Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória | Enzo Traverso

Na história oficial do marxismo, tornou-se comum a celebração dos triunfos conquistados das revoluções socialistas. Ressaltar a dimensão redentora dos seus êxitos, seja de personagens “heroicos” e ou de movimentos “gloriosos”, parecia assegurar a concretização de uma “etapa” previsível, objetiva e petrificada na locomotiva linear do “progresso”.

Uma contrapartida dessa odisseia de vitórias repousa justamente no outro lado da moeda: o prisma das derrotas e seus efeitos políticos e epistemológicos na história do socialismo e do marxismo. Eis aqui a proposta da coletânea de ensaios Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória, de Enzo Traverso (2018), originalmente publicado em francês, em 2016, com edições em inglês, alemão, espanhol e, finalmente, uma cuidadosa edição em português, organizada pela editora ítalo-brasileira Âyiné. Embora seja seu primeiro livro traduzido no Brasil, o autor construiu uma sólida agenda de pesquisa nas últimas três décadas e é considerado um dos maiores especialistas em história política e intelectual contemporânea.

Professor da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, Traverso reconhece a irredutível pluralidade de correntes políticas, tendências estéticas e intelectuais da “cultura de esquerda”, que mescla um conjunto de experiências, ideias e sentimentos. Concentra seus esforços na tradição marxista, apontada como a “expressão dominante dos movimentos mais revolucionários no século XX” (TRAVERSO, 2018, p. 15), sem, com isso, reduzi-la a uma doutrina codificada em textos canônicos. Ao contrário, Melancolia de esquerda apresenta análises sobre uma fascinante galeria de testemunhos (livros e cartas), teorias (políticas e filosóficas) e imagens (filmes, pinturas, cartazes de propaganda política). Esse recorte possibilita uma leitura inquietante, moldada pela riqueza de insights presentes no livro e pelos (novos) horizontes abertos em sua narrativa fluída que, com paixão e simplicidade, consegue despertar “iluminações profanas”.

Partindo da constatação de que a valorização da memória nas ciências humanas e sociais do início dos anos 1980 coincidira com a crise do marxismo, Traverso aponta sua intenção em analisar essa “transição da utopia para a memória” (TRAVERSO, 2018, p. 16), essa “passagem de uma época de fogo e sangue – que, apesar de todas as derrotas, se mantinha decifrável – para um novo tempo de ameaças globais sem um resultado previsível”, que teria “um sabor melancólico” (TRAVERSO, 2018, p. 17). Nesse sentido, a expressão “melancolia de esquerda” não estaria ancorada em um estado patológico de sofrimento no plano individual, tampouco em um universo fechado de lembrança ou nostalgia, mas sim em um denso tecido social “de emoções e sentimentos que envolvem uma transição histórica, a única maneira que a busca por novas ideias e projetos pode coexistir com o pesar e o luto após o fim das experiências revolucionárias” (TRAVERSO, 2018, p. 17). É a melancolia de uma esquerda que permanece aberta às “lutas do presente”; não se afasta da “autocrítica em relação a seus fracassos” e resiste “à ordem mundial estabelecida pelo neoliberalismo”; que encara “as tragédias e as batalhas perdidas do passado como um fardo e uma dívida – e, nesse caso, uma promessa de redenção” (TRAVERSO, 2018, p. 18-19). Trata-se, assim, da aposta por uma melancolia que não seja nem paralisante, nem circunscrita em si mesma, mas como estímulo à autorreflexão crítica diante de uma visão trágica da história.

Distante de esquemas convencionais que postulam o conflito entre forças e relações de produções, ou de uma história estrutural concebida como processo de acumulação, Traverso narra o século XX como uma era de arritmias, catástrofes, revoluções, genocídios, rupturas intempestivas, barbáries e totalitarismos. Sua historiografia crítica, cujo modus operandi ativa um “mal-estar frutífero”, é perceptível já na longa introdução do livro, na qual revisita a expressão de “tempo suspenso” de Reinhart Koselleck para compreender as transformações ocorridas entre o final da década de 1970 e o 11 de setembro de 2001. Esse período, marcado pela radical mudança de paradigmas políticos e intelectuais, teve a queda do Muro de Berlim como símbolo de uma transição que “alterou a percepção do passado e gerou uma nova imaginação histórica” (TRAVERSO, 2018, p. 29), na qual “velhas e novas formas emergiram juntas” (TRAVERSO, 2018, p. 31).

