la ‘riappropriazione’ del Passato attraverso la scrittura (Proust, Bergson)” (TABUCCHI, 2015, p. 10).

Vale lembrar que Fernando Pessoa foi o autor português com o qual Tabucchi estabeleceu uma relação “che va al di là della semplice fedeltà del lettore”, um tipo de “relação ativa”, que é “proprio dei traduttori e dei critici” (TABUCCHI, 2015, p. 9). Portanto, esse intenso e estreito vínculo se deu pelas traduções que Tabucchi realizou para o italiano, sozinho ou em parceria com Maria José de Lancastre, das obras de Pessoa e pelos diversos ensaios que escreveu ao longo da sua vida sobre a personalidade e a poética do autor português.

Logo, não causa estranheza que este livro resgate essas aulas em um único volume, conservando o tom oral (como desejado pelo próprio autor) e a leveza de enfoque sobre temas profundos e complexos da poética pessoana.

Na primeira aula-ensaio, “La nostalgia del possibile e la finzione della verità su Pessoa”, Tabucchi trata da universalidade de Pessoa, que segundo ele reside apenas “nei contenuti della sua opera, nell’insieme delle categorie che costellano i suoi testi […], ma anche nel modo scelto per trasmettere questo messaggio, nella forma in cui è organizzato: in ciò che lui stesso ha definito eteronimia” (TABUCCHI, 2015, p. 19). A partir disso, o autor italiano busca elementos para explicar o que viria a ser a heteronímia pessoana. Para tanto, vale-se de um “grande fantasma”, o “Outro”, responsável por alimentar as obsessões dos maiores escritores europeus (TABUCCHI, 2015, p. 19), mas também da própria voz de Fernando Pessoa, a partir de “confissões” que aparecem, por exemplo, na célebre carta de 13 de janeiro de 1935, em resposta à entrevista do crítico Adolfo Casais Monteiro, nos seus diários, ou ainda nos seus poemas, como o célebre “Autopsicografia”.

O “Outro”, ou os heterônimos, não são, como destaca Tabucchi, “semplice alter-ego; […] sono altri-da-sé, personalità indipendenti e autonome che vivono al di fuori del loro autore” (TABUCCHI, 2015, p. 25). E aqui reside a potência da invenção pessoana, pois como mostra Tabucchi, Pessoa cria personagens, mas não são personagens normais que devem viver uma história, mas personagens que devem fingir aquela história: “sono creature creatrici, sono poeti: sono creature di finzione che a loro volta generano la finzione della letteratura” (TABUCCHI, 2015, p. 29). Ainda nessa aula-ensaio, Tabucchi analisa a presença da saudade nos três maiores heterônimos, pois, conforme destaca o autor, “Se la nostalgia del presente è una caratteristica di tutti gli eteronimi, ognuno di loro vive, naturalmente, anche la sua nostalgia specifica e individuale” (TABUCCHI, 2015, p. 31).

Na segunda aula-ensaio, “Gli oggetti di Álvaro de Campos”, Tabucchi apresenta uma lista de objetos caros a Fernando Pessoa para colocar em discussão o metafísico Álvaro de Campos e a ‘fisicidade’ banal dos simples objetos. Inicia a discussão com o monóculo, termina com a cadeira, passando pelo automóvel, o cigarro, a pasta, a Enciclopédia Britânica, os mapas, o espelho e outros. Todos são elementos/símbolos que serviram para caracterizar e vestir os personagens da “commedia umana” criados pelo escritor português (TABUCCHI, 2015, p. 46). São objetos de natureza estética, revestidos de uma forte densidade semântica, pois altamente significativos no contexto da escrita de Pessoa.

No terceiro ensaio-aula, “L’Infinito disforico di Bernardo Soares”, Tabucchi aborda o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, autor do Livro do desassossego. Tabucchi elucida o fato de Bernardo Soares se atormentar com coisas aparentemente ‘insignificantes’, mas que são profundas. Tabucchi lembra que, ao longo desse livro de Pessoa, Bernardo Soares se pergunta: “chi sono io?” Para responder a essa pergunta, Bernardo Soares escreve um diário e, como destaca Tabucchi, “Un diario è sempre uno specchio, e quindi ogni giorno Bernardo Soares si guarda nello specchio del suo diario” (TABUCCHI, 2015, p. 69), em grande parte escrito à noite, nascido sobretudo da insônia (TABUCCHI, 2015, p. 72) de seu autor, o que o leva à disforia, porque para Tabucchi o Livro do desassossego “racconta le sue (di Bernardo Soares) depressioni quotidiane e notturne” (TABUCCHI, 2015, p. 72). Nessa aula-ensaio, Tabucchi procura, sem ser exaustivo, explicar a razão de Fernando Pessoa ser um disfórico, e a palavra-chave para compreender esse estado de ânimo é saudade, que se associa ao desassossego (TABUCCHI, 2015, p. 75).

No quarto ensaio-aula, “Pessoa, i simbolisti e Leopardi”, Tabucchi confronta Pessoa com Leopardi, não apenas para “stabilire parallelismi […], ma soprattutto per investigare la natura del dialogo che un lettore onnivoro come Pessoa ha potuto intrattenere con Leopardi” (TABUCCHI, 2015, p. 78). Para falar dessa relação, Tabucchi percorre a fortuna crítica de Leopardi em Portugal entre os séculos XIX e XX, mas também na Espanha. Ele sugere que Fernando Pessoa chegou a Leopardi pelo viés negativo de Antero de Quental e António Feijó; pelo viés simbolista-decadente, cujos autores foram seduzidos pelo binômio leopardiano amor-morte; e também pelo viés trágico do escritor espanhol Miguel de Unamuno. Além disso, Tabucchi destaca que os três temas que mais interessaram Pessoa a propósito de Leopardi foram: “1) la riflessione sul mondo fisico, o il conflitto tra natura e ragione; 2) il senso dell’infinito; 3) il concetto di tedio” (TABUCCHI, 2015, p. 82). A partir dessa constatação, Tabucchi esmiúça alguns aspectos da obra de Pessoa que se ligam aos três elementos da poética leopardiana citados acima e que culminam no “Canto a Leopardi”, poesia que Fernando Pessoa parece ter escrito em “homenagem” a Leopardi, na qual, de acordo com Tabucchi, é possível extrair uma espécie de epistolografia virtual, que teria agradado muito a Borges, já que Pessoa, nesse poema, “si rivolge al suo corrispondente in maniera interrogativa […] come qualcuno che aspetta una risposta” (TABUCCHI, 2015, p. 100). E Borges poderia ter se encarregado, segundo Tabucchi, de dar as respostas que Pessoa esperava […] Borges e, quem sabe, algum outro escritor.

Ficaremos à espera dessa resposta, assim como o leitor de língua portuguesa ficará à espera de poder ler essas aulas-ensaios em tradução, já que Tabucchi, de maneira simples, mas ao mesmo tempo sofisticada, descreve aspectos da poética de Pessoa com cumplicidade e serenidade, características próprias de quem conseguiu manter uma “relação ativa” e profunda com um dos maiores escritores europeus do século XX.

