Marx, Espinosa e Darwin: pensadores da imanência | Maurício Vieira Martins

Ser imortal é insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte … Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século mostra que somente creem nele, uma vez que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou castigá-lo ( Borges, 2008 , p.19).

Pela parte do fogo 1 é que se reconhece um filósofo. Se o pensador tem a coragem para se entreter exclusivamente com a busca de causas que devem ser procuradas nesse mundo físico e material e na atividade humana; ou se apela, ou se submete, a causas transcendentais, religiosas, produtos de Deus ou de deuses. Marx, Espinosa, Darwin: pensadores da imanência , primeiro livro do sociólogo e filósofo Maurício Vieira Martins, demonstra que o conceito de imanência é central ao filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677), ao sociólogo (ou economista) alemão Karl Marx (1818-1883) e ao naturalista (evolucionista) inglês Charles Darwin (1809-1882). E que esse conceito, mobilizado nas obras desses pensadores, permite que a filosofia e a ciência contribuam na luta contra a ignorância, o conservadorismo e o obscurantismo, que levam à violência, física e mental. Desde o prefácio, Martins (2017 , p.9) nos alerta para o “crescimento exponencial de movimentos religiosos pelo planeta afora”. O livro não é um libelo contra as religiões, mas desenvolve um argumento que nos leva a considerar crises atuais de uma perspectiva mais progressista e política.

O livro é dividido em três partes, e pode-se dizer que a primeira parte é mais focada em Espinosa, a segunda, em Marx, e a terceira, em Darwin. Ponto filosófico central, da minha perspectiva, é a proposição de Espinosa – temporalmente bem distante dos outros dois pensadores, que publicaram suas obras fundamentais na segunda metade do século XIX – Deus sive Natura . Deus e a natureza são uma e a mesma coisa. Para Espinosa, assinala Martins, Deus deve ser reconhecido como “causa imanente, aquela onde os efeitos não podem ser destacados da causa que os produziu” (p.11), “indicando a recondução da causa de si à sua dimensão terrena” (p.27). Nas palavras de Martins, o Deus a que Espinosa “se refere é na verdade uma causa de si, não antropomórfica, que em nada se assemelha ao Deus da teologia judaico-cristã” (p.10). Isso angariou profundas antipatias religiosas para o filósofo holandês. Para Espinosa, a busca de explicações dos fenômenos naturais e humanos deve se dar não pela investigação de causas finais encontradas em um mundo transcendente, mas pesquisa de causas imanentes, procuradas no mundo material. Espinosa busca, nesse âmbito, “não cindir o homem de seu pertencimento substancial” (p.67).

Martins assinala que embora Espinosa reconheça certa singularidade humana frente a outras espécies de animais, ele não conseguiu atentar – capturado pelos valores e códigos de sua própria época – para algo que duzentos anos depois Marx nos mostrou de forma categórica: a emergência, na espécie humana, de uma segunda natureza. Martins mostra que sem violar as leis básicas da matéria, incluindo, claro, a segunda lei da termodinâmica e a seleção natural, essa segunda natureza humana emergiu pelo fato de que todos os indivíduos da espécie humana, sem distinção de raça, gênero ou classe, serem identicamente dotados de um cérebro que pela intermediação da palavra falada e da escrita os inserem em um mundo mental, e até certo ponto subjetivo, da linguagem e do trabalho. E o mundo material, antes natural, sofre com a evolução dessa segunda natureza, uma gigantesca transformação histórica que hoje enche nossas vidas com produtos comerciais, serviços, commodities . Martins investiga o conceito de subjetividade em Marx, para quem os homens em sociedade pensam e trabalham com vistas a fins (p.125), o que confere uma subjetividade inaudita aos integrantes da nossa espécie. A possibilidade de emancipação e evolução dessa subjetividade, enriquecida sobremaneira por intermédio das culturas, é toldada pelo desejo e poder de acúmulo de riquezas pelos detentores dos meios de produção.

A linguagem e o trabalho impuseram radicais modificações em um estilo de vida que já foi coletor-caçador, agricultor, feudal, burguês, industrial, capitalista, pós-moderno, neoliberal etc. Não ficamos apenas nos representando o mundo. A modificação que a espécie humana impôs ao mundo por intermédio do trabalho contribuiu para a evolução de relações de poder nas quais aqueles (poucos) homens que detêm os meios de produção exploram os (muitos) que não os possuem. Essa situação leva o trabalhador a alienar-se do produto de seu próprio trabalho, pelo qual recebe muito menos que o valor que lhe é atribuído no mercado, “nome fantasia do capital” (p.15). Essa alienação favorece ideologias conservadoras e conformistas estimuladas por patrões, e por várias religiões, sobretudo as fundamentalistas.