O século XXI começa, assim, com a falência da utopia que havia moldado o século anterior: o comunismo não seria mais um ponto entre a experiência e a expectativa, já que esta havia desaparecido, enquanto “a experiência tomou a forma de um monte de ruínas” (TRAVERSO, 2018, p. 38). Sem apresentar novidades nessa análise inicial, Traverso recupera referências de François Furet a Fredric Jameson, para quem seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, e enfatiza que, na transição do “princípio da esperança” (Ernst Bloch) para o “princípio da responsabilidade” (Hans Jonas), o presente estaria “carregado de memórias, mas incapaz de se projetar no futuro” (TRAVERSO, 2018, p. 40).

Sob os escombros do colapso da URSS, as novas formas de produção no sistema das fábricas e a crise tradicional dos “sistemas de partidos”, o advento da era da “globalização” e do “neoliberalismo” não seria simplesmente a reabilitação pura do laissez-faire e da naturalidade do mercado, mas uma relação social histórica das normas de vida. “Entre um passado que não se pode superar e um futuro negado”, assiste-se o “novo espírito do mundo”, um capitalismo “depredador” que ameaça a espécie e o planeta, sob o fetichismo do espetáculo e do simulacro. Diante desse cenário, Traverso observa ser inevitável que “um mundo sem utopias acabe olhando para trás” (TRAVERSO, 2018, p. 44). No entanto, espelhado no pensamento de Walter Benjamin, afirma que esse passado não contém apenas as memórias das “vítimas”, mas também os projetos políticos “vencidos”, que não foram realizados porque a dominação se impôs. Em suas palavras: “A memória do gulag apagou a da revolução; a memória do Holocausto suplantou a do antifascismo; a memória da escravidão eclipsou a do anticolonialismo: a recordação das vítimas parece não poder coexistir com a lembrança de suas esperanças, de suas lutas passadas, de suas conquistas e derrotas” (TRAVERSO, 2018, p. 45).

Aqui encontramos, portanto, a originalidade crítica do autor: em vez de vincular a melancolia ao processo de luto das “vítimas” ou a uma “utopia perdida”, Traverso realiza um esforço para, a partir dos “vencidos”, repensar um “projeto revolucionário em uma era não revolucionária” – a possibilidade de uma “melancolia fecunda” que, seguindo os dizeres de Judith Butler, implicaria “o efeito transformador da perda” (TRAVERSO, 2018, p. 65-66).

Nesse sentido, até mesmo as memórias das vítimas podem ser analisadas sob essa perspectiva arrojada. Ao refletir sobre revoluções ocorridas no Ocidente, no Leste Europeu e no “Terceiro Mundo” durante o século XX, Traverso observa a existência de “três diferentes memórias de vítimas, três lugares distintos”. Parte do exemplo do Oito de Maio de 1945, data em que se comemora a rendição do Terceiro Reich na Europa Ocidental – mas cujos significados são diversos tanto na Europa Oriental como no norte da África: para a primeira, essa data expressava “o fim do pesadelo nazista com o começo da longa noite de hibernação soviética” (TRAVERSO, 2018, p. 58); para a segunda, a data retratava um dia de genocídio, a propósito do massacre em que milhares de nacionalistas argelinos foram mortos pelas tropas coloniais francesas. Entre Holocausto, comunismo de estado e colonialismo, “as narrativas históricas entrelaçadas por essa efeméride divergem, mesmo levando em conta que todas suas reações são ativadas pela existência de uma vítima do passado”. Essa pluralidade indica uma espécie de “memória global” do início do século XXI que, embora esteja delineada num panorama de sofrimentos fragmentados, tem potencialidade para “abrir espaços fecundos de coexistência para além de identidades nacionais e culturais fechadas” (TRAVERSO, 2018, p. 62).