Andrea Guerini – Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Pós-doutora pela Università degli Studi di Padova (Itália) e Universidade de Coimbra (Portugal). Atualmente, é professora Titular do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e editora-chefe das revistas Cadernos de TraduçãoAppunti Leopardiani e da ANPOLL. Atua na área de Letras, com ênfase nos Estudos da Tradução, Estudos Literários e Estudos Italianos. É bolsista de Produtividade em Pesquisa, do CNPq. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

 

Mikhail Bakhtin. Rhetoric, Poetics, Dialogics, Rhetoricality (D. Bialostosky)

BIALOSTOSKY, Don. Mikhail Bakhtin. Rhetoric, Poetics, Dialogics, Rhetoricality [Mikhail Bakhtin: retórica, poética, dialógica, retoricalidade]. Anderson, South Carolina: Parlor Press, 2016. 191 p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.

Inicio esta apresentação destacando e comentando o título da obra, Mikhail Bakhtin: retórica, poética, dialógica, retoricalidade. A enumeração, aposta ao nome do filósofo russo, claramente representa uma síntese feliz de duas trajetórias: a primeira, a do próprio autor – Don Bialostosky, cujo percurso intelectual se inicia com o interesse pelas disciplinas do trivium, especialmente a Retórica e a Poética, passando depois a relacioná-las à obra de Bakhtin; a segunda, a trajetória do próprio livro, que coloca em diálogo a obra bakhtiniana com esses outros campos de conhecimento e, por muitas vezes, propõe leituras bastante originais, chegando à “dialógica” e, depois, à “retoricalidade”. Implicitamente, e dando unidade aos textos, está o compromisso do autor com o ensino da produção textual escrita, aspecto que também se destaca ao longo de todos os artigos.

O nome de Don Bialostosky – segundo a contracapa da obra, professor na área de Redação, Letramento, Pedagogia e Retórica, além de Chefe do Departamento de Inglês da University of Pittsburgh, Pennsylvania2 -, chama a atenção dos brasileiros ou por seu interesse na obra do Círculo – no Posfácio da tradução de Para uma filosofia do ato responsável, Faraco cita seu diálogo (polêmico) com Morson e Emerson (BAKHTIN, M. São Carlos – SP: Pedro&João Ed., 2010, p.148); ou, principalmente, como é o meu caso, por seus trabalhos que relacionam a obra bakhtiniana à retórica.

Fruto de pesquisas profundas tanto dos clássicos como da obra do Círculo de Bakhtin, os ensaios aqui reunidos surgem dos diálogos que Bialostosky encetou durante sua carreira, com diferentes interlocutores. Na realidade, trata-se da reunião de trabalhos publicados desde 1986, de forma esparsa, por instituições acadêmicas como a Modern Languagem Association (PMLA), ou a Rhetoric Society of America, ou organizados em livro por acadêmicos, preferentemente americanos. E em todos eles vamos observar que o autor sempre está respondendo a alguma questão, ora refutando, ora confirmando, discordando, antecipando as respostas contrárias e objeções potenciais, procurando apoio, etc. Dá espaço aos interlocutores contemporâneos, porém vai apresentá-los sempre criticamente, assim como faz com aqueles parceiros mais constantes, Aristóteles e Bakhtin. Embora apenas no último artigo afirme que vai manter nele o registro da presença das vozes de seus ouvintes e os comentários dos colegas – em geral, os artigos surgiram de comunicações orais em congressos -, os diálogos e polêmicas inscritos em todos os textos são facilmente recuperáveis numa leitura atenta, mesmo se velados.

Já no Prefácio, Don Bialostosky conta de sua descoberta da obra de Mikhail Bakhtin, em 1984, e da primeira apresentação de um trabalho sobre as implicações da teoria bakhtiniana para o ensino da produção de uma voz autêntica nos textos de estudantes universitários, na convenção da Conference on College Composition and Communication (CCCC) [Conferência sobre Produção Textual Universitária e Comunicação]. Naturalmente, começa lembrando o fato de a retórica ser marginal na obra bakhtiniana, com referências quase hostis e reducionistas. Justamente por isso, uma das principais questões que busca responder ao longo dos artigos é sobre o porquê de Bakhtin, autor que não tem nada de bom a dizer sobre a retórica, ser obrigatório e produtivo para estudantes de retórica e produção textual hoje.

Na Introdução, apresenta-nos vários autores que procuraram compreender Mikhail Bakhtin e o Círculo, relacionando-os a uma crítica retórica, e aponta a inclusão de suas obras em publicações na área de comunicação, retórica e composição. Para aqueles interessados tanto na retórica quanto na teoria do discurso bakhtiniana, e ainda no ensino de língua/linguagens, a leitura deste início é indispensável, não apenas como uma necessária e rica contextualização do que vem a seguir, mas também como fonte de indicações bibliográficas na área.

O livro está dividido em duas partes, que correspondem aos dois momentos em que a obra do Círculo foi traduzida para o inglês. Assim, na primeira parte Dialógica, retórica, crítica [Dialogic, Rhetoric, Criticism], o diálogo do autor se dá principalmente com Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, M. M.), Marxismo e filosofia da linguagem (VOLOSHINOV, V. N.), O discurso na vida e o discurso na poesia (VOLOSHINOV, V. N.)3 e os textos que compõem a coletânea The Dialogic Imagination (BAKHTIN, M. M.)4, todos traduzidos antes de 1990. Conforme Bialostosky, neste momento, a “dialógica” é a questão mais importante para aqueles que trabalham com retórica e composição, e ele a define como a quarta arte do trivium já no primeiro artigo, Dialógica como uma arte do discurso (2) [Dialogics as an Art of Discourse]. Na construção de seu argumento, parte da oposição aristotélica entre retórica – arte do discurso centrada nas pessoas, e dialética – arte do discurso centrada em ideias/teses -para a compreensão do que considera a “arte bakhtiniana”, a dialógica – centrada na inseparabilidade entre ideias e pessoas, tal como Bakhtin coloca em Problemas da poética de Dostoiévski – a imagem de uma ideia é inseparável da imagem de uma pessoa, aquela que carrega a ideia. Se a dialética luta pela convicção numa questão e a retórica pela persuasão de uma audiência, a dialógica luta por uma responsividade compreensiva, e uma responsabilidade consequente entre pessoas-ideias de um tempo, uma cultura, uma comunidade, ou uma disciplina. A partir desses princípios, dialoga com outros autores, como Tzvetan Todorov, Merle Brown, Richard Rorty e Hans-Georg Gadamer, mostrando que os 25 séculos de história do trivium no Ocidente também deixaram marcas em suas ideias. No entanto, apenas a dialógica, segundo ele, permite o diálogo entre a retórica, a dialética e o discurso dos teóricos atuais, possibilitando a articulação das diferenças entre eles. Este capítulo proposicional é um dos mais importantes no livro, ainda que, na realidade, os outros o complementem, esclarecendo melhor as possibilidades dialógicas entrevistas por Bialostosky entre a obra bakhtiniana e as artes do trivium.