Os últimos capítulos do livro estão dedicados à importância das ideias de Darwin para o conhecimento científico e humano e as reações, de fundo religioso, a tais ideias. É impossível ignorar a influência social das religiões, sobretudo a judaico-cristã. Ao contrário de determinados mitos urbanos que têm uma vida menor que a chama de uma vela, as doutrinas religiosas colonizam muitas gerações por um longo tempo, ainda mais em locais onde o acesso a uma educação cientifica e filosófica é no máximo lacunar. No Brasil, como nos evidencia Martins, a multiplicação de associações e sites relacionados à ideia do “desenhista inteligente” ( inteligent designer ), a roupa nova do criacionismo científico ( sic !), ameaça o ensino laico dos jovens cidadãos (como preconiza a Constituição brasileira), e o direito do cidadão a ser formado e informado por um conhecimento de melhor qualidade, que não se furte ao escrutínio crítico e político, que não apele a discursos de autoridade, humanos ou sobre-humanos. A situação agrava-se com a emergência da assim chamada “Escola sem partido”, que, à guisa de proteger futuros cidadãos de ideologias progressistas (de esquerda), pretende determinar o que os professores devem ou não ensinar em sala de aula.

Muitos outros temas são desenvolvidos no livro: a importância de Hegel para a discussão sobre a teleologia; as reflexões de Lukács acerca da relação entre trabalho e linguagem; a crítica delicada e incisiva contra um livro da filósofa Marilena Chaui sobre Espinosa; uma apreciação crítica do livro A caixa preta de Darwin , de Michael Behe; uma breve história da “teoria” do inteligent design . Peço licença, no entanto, para finalizar esta resenha de forma mais pessoal: escrevo essas linhas enquanto assistimos ao pensamento reacionário (no sentido de reação a ideologias progressistas e identitárias), associado a um certo fanatismo religioso, crescer a cada dia nas ruas e nas mentes de muitos cidadãos brasileiros e de muitas outras nacionalidades. O sociólogo Sam Harris (2009) , autor do livro A morte da fé , afirma que mesmo as religiões não fundamentalistas contribuem para a manutenção da irracionalidade no mundo, pois a crença em um Deus implica a negação dos deuses de outras religiões, e também a crença de que não há nenhum Deus criador ou diretor do universo. Acredito, particularmente, que as religiões possam ser vivenciadas de modo menos exclusivistas, como identidades culturais, por exemplo. Ouvi outro dia da boca de um pastor que o ensino para a juventude brasileira deve ser laico! Harris escreve a partir de uma perspectiva estadunidense, e seu contato com o fundamentalismo é certamente muito maior. Darwin não era um homem antirreligioso, como nos mostra Martins e mais agudamente um livro como A causa sagrada de Darwin , de Adrian Desmond e James Moore (2009). Sua teoria, entretanto, ameaça dogmas que se referem principalmente à criação e fixidez das espécies animais e vegetais na Terra e a um suposto lugar superior à espécie humana na natureza. Levando em conta conceitos como variedades e variação individual, seleção natural e sexual, princípio da divergência, gradualismo, especiação, populações, tempo profundo, Darwin pôde responder perguntas seculares sobre a diversidade das espécies e as adaptações dos indivíduos ao meio ambiente em que vivem, sem referência a qualquer força ou impulso sobrenatural.

Martins, a certa altura, comenta sobre a importância de textos com o caráter de divulgação científica e filosófica (p.65). Seu primeiro livro não é uma obra de divulgação, mas de filosofia, embora possa funcionar como fonte de leitura e discussão a respeito de conceitos fundamentais para o conhecimento do mundo e da atividade humana, dando a seus leitores (graduandos, pós-graduandos, quem sabe doutores) oportunidade de fazer contato com a sua própria parte do fogo, para fazer frente aos tempos obscuros que parecem se aproximar cada vez mais.

Nota

1A expressão “parte do fogo” foi retirada de uma citação expressa que Martins faz duas vezes (p.9, 21) de um pequeno trecho do livro O que é a filosofia? , de Deleuze e Guattari.

Referências

BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Tradução Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

DESMOND, Adrian; MOORE, James. A causa sagrada de Darwin. Rio de Janeiro: Record. 2009.

HARRIS, Sam. A morte da fé. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.

MARTINS, Maurício Vieira. Marx, Espinosa e Darwin: pensadores da imanência. Rio de Janeiro: Consequência. 2017.


Resenhista

Ricardo Waizbort – Pesquisador, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz. orcid.org/0000-0003-1469-6638 E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MARTINS, Maurício Vieira. Marx, Espinosa e Darwin: pensadores da imanência. Rio de Janeiro: Consequência, 2017. Resenha de: WAIZBORT, Ricardo. A parte do fogo. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.26, n.1, jan./mar. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

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