Assim como a introdução, os sete capítulos que seguem são frutos de versões mais curtas publicadas ou apresentadas por Traverso nos últimos 20 anos de sua trajetória em editoras e universidades da Europa, América Latina e Estados Unidos. Ainda que possam ser lidos sem uma ordem estabelecida, a disposição organizada no livro permite sucessivas descobertas transversais.

No primeiro capítulo (“A cultura da derrota”), o autor busca traços de uma dialética da derrota e aprofunda diferentes usos do termo melancolia. Apresenta uma significativa “galeria de luto” acumulada, anterior a formas de “melancolia crepuscular” que, adquirindo certo sabor nostálgico, situam-se alheias ao ciclo histórico das revoluções e contrarrevoluções do século XX. Narrador da queda do Antigo Regime, François-René Chateaubriand é apontado como paradigma dessa “melancolia conservadora”, exemplificada pela metáfora do Naufrágio como espectador, de Hans Blumenberg. Traverso observa, contudo, um valor epistêmico desse naufrágio: ainda que todas e todos estejam “embarcados”, o “melancólico vencido”, por apenas um instante, também pode “contemplar a própria derrota de um ponto de vista externo”. Uma espécie de “estranhamento de si”, no sentido proposto por Sigried Kracauer, fundamental para um entendimento crítico: trata-se, assim, de uma visão melancólica que “ajuda a superar o trauma sofrido” (TRAVERSO, 2018, p. 75).

Em seguida, Traverso trabalha com a perspectiva de Koselleck, segundo a qual haveria uma superioridade epistemológica dos vencidos na interpretação do passado, pois estes o repensam “com um olhar mais sutil e crítico”, em contraste aos vitoriosos, que “caem inevitavelmente numa visão apologética do passado baseada em um esquema providencial” (TRAVERSO, 2018, p. 76). Não seria difícil encontrar na historiografia marxista uma abordagem pela órbita dos vencidos e das classes sociais como sujeitos históricos, como fazem Edward P. Thompson, Ranajit Guha, Adolfo Gilly e outros. Contudo, é na comparação entre François Furet e Eric Hobsbawm que observamos uma ousada crítica de Traverso, que aponta tanto a “arrogância dos vitoriosos” do acadêmico francês como a “consciência da derrota” do pensador britânico. Se O passado de uma ilusão recusa qualquer tentativa de mudar a história, A era dos extremos reforça a apologia de um passado que, brutal, acaba sendo validado como se não pudesse “ter sido diferente” (TRAVERSO, 2018, p. 84). Historiadores de obras canonizadas e difundidas mundialmente, o primeiro como sentinela da ordem constituída de uma democracia liberal, o segundo como mensageiro de um comunismo com “vocação para o sacrifício” que produzira uma “espécie de socialismo cruel”: ambos portadores de visões teleológicas da história.

Para trabalhar a “dialética da derrota”, Traverso recorre ao livro de memórias do comunista Lucio Magri, O Alfaiate de Ulm. O testemunho de Magri é inspirado em poema de Bertold Brecht sobre a história de um alfaiate que, em 1592, tinha obsessão de construir um aparelho para voar, mas, ao subir no alto de uma catedral com seu aparelho rudimentar, se espatifou no chão. Esse fracasso tanto poderia ser considerado ridículo, quanto também ser visto como “a tentativa de um precursor”, já que, séculos depois, seria possível voar. Magri sugere caminho semelhante ao comunismo: talvez tenha fracassado no século XX, mas não se poderia descartar possibilidade de sucesso futuro. Para Traverso, “as reflexões de Magri não foram nem ingênuas nem otimistas. Ele não tentou reduzir a derrota do comunismo a uma simples batalha perdida” (TRAVERSO, 2018, p. 89-90). Sob a premissa de que a história das revoluções é a história das derrotas, o autor busca extrair tanto dos escritos de Marx como de marxistas-militantes uma “teoria das derrotas” enquanto “exercício de exorcismo” (TRAVERSO, 2018, p. 94), colocando em cena a trajetória de Jules Vallès e as memórias de Louise Michel sobre a Comuna de Paris; Rosa Luxemburgo e seu inexorável otimismo diante da derrota da revolução alemã; Che Guevara e suas palavras finais de que a “revolução é imortal”, mesmo diante do fracasso do movimento guerrilheiro na Bolívia; e a última mensagem de Salvador Allende no fatídico 11 de setembro de 1973, no Chile.