O capítulo seguinte (3), Booth, Bakhtin e a cultura da crítica [Booth, Bakhtin, and the Culture of Criticism], é dedicado ao exame da crítica retórica a partir da visão pluralista de crítica literária contemporânea de Wayne Booth. Orientador de tese de Bialostosky, autor de The rhetoric of fiction5, introdutor da tradução de Problemas da poética de Dostoiévski e aristotelista da Escola de Chicago, é a ele que esta obra é dedicada. Bialostosky faz a leitura da obra de Booth, afirmando que ele, ao tentar chegar a bons termos com o trabalho do Círculo, defende (impositivamente) um posicionamento em relação às outras possibilidades de crítica que mais o aproxima da retórica do que da dialogia. Em Retórica, crítica literária, teoria e Bakhtin (4) [Rhetoric, Literary Criticism, Theory, and Bakhtin], defendendo a possibilidade de uma crítica retórica para a leitura de trabalhos literários de todos os tempos, o capítulo se dedica inicialmente a tratar do debate entre o desconstrutivismo e a Escola de Chicago (aristotélica). A seguir, dialoga com a leitura que Jeanne Fahnestock6 faz das figuras de pensamento como elementos de interação contextual, ampliando-a bakhtinianamente.

O quinto capítulo (5) denomina-se Bakhtin e a crítica retórica [Bakhtin and Rhetorical Criticism]. Trata-se de um ensaio bastante interessante para aqueles que se surpreendem com a posição hostil de Bakhtin em relação à retórica, querendo compreendê-la. Sua origem é o debate dos trabalhos de Kay Halasek e Michael Bernard-Donals, numa convenção da Modern Language Association, em 1990. Em relação à primeira, que atribui a hostilidade de Bakhtin à sua recusa a um monologismo e dogmatismo “em defesa da autoridade opressora” (o regime soviético), propondo uma retórica dialógica, Bialostosky recorre a texto de Nina Perlina. Segundo essa última, Bakhtin se opõe, de fato, ao teórico retórico formalista seu contemporâneo, Victor Vinogradov, uma voz oficial da propaganda soviética, para quem a retórica é um jogo agonístico, cuja intenção principal é tornar sua oratória a única manifestação discursiva efetiva de autoridade (Com certeza, posição a conferir!). Quanto a Bernard-Donals, que almeja uma abordagem mais científica ao debate retórica, responde sobretudo com as oposições aristotélicas entre retórica, dialética e analítica, atribuindo ao interlocutor uma posição platônica. O final do ensaio deve despertar um interesse especial nos educadores, pois o autor retoma a exercitatio retórica e suas semelhanças com o processo bakhtiniano de apropriação de palavras (a palavra própria e as semi-alheias), propondo que “[U]uma pedagogia crítica e produtiva da poderosa articulação entre retórica e dialógica pode se desenvolver por meio do aprofundamento da história e da prática da exercitatio em combinação com reflexões ulteriores acerca da formação dialógica do sujeito”7.

Finalizando a primeira parte o capítulo 6, Antilógica, dialógica e psicologia sofística social [Antilogics, Dialogics, and Sophistic Social Psychology] articula a dialógica com o renascimento dos sofistas na recente teoria retórica, e examina trabalhos do sociólogo Michael Billig sobre a retórica de Protágoras. O autor começa, então, a reelaborar a polêmica definição de retórica já apresentada, diluindo-a num não institucionalizado processo discursivo – uma “retoricalidade”, na segunda parte do livro.

É em torno dos textos de Bakhtin com tom mais filosófico, traduzidos posteriormente para o inglês – a coletânea Art and Answerability8, em 1990, e Toward a Philosophy of Act9, em 1993 -, que Bialostosky reúne os ensaios da segunda parte, Arquitetônica, poética, retoricalidade, educação liberal [Architectonics, Poetics, Rhetoricality, Liberal Education]. Considera-os, de fato, igualmente importantes para os trabalhos com a linguagem e a literatura e continua a buscar neles contribuições para uma renovada compreensão das artes do trivium, refutando uma leitura de Para uma filosofia do ato (PFA) como basicamente um tratado de ética. Ao longo dos ensaios, o autor conduz o leitor à noção de “retoricalidade”, difundida por Bender e Wellbery10, que caracterizam os trabalhos de Bakhtin como “tratados virtuais sobre a natureza e funcionamento da retoricalidade”, uma “retórica generalizada que penetra os mais profundos níveis da experiência humana, … não limitada por nenhuma organização institucional, … não mais o título de uma doutrina e de uma prática… [mas] alguma coisa como a condição de nossa existência” (p.14; minha tradução)11. Bialostosky abraça essa perspectiva dinâmica, preferível a uma arte dialógica disciplinada, restritiva ou reguladora, segundo ele.

No capítulo 7, O rascunho grosseiro de Bakhtin [Bakhtin’s ‘Rough Draft’], os interlocutores preferenciais do autor são Gary S. Morson e Caryl Emerson, especialmente em Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics12; mas outros ainda que, como Helen Rothschild Ewald, defendem uma nova ênfase a questões éticas nesses primeiros trabalhos, praticamente invalidando quase uma década de apropriação da obra de Bakhtin nos estudos de composição, de modo predominantemente socioconstrutivista. Basicamente, Bialostosky não concorda com a leitura realizada por Morson e Emerson, que reduz a importância da linguagem e da sociedade na obra bakhtiniana, alegando que maior atenção deveria ser atribuída a “histórico”, como epíteto do ato responsável, assim como do enunciado concreto.

O capítulo 8, Arquitetônica, retórica e poética no primeiros estudos fenomenológicos e sociológicos do Círculo de Bakhtin [Architectonics, Rhetoric, and Poetics in the Bakhtin School’s Early Phenomenological and Sociological Texts] dá continuidade à argumentação anterior. E, junto aos dois seguintes, cap. 9 – A Retórica de Aristóteles e a teoria do discurso de Bakhtin [Aristotle’s Rhetoric and Bakhtin’s Discourse Theory] e cap.10 – Relendo o papel da retórica na Poética de Aristóteles à luz da teoria do discurso de Bakhtin: retórica como dianoia, poética como uma imitação da retórica [Rereading the Place of Rhetoric in Aristotle’s Poetics in Light of Bakhtin’s Discourse Theory: Rhetoric as Dianoia, Poetics as an Imitation of Rhetoric], são os ensaios que buscam mais detalhadamente compreender uma retórica bakhtiniana, concomitantemente a uma retórica e a uma poética clássicas a partir da teoria do discurso do Círculo. Nesses três capítulos, o autor nos leva a raciocinar em termos de categorias da retórica, da poética e da teoria do discurso bakhtiniana, abordando tanto os primeiros quanto os demais trabalhos de Bakhtin e membros do Círculo, e apontando o impacto que exercem na reconsideração de ambas as disciplinas clássicas. Indico a seguir apenas algumas questões levantadas por Bialostosky: a oposição de Bakhtin a um conhecimento sistematizado ou racionalizado em PFA aproximaria seu pensamento do modo de raciocínio retórico; a preocupação de seus textos com participação, avaliação, decisão e ação, e a questão do tom emotivo-volitivo, revelariam uma preocupação comum à retórica; o reconhecimento de que Bakhtin estrutura seu trabalho sobre a poética de Dostoiévsky a partir do fundo teórico da Poética de Aristóteles; ou ainda a observação de que, “em sua teoria do discurso, ele reabilita a mais abjeta parte da retórica aristotélica, a actio” – tratando do enunciado concreto, efetivamente realizado, “e subordina a mais importante – inventio, à dispositio, elocutio e actio13. A plena exposição do profundo raciocínio argumentativo do autor naturalmente não caberia em uma resenha…