É ainda nesse capítulo inicial que Traverso aborda algumas metamorfoses, definições, representações e características da noção de melancolia na história, analisando xilografias, gravuras e fotografias, até chegar no campo da psicanálise. Ao examinar o famoso texto de Freud, Luto e melancolia, de 1915, Traverso aponta que, “[s]eguindo o modelo freudiano, poderíamos definir ‘melancolia de esquerda’ como resultado de um luto impossível: o comunismo é tanto uma experiência acabada quanto uma perda insubstituível, numa era em que o fim das utopias torna impossível qualquer transferência (transfer) libidinosa para um novo objeto de amor”. No entanto, conforme completa o autor, “uma vez que as utopias acabam, um luto bem-sucedido poderia significar uma identificação com o inimigo: um socialismo perdido é substituído por um capitalismo aceito” (TRAVERSO, 2018, p. 117). O historiador italiano propõe, então, “despatologizar” a melancolia, concebendo-a como premissa imprescindível ao processo de elaboração de luto, como um passo capaz de ajudar o sujeito a se tornar ativo novamente. O objeto perdido não seria, necessariamente, esquecido ou substituído como garantia de um luto exitoso: a melancolia passaria a ser considerada como um processo de possibilidades alternativas (TRAVERSO, 2018, p. 118). Longe de significar essencialmente a “nostalgia de um socialismo real ou de outras formas malogradas de stalinismo”, o objeto perdido não equivaleria a um regime ou uma ideologia, mas à própria luta enquanto experiência histórica. Sob essa via, afirma Traverso, “melancolia significa memória e consciência das potencialidades do passado: uma fidelidade às promessas de emancipação revolucionárias, não às suas consequências” (TRAVERSO, 2018, p. 130-131).

No segundo capítulo (“Marxismo e memória”), o autor observa que a emergência da memória na esfera pública ocorre no mesmo momento da virada intelectual conhecida como “crise do marxismo”: o marxismo dominava as ciências humanas e sociais enquanto estas tinham como paradigma a sociedade; durante os anos 1980, contudo, entram em cena os estudos de memória como paradigma acadêmico. Para dar conta desse estudo, Traverso considera a memória em um duplo significado: “não apenas recordações individuais, mas representações coletivas do passado” (TRAVERSO, 2018, p. 139). Recupera a cultura marxista, que sugere “certa concepção da memória e, ao mesmo tempo, suscita perspectivas interessantes na memória da própria esquerda” (TRAVERSO, 2018, p. 140) e a iconografia socialista-comunista, especialmente propagandas soviéticas realizadas durante a década de 1920. Ao analisar esses quadros, pinturas, projetos e pôsteres (como Monumento à Terceira Internacional, de Vladimir Tatlin, 1919; O novo planeta, de Konstantin Youn, 1921; Lênin, de Strakhov, de 1924; Um espectro assombra a Europa, o espectro do comunismo, de V. Scherbakov, 1920; entre outras), o historiador italiano afirma que, “se tivéssemos que sintetizar a fórmula da concepção marxista da memória, poderíamos adotar a vigorosa definição sugerida por Vincent Veoghegan: ‘relembrar o futuro’” (TRAVERSO, 2018, p. 166).