Educação liberal, escrita e o indivíduo dialógico (11) [Liberal Education, Writing, and the Dialogic Self], o último artigo, é seu primeiro trabalho sobre Bakhtin e o ensino da escrita. Em parte um metatexto, na medida em que é um texto sobre a produção de textos, expondo o próprio trabalho de produção textual do autor, conta-nos das revisões e atualizações efetuadas no antigo manuscrito para inseri-lo nesta coletânea, das modificações requeridas ao mudar sua audiência, ou mesmo ao transformar a comunicação oral em escrita. Respondendo a teorias expressivistas e socioconstrutivistas, afirma que “ensinar a escrever de uma perspectiva dialógica é diferente de fazê-lo a partir de outras teorias sociais do discurso, em sua visão de pessoas ideologicamente situadas, envolvidas em lutas sobre o sentido das coisas e a propriedade das palavras” (p.152; minha tradução)14. Por meio de tal perspectiva, dá-se a descoberta da interação discursiva entre as disciplinas e suas diferentes linguagens, e a construção dialógico-discursiva do indivíduo, afirma. Enfim, segundo Bialostosky, a teoria bakhtiniana nos “alerta sobre as limitações em nossos modelos retóricos e, ao mesmo tempo, sugere modos de transcendê-las, ainda que sob o risco de perder a retórica, ou ao menos a retórica tal como a conhecemos”15 (p.13; minha tradução). Essa questão, a meu ver, o autor ousa enfrentar teórica e praticamente com sucesso e proveito, numa obra que mostra a coerência e a unidade do pensamento que desenvolveu ao longo de toda a carreira profissional.

Finalmente devo acrescentar que a obra apresenta uma lista de referências bastante útil para aprofundamento de qualquer um dos tópicos tratados, e um bem cuidado índice onomástico. Mas quero destacar ainda mais uma questão: a leitura da coletânea também oferece, com muita clareza, as condições concretas em que são produzidos os diferentes ensaios e, então, exotopicamente, observamos particularmente a grande importância do ensino da produção textual na universidade americana, ao lado da efervescência dos estudos retóricos, intimamente ligados às disciplinas de redação – composição de texto (acadêmico, poético ou ficcional) e crítica textual. Boa reflexão para nossas universidades…

2Currently he is Professor in the Composition, Literacy, Pedagogy, and Rhetoric track and Chair of the English Department at the University of Pittsburgh.

3VOLOSHINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Trans. L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar, 1973; Discourse in Life and Discourse in Art. In Freudianism: A Critical Sketch. Ed. Neil H. Bruss. Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press, 1987. Sem constar da tabela da p.vi, mas também citados: Os gêneros do discurso [The Problem of Speech Genres], que no inglês se encontra em BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Ed. Michael Holquist and Caryl Emerson. Trans. Vern W. McGee. Austin: University of Texas P, 1986; Apontamentos de 1970-1971 [Extracts from ‘Notes’ (1970-1971)], que se encontra em BAKHTIN, M. M. Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work. Ed. Gary Saul Morson. Chicago: University of Chicago Press, 1986; e Rabelais and His World. Trans. Helene Iswolsky. Cambridge, MA: MIT Press, 1968.

4BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination. Four Essays. Edited and translated by Michael Holquist and Caryl Emerson. Austin: University of Texas Press, 1982. No inglês, encontram-se na coletânea os seguintes ensaios: O discurso no romance [Discourse in the novel]; Da pré-história do discurso romanesco [From the Prehistory of Novelistic Discourse]; Epos e romance (Sobre a metodologia do estudo do romance) [Epic and Novel]; e Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) [Forms of Time and of the Chronotope in the Novel].

5The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.

6Rhetorical Figures in Science. New York: Oxford UP, 1999.

7No original: “A critically fruitful and pedagogically powerful articulation of rhetoric and dialogics might well grow out of further excavation of the history and practice of exercitatio in combination with further reflection on the dialogic formation of the subject” (p.72).

8BAKHTIN, M. M. Art and Answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes by Vadim Liapunov. No inglês, encontram-se nesta coletânea os seguintes ensaios: Arte e responsabilidade [Art and Answerability (1919)], O autor e a personagem na atividade estética [Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923)], Suplemento: O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária [Supplement: The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art (1924).

9BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov & Michael Holquist. Translation and notes by Vadim Liapunov. Texas: University of Texas Press, 1993.

10BENDER, J.; WELLBERY, D. E. The Ends of Rhetoric: History, Theory, Practice. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.

11No original: “virtual treatises on the nature and functioning of rhetoricality” (p. 37), a “generalized rhetoric that penetrates to the deepest levels of human experience, . . . bound to no specific set of institutions, . . . no longer the title of a doctrine and a practice . . . [but] something like the condition of our existence” (p.25).

12MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.

13No original: “In his theory of discourse, he rehabilitates the most abjected part of Aristotle’s rhetoric-delivery-and he subordinates Aristotle’s most important part-invention-to arrangement, style, and delivery” (p.122).

14No original: “A dialogic orientation to teaching writing differs from other social theories of discourse in its vision of ideologically situated persons involved in struggles over the meanings of things and the ownership of words” (p.152).

15No original: “His work alerts us to limitations in our rhetorical models and at the same time suggests ways to transcend them, even at the risk of losing rhetoric, or at least rhetoric as we know it” (p.13).

16Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, São Paulo, Brazil; [email protected]

17BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Translated into English by Caryl Emerson. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1984

18VOLOŠINOV, V. Marxism and the Philosophy of Language. Trans. L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar, 1973; Discourse in Life and Discourse in Art. In Freudianism: A Critical Sketch. Ed. Neil H. Bruss. Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press, 1987. And without being directly referred in the table on p.vi, he also cites: The Problem of Speech Genres, which is in BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays. Ed. Michael Holquist and Caryl Emerson. Trans. Vern W. McGee. Austin: University of Texas P, 1986; Extracts from ‘Notes’ (1970-1971), which is in BAKHTIN, M. Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work. Ed. Gary Saul Morson. Chicago: University of Chicago Press, 1986; and, Rabelais and His World. Trans. Helene Iswolsky. Cambridge, MA: MIT Press, 1968.

19BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination: Four Essays. Edited and translated by Michael Holquist and Caryl Emerson. Austin, TX: University of Texas Press, 1982. In this collection, we find the following essays: Discourse in the novel, From the Prehistory of Novelistic Discourse, Epic and Novel, and Forms of Time and of the Chronotope in the Novel.

20BOOTH, W. The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.

21FAHNESTOCK, J. Rhetorical Figures in Science. New York: Oxford UP, 1999.

22BAKHTIN, M. M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1990. In this collection, we find the following essays: Art and Answerability (1919), Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923), Supplement: The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art (1924).

23BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov & Michael Holquist. Translation and notes by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1993.

24MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Standford, CA: Stanford University Press, 1990.

Maria Helena Cruz PistoriPontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

Poética – ARISTÓTELES (RA)

ARISTÓTELES. Poética. Edição bilíngue. Tradução, Introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de: FRANCO, Irley Fernandes. Revista Archai, Brasília, n.18, p. 417-425, set., 2016.

Poética pertence ao grupo dos chamados escritos esotéricos, ou acroamáticos 1  (como eram nomeados pelos primeiros estudiosos de Aristóteles), isto é, escritos ou anotações “do que foi ouvido”ou lido 2. Mais do que isso, a Poética  é considerada, por seu caráter incompleto, fragmentário e muitas vezes desconexo, como o exemplo mais perfeito desse gênero aristotélico. Não só não foi escrita para ser publicada, tal os escritos “exotéricos”(ἐξωτερικών συγγράμματα) 3, os diálogos perdidos que o próprio estagirita teria publicado em vida, como é, dentre os “não publicados”, o mais condensado e enigmático. Ela é talvez parte daquele outro gênero, para o qual já havia apontado Cícero, em suas observações acerca dos escritos morais aristotélicos 4: o dos “Comentários”(hoje identificado aos acima citados “esotéricos ou acroamáticos”), gênero que abrange desde os tratados enciclopédicos com argumentação rigorosa e sofisticada, até as anotações mais descuidadas, como, aliás, parece ser aqui o caso. À palavra “comentários”equivale o termo grego ὑπομνήματα, ie, o conjunto de notas que servem para trazer à lembrança determinados temas, possivelmente já tratados (em aulas?) e certamente já publicados.

O próprio Aristóteles jamais usou a terminologia acima citada. na Poética,  ele se refere a “escritos publicados”(1454b18: ἐκδεδομένοι λόγοι) justificando o fato de não estar aí explicando os temas que estão sendo tratados, o que fortemente sugere que esta fosse a única classificação dada por ele à sua obra: “publicados”e “não publicados”. na passagem em questão, ele está certamente se referindo ao diálogo Dos poetas (Περὶ ποιητῶν), livro exotérico perdido, mencionado em catálogos antigos e do qual restam-nos apenas fragmentos. neste livro, o filósofo, conhecido e admirado, desde a Idade Média pelo rigor de seus argumentos, teria feito todas as articulações essenciais referentes à matéria esquematicamente apresentada na Poética.

A Poética, ademais, não chegou inteira aos nossos dias. Ela sobreviveu, como os demais escritos acroamáticos, mas, à diferença deles, nunca foi comentada ou revisada durante o período de grande atividade exegética, sobretudo no séc. II com Alexandre de Aphrodisias. Do séc. III ao V, a Poética  parece ser totalmente desconhecida. E, conforme o catálogo que nos foi transmitido por Diógenes Laércio (Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres  3 48), ela era composta de dois livros. Um segundo volume teria sido dedicado à comédia e disso sabemos através tanto da própria Poética, onde se lê, no capítulo VI (1449 b21) “da imitação em hexâmetros e da comédia trataremos depois”, quanto de outros tratados de Aristóteles, principalmente a Retórica, que, em dois lugares diferentes, — I, 11, 1372 a 1; III, 18, 1419 b5 —, refere-se ao “γελοῖος”(engraçado, risível) de que já tratara na Poética. a Política, quando menciona que o sentido de catarse será esclarecido ἐν τοἶς περὶ ποιητικῆς (“nos [livros] sobre a poesia”) e tal esclarecimento não aparece no livro I, também nos leva a supor a existência desse segundo livro.

Há ainda o problema peculiar da transmissão do texto da Poética, pois ela descende de quatro manuscritos autônomos: o Parisinus Graecus 1741 (sécs. X-XI), somente descoberto no séc. XVIII, o Ricardianus  46 (séc. XII), a versão latina (Moerbeke, 1278), e o Parisinus Árabe 2376 (c. séc. X) 5, o que agrava bastante a situação já fragmentária do texto acroamático, porque, com a passagem dos séculos, e à medida que os manuscritos foram sendo descobertos, o texto foi também se transformando, sofrendo intercalações, acréscimos, omissões etc. a tradução que ora se comenta usa o texto estabelecido por Rudolf Kassel, edição relativamente recente (1965) e amplamente adotada pelos especialistas em Aristóteles. a versão de Kassel tem a preferência dos scholars porque considera com muita atenção as quatro fontes acima citadas do texto aristotélico. De fato, somente Kassel conseguiu sintetizar de maneira satisfatória esses quatro manuscritos.

Sendo essa, então, a situação em que nos encontramos diante da Poética, considere-se o valor de uma tradução que, além de enfrentar as dificuldades naturais do grego antigo, — língua a que poucos têm acesso — tenha ainda como perspectiva dar a esse texto coerência e unidade. Pois foi essa a tarefa ciclópea a que se entregou Paulo Pinheiro. a fim de dar ao leitor condições de pensar a partir do texto original, pois é essa a finalidade de toda tradução, nosso tradutor não só foi à fonte grega como generosamente a ilustrou com fartas e elucidativas notas, única maneira de garantir que o mais “torturado”dos textos aristotélicos — como o qualificou Eudoro de Souza 6  — ganhasse corpo e clareza. Sem notas, permaneceria ininteligível a maior parte das teses apresentadas na Poética. Tampouco fariam sentido aqueles pontos que nos parecem intransponíveis se não os relacionamos com outras obras do corpus aristotelicum, principalmente com a Ética Nicomaqueia e com a Retórica.

Essa é, pois, a vantagem de termos um tradutor filósofo. E, de fato, em língua pátria, essa é a primeira tradução que tenta dar conta, através de notas explicativas, do vasto material conceitual trazido pela Poética. Termos como μίμεσις, μύθος, κάθαρσις, τύχη, πράξις, ἁρμαρτία etc., alguns hoje caros à teoria da literatura, e cujos sentidos têm sido exaustivamente investigados por estudiosos da Poética, são aí brevemente mencionados, como se fizessem parte de um vocabulário com o qual os leitores já devessem estar familiarizados. Da mesma forma, a maior parte das teses de Aristóteles sobre a poesia é aí lançada sem maiores explicações.