Com efeito, as peregrinações de Traverso nas imagens comunistas atravessam também o pós-segunda Guerra Mundial, observando um imaginário em direção a um socialismo “medido em toneladas de aço, tratores, aeronaves e mísseis produzidos pela indústria soviética” (Traverso, 2018, p. 157). Durante o regime de Leonid Brejnev, na década de 1970, “o ritmo da marcha começa a desacelerar e o futuro se torna incerto”, desabrochando numa era “pós-utópica” que culmina com o “fim do comunismo”. Dois exemplos sobre essa fase da internalização de sua queda histórica são examinados pelo autor: Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos, filme de 1995 que percorre a guerra da antiga Iugoslávia, e Buena memoria, de Marcelo Brodsky, de 1997, ensaio fotográfico e vídeos sobre sua família que se mistura com a história da Argentina. Do Rio Danúbio do diretor grego ao Rio da Prata do artista argentino, esses materiais primorosos suscitam uma sobreposição de temporalidades históricas em suas representações, tal como um trauma que rompe a continuidade do tempo de Chronos. A dimensão estratégica do marxismo correspondente ao nosso presente consistiria menos na organização da queda do capitalismo e mais em “superar o trauma de um colapso sofrido”. Como resume Traverso, sua arte estaria em “organizar o pessimismo” e “tirar lições do passado” com a consciência de que “um novo começo tomará inevitavelmente novas feições, diferentes caminhos” (TRAVERSO, 2018, p. 186- 187).

Na sequência, o autor elege imagens cinematográficas que capturam o “eclipse da esperança socialista” e o “legado das revoluções vencidas do século passado”, para analisar no terceiro capítulo (“Imagens da melancolia”). Partindo da hipótese de que filmes e romances históricos podem transfigurar certos eventos para alcançar uma “dimensão subjetiva do passado”, carregando, assim, “uma de suas verdades”, Traverso considera que essas artes podem ser estudadas “como um barômetro da consciência da esquerda” (TRAVERSO, 2018, p. 192). Em um primeiro momento, o autor trabalha na análise de duas películas criadas em meio aos acontecimentos históricos vividos e sentidos: A terra treme, de 1948, de Luchino Visconti, que expressaria uma “parábola da luta de classes” nos anos de restauração política e social no pós-guerra na Itália; e A batalha de Argel, rodada em 1966 por Gillo Pontercovo durante o contexto das lutas anticoloniais na Argélia. Em um segundo momento, examina filmes do período pós-comunista que “desempenharam uma espécie de dever da memória, reunindo um mosaico de momentos e objetos que condensam o significado e o sabor de uma experiência finalizada” (TRAVERSO, 2018, p. 215). Assim, esquadrinha os “lugares de memória” (Pierre Nora) e os “trabalhos de memória” (Paul Riccoeur) de Um olhar a cada dia, dirigido em 1995 por Theo Angelopulos, que se passa pela região dos Bálcãs; O fundo do ar é vermelho, de Chris Marker, realizado em 1977, mas revisto em uma versão de 1993, filme de montagem não linear com imagens de guerras do século XX; Terra e Liberdade, belo filme lançado em 1995 no qual Ken Loach revisita a Guerra Civil Espanhola; Calle Santa Fe, documentário de 2007 dirigido por Carmen Castilho sobre a trajetória de Miguel Enríquez, o exílio da cineasta e a derrota histórica metabolizada no golpe de Pinochet de 1973; além da notável produção cinematográfica dedicada à memória chilena feita pelo diretor Patrício Guzmán.

O quarto capítulo (“Boemia: entre a melancolia e a revolução”) é dedicado à caracterização “sociológica” da boemia surgida no século XIX, sua vocação “marginal” e “rebelde”. Segundo o historiador italiano, “a boemia também pode se tornar o campo melancólico para onde, por trás da fachada de restauração da ordem, os derrotados se retiram e refletem acerca da sua derrota” (TRAVERSO, 2018, p. 313). Assim, deslinda a trajetória de Gustave Courbet e seu trabalho artístico e político, expressão de “uma cultura da derrota que releva a dimensão melancólica da boemia e do socialismo francês pré-marxista” (TRAVERSO, 2018, p. 283). Em busca de uma interpretação marxista da boemia, o autor trabalha com três autores: mapeia as referências de Marx à boêmia francesa, visita as análises de Walter Benjamin sobre as antinomias políticas de Charles Baudelaire e o surrealismo e, por fim, debruça-se sobre as colocações de Leon Trotsky sobre as boemias russa e alemã. Além de potenciais “intérpretes”, Traverso insere os mesmos três autores como agentes de uma boemia sui generis, analisando suas veredas intelectuais e políticas com ênfase em suas biografias, destacando a condição de exilados, a precariedade cultural e o inconformismo cultural.

Traverso reserva os três últimos capítulos para propiciar uma deleitável série de encontros e desencontros. No quinto (“O marxismo e o ocidente”), escrutina com perspicácia os escritos de Marx sobre sociedades não ocidentais, uma descoberta tardia que modifica sua inicial perspectiva eurocêntrica, superada a partir da década de 1860. Embora Melancolia de Esquerda esteja centrado em discussões teóricas, empíricas e até mesmo bibliográficas relacionadas a uma cultura de esquerda europeia e estadunidense, são instigantes seus apontamentos sobre o Sul Global. O autor investiga como o “marxismo ocidental” do século XX, particularmente o da Escola de Frankfurt, foi flagrantemente ausente nos debates referentes aos processos de colonização e colonialismo. Em mais um feliz momento de seu livro, reflete sobre um desencontro entre Theodor Adorno e Cyril L. R. James. Tecendo um original exercício de história contrafactual, Traverso divaga acerca desse “encontro perdido” entre a primeira geração da teoria crítica e o marxismo negro caribenho que, caso tivesse se concretizado, poderia oferecer fecundas contribuições aos debates da cultura de esquerda. Para o autor, “a Escola de Frankfurt teria superado suas barreiras eurocêntricas e as revoluções coloniais teriam enfrentado a questão do desenvolvimento com diferentes paradigmas” (TRAVERSO, 2018, p. 369-370), bem como os estudos pós-coloniais não teriam reduzido o marxismo a uma teoria eurocêntrica.

O sexto capítulo (“Adorno e Benjamin: cartas na meia-noite do século”) percorre tanto a troca epistolar como textos teóricos dos pensadores alemães. Assim, analisa uma conflituosa amizade, demarcada pela relação hierárquica entre eles, já que Adorno foi chefe de Benjamin. O tom distanciado nas cartas refletia-se, também, nas divergências entre os dois autores em relação aos debates políticos e epistemológicos cruciais daquele momento, envolvendo temas como surrealismo, fascismo, modernidade, religião, cultura de massa, história, entre outros. Para citar dois exemplos, enquanto Benjamin criticava tanto a política do comunismo oficial como a social-democracia, Adorno mostrava-se apático a essas discussões; enquanto o primeiro enxergava uma dimensão emancipatória na arte da sociedade de massa, o segundo a compreendia como o fim da criação artística. Segundo Traverso, essas diferenças indicariam duas modalidades de “melancolia de esquerda” que, apesar de “românticas”, eram opostas, pois Benjamin atuava a favor de uma “agência radical”, enquanto Adorno de forma “resignada e passiva” (TRAVERSO, 2018, p. 417). Nesse debate, Traverso não esconde em nenhum momento sua maior simpatia por Benjamin, cujas articulações peculiares o levariam a tentativas de escapar do impasse de três versões dominantes do materialismo histórico: o stalinismo e seu autoritarismo burocrático, a social-democracia e seu reformismo e, por fim, o marxismo ocidental e sua fuga para a estética – na qual Adorno se encontraria, recusando-se “a dar uma dimensão política a sua teoria crítica” (TRAVERSO, 2018, p. 423-424).