Assim, por exemplo, e em especial, a famosa teoria aristotélica da catarse, cujo sentido aqui somos obrigados a deduzir da definição desesperadoramente lacunar de tragédia, resumida por nosso filósofo em um único parágrafo (cap. VI). as poucas teses aí desenvolvidas, algumas de grande importância para a atual disciplina da Estética, como é o caso do problema da origem da tragédia e da comédia — tema que se tornou caro à filosofia desde O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, de Nietzsche — o são de modo extremamente econômico.

A edição em comento é bilíngue, mas a tradução é perifrástica; sacrifica a forma ao conteúdo. É natural que assim seja, uma vez que o texto parece ser, como já dissemos, um conjunto de anotações descuidadas e que têm por finalidade trazer à memória o que antes já foi ensinado e escrito. o texto é, sem exagero, além de curto (15 páginas, ou 30 colunas) 7, extremamente condensado e tem, no geral, uma estrutura gramatical bastante irregular, sendo seus conteúdos, os mais complexos, tratados inúmeras vezes através de “frases quebradas”. o grego “ao lado”permite-nos constatar a infinidade de anacolutos que nos obrigam a “interpretar”, em lugar de simplesmente “traduzir”.

Nem sempre concordamos com as escolhas do tradutor. algumas vezes, porque destoam de nossas próprias interpretações, tais como a de μύθος por “en- redo”, φόβος por “pavor”, ἁρμαρτία por “erro”, e assim por diante. Já em outros casos, porque consideramos que a escolha do tradutor não reflete todo o conteúdo semântico do termo de origem. Tal é, por exemplo, o caso da tradução de πάθος (1452b 10) por “comoção emocional”. Ora, “comoção emocional”é expressão fraca para significar a violência que se abate sobre o herói trágico e que se dá após o reconheci- mento (άναγνώρισις) e a reviravolta (περιπέτεια), momento tópico, clímax da tragédia complexa. Πάθος é o terceiro elemento da trama (μύθος) e é definido por aristóteles como “uma ação destrutiva ou dolorosa”(1452b 12: πάθος δέ ἐστι πρᾶξις φθαρτιὴ ἢ ὀδυνηρά). o uso da palavra “emocional”sugere uma situação estritamente psicológica, mais presente na mente do que na ação, como se o psicológico estivesse separado e distante da ação. De acordo com a passagem, entre- tanto, o πάθος trágico é uma ação e não uma “emoção”.

Poder-se-ia pensar, por essa razão, que se trata aí de uma tradução que obriga seus leitores a aceitar e seguir suas próprias opções sem lhes dar a possibilidade de reflexão. Mas não é esse o caso, pois nosso tradutor justifica e generosamente explica cada uma de suas escolhas, como o faz justamente em relação ao termo cuja tradução acabamos de criticar: πάθος. Em nota ao termo, Paulo Pinheiro cita diversas traduções já oferecidas na longa história dos estudos da Poética. assim, Eudoro de Souza, traduz por “catástrofe”, Magnien e Hardy, por “événement pathétique”, Dupont-Roc e Lallot por “effet violent”, Else, por “suffering”e, finalmente Halliwell mantém simplesmente “pathos”.

Como observação final, destacamos a importância, muitas vezes negligenciada, da Poética para o pensa- mento e cultura ocidentais. Tomando como exemplo as poesias épica e trágica, Aristóteles, diverge radical- mente de seu mestre Platão, e dá à poesia a dignidade de um domínio próprio, que não mais depende de propostas políticas ou de uma filosofia moral. Pode-se dizer que, pela primeira vez, a mimesis poética é pensada como tendo uma potência própria e que, desde aí, não parou de contar a sua história. os cânones aí introduzidos para a composição da boa tragédia acabaram se tornando paradigmáticos para os demais gêneros literários e, através deles, para outras formas de produção artística, fazendo da Poética  um dos livros mais poderosos e influentes da história da literatura ocidental.

Notas

1 ἀκροαματικά, do verbo ἀκροάομαι, “ouvir”, “escutar”, don- de ensinamentos orais.

2 Ao contrário de Platão, que parece desprezar a escrita (vide principalmente Fedro 275a-276a e Carta VII 341a-d), Aristóteles era um grande amante da leitura —Platão o apelidou de “o leitor”(άναγνώστης) na academia – e teria sido o inventor do que hoje chamamos de “biblioteca”. Segundo Estrabão (séc. I  a.C), ele « foi o primeiro a colecionar livros e teria ensinado os reis do Egito o modo como organizar uma biblioteca.” Sabemos, além disso, que ele possuía uma coleção particular de livros, a qual, mais tarde, colocou à disposição de seus alunos do Liceu.

3 A expressão aparece em vários autores da antiguidade, por ex., Clemente de Alexandria (c. 250 d.C.), aulo Gélio (séc. I  d.C.), Jâmblico (séc. III) e Cícero. Este último refere-se aos escritos “exotéricos”de Aristóteles de modo extremamente elogioso: “flumen orationis aureum fundens “(a cademici Libri 2 119), “dicendi incredibili quadam cum copia tum suavitate “(Topica 1, 3).

4 Cic. Fin. V 5, 12.

5 Em sua Introdução, Paulo Pinheiro comenta brevemente as questões relativas à tradição manuscrita do texto grego. Para uma abordagem ultra detalhada do tema, ver Yebra (1992). Ver também Else (1967) e Eudoro de Sousa (1966). 6 Em sua Introdução à Poética (1966).

7 Comparativamente, a Metafísica tem 114 páginas e a Ética Nicomaqueia 98 páginas. Cf. Whalley (1970, p.77-106).

Referências

ELSE, G. F. (1967). Aristotle Poetics (translated with an introduction and notes). Ann arbor, University of Michigan Press.

RACKHAM, H. H. (1931). Marcus Tullius Cicero. De Finibus Bonorum et Malorum, V 5, 12. Loeb Library. Cambridge, MA.

SOUSA, E. de (1996). Poética  de Aristóteles. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndice. Porto Alegre, Globo.

YEBRA, V. García (1992). ΑΡΙΣΤΟΤΕΛΟΥΣ ΠΕΡΙ ΠΟΙΗΤΙΚΗΣ. ARISTOTELIS ARS POETIKA. POÉTICA DE ARISTÓTELES. Edición trilíngue. Madrid, Editorial Gredos.

WHALLEY, G. (1970). On translating aristotle’s Poetics. University of Toronto Quarterly, vol.39, n.2, January, p.77-106.