Por fim, o último capítulo do livro (“Tempos sincrônicos: Walter Benjamin e Daniel Bensaïd”) aponta a importância do pensamento benjaminiano para o militante trotskista francês. Tanto Lucien Goldmann quanto Benjamin foram aliados indispensáveis para Bensaïd pensar, sob a ótica do presente, seus dilemas e desafios. O primeiro, incorporando o sentido da emancipação como um ato de fé, e o segundo, por ter reinventado “uma nova ideia de comunismo não mais prisioneira das ilusões do progresso, mas inspirada pela vontade de redimir os derrotados da história” (TRAVERSO, 2018, p. 453). Importante liderança do maio de 1968, Bensaïd viveu intensamente as transformações políticas, intelectuais e psicológicas do “fim do comunismo”. Nos anos 1990, o filósofo direcionou seu pensamento na assimilação e confronto com diferentes culturas e experiências políticas em países e continentes, um verdadeiro “atravessador de fronteiras”, como diz Traverso. Herdeiro da tradição intelectual inaugurada pela décima primeira tese sobre Feuerbach, Bensaïd recuperou Marx como crítico da “razão histórica, da razão econômica e da positividade científica” (cf. BENSAÏD, 1999), difundindo uma “tradição oculta de um materialismo histórico à contretemps, ou seja, como uma teoria de tempos dessincronizados ou de não contemporaneidade” (TRAVERSO, 2018, p. 448). Principalmente na esteira de Benjamin – e de Charles Péguy –, investigar a memória de um século em escombros, para Bensaïd, era vasculhar as multiplicidades do “tempo-agora (Jetztzeit) – o passado inacabado e um futuro utópico”. A “aposta melancólica” de Bensaïd implicaria em “organizar o pessimismo” das derrotas, resgatando a política e sua dimensão estratégica para determinar o que nos aproxima e que nos afasta no objetivo de ultrapassar/suprimir a ordem existente.

Ora, essa perspectiva de Bensaïd é adotada por Traverso com intensidade. Aliás, uma leitura transversal da obra permite observar como Melancolia de esquerda constrói sua arquitetura teórico-política, direta ou indiretamente, a partir de autores marxistas dissidentes. Benjamin, por exemplo, é uma influência decisiva. Presente em praticamente todos os ensaios do livro, seja como objeto de análise (um dos atores da boemia, testemunho da correspondência com Adorno, inflexão do “marxismo profano” de Bensaïd), seja como referência teórica para compreensão de uma “visão melancólica da história como rememoração dos vencidos que pertence a uma tradição escondida do marxismo” (TRAVERSO, 2018, p. 16). Entre “rememoração do passado” e “redenção revolucionária”, a melancolia benjaminiana é destacada enquanto paradigma epistemológico: “um olhar alegórico e histórico capaz de penetrar a sociedade e a história, compreender as origens e recolher os objetos e imagens de um passado que, ansioso, espera por redenção” (TRAVERSO, 2018, p. 123).

Outro personagem que atravessa o livro é o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, que atuou ao lado de seu amigo Bensaïd nas trincheiras anticapitalistas. É possível notar essa inspiração não apenas nas obras de Löwy citadas por Traverso, ou nos vínculos profissionais que mantiveram na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), quando Löwy, a quem o livro é dedicado, o orientou. Mas, sobretudo, essa força inspiradora está presente na busca por “tradições escondidas” (o universo cultural judaico da Mitteleuropa, a teologia da libertação na América Latina, por exemplo), na leitura “política-messiânica” que ambos fazem de Benjamin e na concepção de um marxismo em diálogo com estilos de pensamentos diferentes (em especial com a tradição romântica-revolucionária). Essa “dívida” está de algum modo expressa em uma análise sobre a trajetória do intelectual franco-brasileiro, mesclada com ares de testemunho e sabor de afeto, no ensaio “Le marxisme libertaire de Michael Löwy” (TRAVERSO, 2012).