Irley Fernandes Franco – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

 

 

Machado de Assis: por uma poética da emulação | João Cezar Castro Rocha

Em abril de 1878, em resenha ao recém-saído O Primo Basílio de Eça de Queirós, Machado de Assis – comentando o diálogo estabelecido pelo autor português com a tradição francesa, especialmente com Zola – afirma que se Eça “fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento” (CASTRO ROCHA, 2013, p.138). Ora, para quem bem conhece o vocabulário intelectual do século XIX brasileiro, associar a imitação da tradição francesa com talento pode soar com certa estranheza, haja vista o intenso esforço para a afirmação de uma produção cultural e literária dita própria e conseguir a denominada “independência de espírito” da nação. A resenha de Machado registra, porém, um importante influxo nessa linhagem interpretativa que irá marcar daí em diante a obra do autor, dando início à recuperação de uma interessante prática intelectual que se caracteriza, dentre outras formas, por uma maneira particular de lidar com a tradição e com a posição do homem brasileiro de letras naquele contexto. Leia Mais

Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura – AGAMBEN (A-EN)

AGAMBEN, Giorgio. Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura [Categorias Italianas. Estudos de poética e de literatura]. Bari: Editora de Laterza, 2010. Resenha de: GUERENI, Andréia; MULINACCI, Roberto. Um filósofo nos meandros da literatura: Agamben e as categorias italianas. Alea, Rio de Janeiro, v.12 n.2, jul./dec., 2010.

Giacomo Leopardi, em algumas passagens do seu Zibaldone di Pensieri (1817-1832), reflete sobre a relação entre o poeta e o filósofo. Em um trecho de 1821, o autor de “L’Infinito” afirma que “quem não tem ou nunca teve imaginação, sentimento, capacidade de entusiasmo, heroísmo, de ilusões vivas e grandes, de fortes e várias paixões, quem não conhece o imenso sistema do belo, quem não lê ou não ouve, ou nunca leu ou ouviu os poetas, não pode absolutamente ser um grande, verdadeiro e perfeito filósofo […]”.

Esse não parece ser o caso de Giorgio Agamben, que, no recém-publicado Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura [Categorias italianas. Estudos de poética e de literatura], demonstra possuir uma profunda afinidade com temas literários, ser um grande conhecedor de obras, escritores, críticos e ter sensibilidade para discutir sobre o “belo”. Aliás, em Nudità (2009) Agamben diz que “uma obra crítica ou filosófica, que não está em algum modo em relação essencial com a criação, está condenada a ficar no vazio, assim como uma obra de arte ou poesia, que não contém em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento”.

Foi com Italo Calvino e Claudio Rugafiori que Agamben, entre 1974 e 1976, pensou em um projeto de revista para a editora Einaudi. A única coisa acordada entre os três, como o próprio Agamben conta, é que uma das seções da revista deveria se dedicar ao esboço conceitual das assim chamadas “categorias italianas”, visando, portanto, a abranger, através de uma série de pares dicotômicos, as características fundamentais da tradição cultural italiana, em particular a literária. O projeto acabou não dando certo, mas Agamben, continuando fiel aos princípios teóricos que o tinham norteado, publica, em 1996, pela editora Marsilio, uma primeira versão de Categorie italiane, onde ele dá justamente forma, embora parcial e provisória (enquanto parte de uma tentativa de sistematização mais ampla, ainda por cumprir), à tensão dialética entre aquelas “estruturas categoriais” cuja definição, na realidade, transcende – apesar de os textos analisados serem quase todos italianos, com a única exceção dos sirventeses do provençal Arnaut Daniel – o seu específico e explícito âmbito de referência nacional. De qualquer maneira, como o livro estava esgotado há muito tempo, no início de 2010, felizmente, a editora Laterza colocou no mercado editorial italiano uma edição nova e atualizada, que, conforme declara o autor na “Avvertenza alla presente edizione” [Advertência à presente edição], é um livro “substancialmente novo”, devido ao “número e à importância dos textos acrescentados” (p. v), como, de resto, se pode verificar ao final do livro, na “Nota ai testi” [Nota aos textos], contendo as informações precisas de onde cada ensaio foi publicado ou apresentado, qual é inédito, qual não é. Além disso, na qualidade de uma autêntica mais-valia exegética, esta nova edição conta ainda com um belo posfácio, de sabor tipicamente agambeniano (“Profanare il dispositivo”/Profanar o dispositivo), assinado por Andrea Cortellessa, um dos mais brilhantes representantes da nouvelle vague da crítica italiana.

No entanto, na impossibilidade de dar conta, em conjunto, de uma coleção de ensaios tão instigante, talvez valha a pena destacarmos alguns deles, em que esse método analítico por meio de categorias antitéticas se revela hermeneuticamente mais produtivo, a partir, por exemplo, daquela oposição tragédia/comédia sobre a qual se constrói o primeiro “exercício de leitura” do volume, tendo como objeto nada menos que o maior clássico da literatura italiana: a Divina Comédia, de Dante Alighieri. De fato, no texto intitulado justamente “Comedia”, Agamben retoma a velha questão do título da obra, que foi bastante subestimada pela crítica e que, a seu ver, ainda hoje mereceria estudos mais aprofundados, pois Dante, com toda a sua erudição, não teria decerto escolhido este nome, que indica um gênero literário específico, sem algum critério bem fundamentado. É nesse sentido que o autor de O que é contemporâneo? se debruça sobre o “problema” da aparente contraditoriedade de uma titulação cômica para um projeto poético que, na esteira de outras obras dantescas, parecia nascer sob o signo do trágico (pense-se, por exemplo, no De Vulgari Eloquentia) e cuja explicação não pode se contentar, então, com o lugar-comum crítico da oposição entre tragédia e comédia do ponto de vista da matéria, isto é, da diferente articulação interna do conteúdo, distinguindo entre o início “próspero” e o fim “horrível” (típico da tragédia) e seu contrário (o início horrível e o fim próspero, tão característico da comédia). Com efeito, essas categorias de trágico e cômico, que o próprio Dante, na sua célebre carta a Cangrande della Scala, tinha contribuído a cristalizar em uma oposição conteudística condizente essencialmente com os ditames das poéticas medievais, se rede-finem agora não só no quadro temático da inocência e da culpa, vistas da perspectiva do subiectum (para o qual tragédia e comédia não passam de modalidades literárias de seu percurso de condenação ou salvação individual), mas também no contexto de outro dualismo irredutível, aquele entre natureza pessoa, ou seja, cindindo a culpa natural da culpa pessoal e transformando, assim, o conflito trágico entre inocência pessoal e culpa natural na “conciliação cômica da inocência natural e da culpa pessoal”. Considerado por esse ângulo, o título da Divina Commedia – no centro da qual está a justificativa do culpado ao invés da punição trágica do justo – não se limita a ser “perfeitamente coerente”, como se torna também revelador da íntima tendência anti-trágica da cultura italiana que Dante vai passar para a posteridade.

Mas se o diálogo de Dante com a poesia provençal constitui o imediato elo de ligação unindo “Comedia” ao texto sucessivo, “Corn: dall’anatomia alla poetica” [“Corn: da anatomia à poética”], no qual Agamben relê alegoricamente o debate diacrônico em torno daquela controversa palavra epônima (corn) usada pelo trovador Arnaut Daniel – que, diferentemente da sua interpretação literal, se torna, antes, o equivalente semântico de rima não encadeada (convertendo, dessa forma, o suposto tema obsceno do sirventês num problema métrico) –, é sobretudo esse curto-circuito vertiginoso entre filologia e filosofia que marca uma das principais linhas de continuidade ao longo dos textos. Basta ver, por exemplo, os dois ensaios logo a seguir, “Il sogno della lingua” [O sonho da língua] e “Pascoli e il pensiero della voce” [“Pascoli e o pensamento da voz”], onde o eixo filológico da dicotomia entre língua viva e língua morta acaba sendo ressemantizado no horizonte filosófico de uma experiência de linguagem que se situa para além das línguas, naquele não lugar entre o que foi (língua morta/voz) e o que ainda não é (língua viva/significado), delimitando assim uma dimensão negativa aberta tanto para o ser quanto para o abismo da nada. Não é por acaso que, no primeiro elemento desse díptico ensaístico, vale dizer em “Il sogno della lingua”, ao tratar de um incunábulo impresso em Veneza em 1499, Hypnerotomachia Poliphili, e do estranhamento que o leitor tem ao ler tal obra, pois não sabe em qual língua está lendo (“se em latim ou em vulgar ou em um terceiro idioma”, p. 46), Agamben fala de “um unicum monstruoso” decorrente da fago-citação lexical do latim por parte da estrutura frásica do italiano, embora essa contaminação linguística encontre seu pleno sentido só na reflexão metalinguística que ela contém acerca do bilinguismo (não apenas quatrocentista) enquanto condição inerente à qualquer palavra humana (daí o sonho, justamente, com uma “língua desconhecida e novíssima” que está por detrás da história de Polia e Polifilo e no qual o leitor vai ouvir ressoar a lição benjaminiana da “reine Sprache”…).

Sempre a relação entre língua morta e língua viva continua sendo o âmago da questão em “Pascoli e il pensiero della voce”, conquanto, desta vez, a língua morta não seja mais o latim como a língua da poesia em geral, na qual cabem também aquelas célebres glossolalias e onomatopeias tão ao gosto do lírico decadente italiano. Só que estas, longe de serem a expressão de uma linguagem pré-gramatical – conforme a classificação do crítico italiano Contini – representam, pelo contrário, a gramaticalização daquela voz da natureza, cuja morte está inscrita mesmo nas letras das palavras, como uma intenção de significado a se realizar, porém, unicamente na linguagem articulada. Contudo, retomando algumas observações que estavam já presentes no seu ensaio de 1982, Il linguaggio e la morte [A linguagem e a morte], Agamben não identifica aqui a Voz com a mera phoné, mas sim com aquela vontade de significação permitindo a passagem para o logos, de modo que a letra dos poemas pascolianos se torna afinal, na leitura dele, uma experiência de morte: morte da voz que, ao se inscrever nos signos linguísticos, morre como puro som (onomatopeia) e morte da língua que, ao se reduzir a som, marca a sua saída da dimensão semântica (glossolalia). Mas se, “a poesia é experiência da letra” – conclui o filósofo – pode existir uma experiência da palavra (como também da poesia e do pensamento) que vai para além da letra?

A esta pergunta, Agamben responde indiretamente em “Il dettato della poesia” [O ditado da poesia], onde aborda a relação entre vida e poesia, ou melhor, aquela oposição biografia/fábula, a qual pressupõe, justamente, a relação mais problemática entre vida e palavra. Nessa análise, o autor passa pela tradição teológica, pela literatura dos séculos XIII e XIV até chegar ao século XX, com a poesia de Antonio Delfini, que tenta recompor aquela fractura entre realidade e literatura, antes que ela, mutatis mutandis, se proponha de novo, na poesia de Caproni (“Disappropriata maniera” [Maneira desapropriada]) sob a forma da divaricação entre estilo e maneira. A mesma lógica de análise se dá no capítulo 7, no qual Agamben fala da poesia de Andrea Zanzotto e da sua peculiar e indissolúvel reflexão sobre língua e prática poética. Já em “Il torso orfico della poesia” [Anatomia órfica da poesia], temos a discussão sobre o caráter elegíaco da poesia, principalmente a do século XX. Segundo ele, esta pode ser definida através da contaminação entre hino e elegia. No último texto do livro, intitulado “La fine del poema” [O final do poema], Agamben trata, como o título do capítulo sugere, do final do poema, pois os estudos sobre o assunto são praticamente inexistentes. Aqui, o filósofo, na tentativa de elaborar uma teoria própria, fala da relação entre poesia e verso, rima e metro, som e sentido, a ponto de afirmar que “se o verso se define através da possibilidade do enjambement, disso segue que o último verso da poesia não é um verso” (p. 141). O resultado disso será “uma verdadeira e própria crise de vers, em que está em jogo a sua própria consistência” (p. 141).

Esse grande interesse de Agamben pela poesia em seus mais variados aspectos vai, guardadas as devidas proporções, na mesma direção proposta por Leopardi, pois a poesia e a filosofia estão no mesmo nível, andam lado a lado e são, nas palavras de Leopardi “o ápice do humano espírito[…]”.

Embora os capítulos 8, 10 e 11 não tratem de poesia, discutem temas afins e que podem se relacionar aos assuntos mostrados acima. No capítulo 8 entra em cena a relação entre literatura e política, através da análise do léxico (teológico/político) do escritor Giorgio Manganelli. No capítulo 10, Agamben discute a paródia, através da análise de textos não tão clássicos como L’isola di Arturo (A ilha de Arturo. Tradução e apresentação de Loredana de Stauber Caprara. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2005.), de Elsa Morante, em que o gênero paródia é o protagonista do livro. Por fim, no capítulo 11 o autor trata da relação entre literatura e filosofia, especialmente da presença de Spinoza em textos de Elsa Morante.

Uma das características recorrentes dos ensaios do livro é a forma “adorniana” de coordenação dos elementos com que Agamben constrói os seus escritos, que aqui podem ser lidos autonomamente. Também o conjunto de textos parece formar um pequeno “sistema” das categorias literárias italianas, que serão úteis para refletir sobre a literatura italiana, mas também sobre outras literaturas, porque Agamben utiliza a forma comparada de análise. Aliás, o ex-professor de filosofia da Universidade de Veneza sabe que a literatura pode ser vista como um eterno “corso-ricorso” viconiano, simplesmente porque “qualquer coisa acaba para sempre e qualquer coisa começa, e aquilo que começa, começa apenas naquilo que acaba” (p. 95).

Esperemos que essa obra de Agamben, autor muito traduzido entre nós, ganhe em breve uma edição brasileira. Como costuma ocorrer com os textos dele, Categorie Italiane agradará tanto os estudiosos de literatura, quanto os que não estão satisfeitos com o especialismo por vezes um pouco asfíxico da crítica literária e gostam de novos horizontes epistemológicos, conscientes de que – como dizia Barthes – “passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é desejar não mais a obra, mas sua própria linguagem”.

Andréia Guerini – Universidade Federal de Santa Catarina

Roberto Mulinacci – Università degli Studi di Bologna

Acessar publicação original

[IF]