À tríade rebelde formada por Bensaïd, Benjamin e Löwy poderíamos acrescentar outros marxistas dessa constelação dissidente, como Kracauer, referenciado em diversas páginas do livro, e Goldmann, de quem Löwy foi discípulo. Longe de indicar uma relação subordinada com este ou aquele pensador, o trabalho de Traverso oferece uma leitura profundamente genuína de expressões da cultura revolucionária no século XX, engrandecida por esse marxismo herético oriundo da cultura judaica e europeia. Trata-se, outrossim, de um autor cuja geração não disfrutou, em sua formação sociocultural, do “otimismo antropológico” das revoluções (e esperanças) anti-imperialistas no Sul Global, nem das revoltas estudantis e operárias anticapitalistas do Ocidente nas décadas de 1960 e 1970, tampouco das sublevações antiburocráticas no Leste Europeu. Esteve, contudo, marcado indelevelmente pelo signo da melancolia política da derrota no fin-de-siècle, da difícil experiência de acompanhar, enquanto historiador “profissional” e testemunha ocular, uma mutação histórica das quais as utopias revolucionárias de outrora passaram para um “espaço da memória”. Nesse itinerário intelectual, as obras de Traverso parecem carregar o postulado teórico-metodológico do marxista italiano Antonio Gramsci, segundo o qual “a história é sempre história contemporânea, isto é, política” (GRAMSCI, 2011, p. 312).

O livro de Enzo Traverso traz uma reflexão crítica e franca, tête-à-tête, sobre as derrotas históricas da esquerda revolucionária no século XX. Inscrita em uma estrutura de sensibilidade subjacente a uma diversidade de conteúdos e formas de expressão (intelectuais, políticas, artísticas etc.), a “melancolia de esquerda” corre, contudo, o risco de se tornar um abrigo de manifestações e produções que não correspondem necessariamente ao arcabouço para o qual se destina. Por isso, sua “operacionalização” em outros fenômenos socioculturais depende de uma consistente historicidade da “melancolia”, o que ajudará a definir melhor o alcance (e os limites) da “melancolia de esquerda”.

Como assumir um fracasso histórico sem abdicar das utopias revolucionárias? Não há dúvidas de que a obra em tela pode causar incômodos, tanto para uma esquerda que nega obstinadamente “viver o luto da derrota”, como para aquela que, consentindo com investidas neoestalinistas, encara esse tipo de trabalho de memória como “fetiche pela derrota”.

Obra altamente recomendada, Melancolia de Esquerda traz uma lúcida reflexão política, histórica e filosófica que apresenta um mosaico heterogêneo de intelectuais, movimentos, textos e imagens representantes de uma cultura revolucionária vencida. Se o luto significa metabolizar as derrotas, o autor propõe a melancolia como uma importante energia política para a esquerda criar vínculos com sua própria história. Sua perspectiva dialético-crítica, que conjuga experiências catastróficas e utopias vividas, além de colocar o autor como um dos historiadores mais inovadores do pensamento marxista contemporâneo, inspira uma ampla agenda de pesquisas. Além disso, no presente momento fortemente marcado pelo negacionismo histórico, Melancolia de esquerda oferece ferramentas imprescindíveis para que a indignação não deixe de fazer parte das lutas políticas.

Referências

BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 5a. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. Belo Horizonte/ Veneza: Âyiné, 2018.

TRAVERSO, Enzo. Le marxisme libertaire de Michael Löwy. In: DELECROIX, Vicent; DIANTEILL, Erwan. (orgs.). Cartographie de l’utopie. L’ouvre indisciplinée de Michael Löwy. Paris: Sandre Actes, 2012, pp. 27-38.


Resenhistas

Deni Alfaro Rubbo – Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), professor de Ciências Sociais e do Programa de Mestrado de Ensino de História na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). É coorganizador de Espectros de Mariátegui na América Latina (Lutas Anticapital, 2020). E-mail [email protected]

Danielle Tega – Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com pós-doutorado pelo Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu (UNICAMP). Professora de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). Autora de Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil e na Argentina (Intermeios/FAPESP, 2019). E-mail [email protected]


Referências desta Resenha

TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. Belo Horizonte/Veneza: Editora Âyiné, 2018. Resenha de: RUBBO, Deni Alfaro; TEGA, Danielle. Cartografias da derrota: rememorações marxistas e melancolia política. Revista de História. São Paulo, n. 180, 2021. Acessar publicação original [DR]

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