Memorias de la bacanal – vida y milagros del carnaval montevideano 1850-1950 | Milita Alfaro

O Brasil é o país do Carnaval? Com toda a certeza, mas a pergunta não está bem formulada, pois evoca a idéia de que apenas o Brasil seja um espaço privilegiado para a festa. Quem já teve a oportunidade de visitar o Uruguai durante o período carnavalesco sabe que o nosso pequeno vizinho – cuja população é de aproximadamente três milhões de pessoas e a extensão territorial menor do que a do Rio Grande do Sul – comemora entusiasticamente a folia momesca, durante um período bem mais longo do que os nossos quatro dias. Escolas de samba, comparsas, murgas e candombes, entre tantas outras manifestações, enchem as ruas e os teatros da capital Montevidéu e das cidades do interior; as emissoras de televisão transmitem as festividades e muitos municípios anunciam a sua comemoração como “o mais destacado folguedo”, em um apelo cultural e turístico a revelar uma significativa concorrência pelo mercado da folia.

O mais impressionante é que, no Uruguai, o Carnaval não é festejado apenas nas ruas e teatros, ele também é lembrado, estudado e consumido em livros e publicações, em uma série de lançamentos disponibilizados todos os anos nas livrarias, com os mais variados objetivos e abordagens, entre eles, obviamente, os estudos históricos e sociológicos. A produção intelectual sobre o tríduo momesco é comparativamente muito maior do que a do Brasil, ainda mais se forem consideradas as diferenças de tamanho entre os dois países. A academia brasileira apenas recentemente começou a encarar com mais profundidade a festa – como se pode conferir pelas contribuições de Maria Clementina Pereira Cunha (2001, 2002), Lazzari (2001) e Simson (2007) –, enquanto os vizinhos se preocupam em analisar o fenômeno há muito mais tempo e a tomá-lo como mais um espaço onde se desenvolvem a história, as identidades e as clivagens de sua sociedade.

A comprovação do engajamento da historiografia uruguaia na pesquisa em torno do tema e da profundidade e da qualidade desse engajamento é o livro Memorias de la Bacanal – vida y milagros del Carnaval montevideano 1850-1950, realizado pela professora da Universidad de La Republica, Milita Alfaro, e publicado às vésperas da folia de 2008 pela tradicional “Ediciones de La Banda Oriental”.

É um livro de menos de 100 páginas (95 para ser mais preciso), fartamente ilustrado, que dá continuidade a duas produções da autora, El Carnaval Heroico – 1800-1872”, publicado em 1991, e “Carnaval y modernización – impulso y freno del disciplinamiento – 1873-1904”, lançado em 1998, ambos pela editora Trilce.

Se as duas obras anteriores são visceralmente “acadêmicas” na forma e no conteúdo da abordagem, e tentam realizar um inventário crítico das formas de comemorar o Carnaval e das transformações que a festa sofreu em pouco mais de cem anos, a atual torna-se muito mais popular e acessível, apresentado- se quase como um álbum, com muitas fotos, ilustrações, textos curtos e explicativos, sem que isto signifique perda de profundidade ou seriedade.

Assim, não se pode negar que é um livro para consumo amplo, projetado para um público diversificado e “curioso” pelas coisas da história (o que se tornou um fenômeno mundial e alavancou as vendas desse tipo de literatura, bem como encheu as bancas de revistas e as livrarias de “pseudo-histórias”, “quase-histórias” ou meros relatos anedóticos). Porém, ao mesmo tempo, não se pode esquecer que é impossível produzir uma obra deste tipo com qualidade se o autor não tiver um profundo conhecimento sobre o tema. Por conseqüência, o que em Memorias de la Bacanal” se apresenta como simples, direto e articulado, decorre de uma trajetória de pesquisa de muitos anos, o que implica percorrer diversos arquivos e documentos, recolher uma invejável diversidade de registros e refletir sobre um fenômeno tão complexo e que se conta em décadas como o Carnaval.

Ao longo do livro, a autora reafirma a sua interpretação acerca do Carnaval montevideano, exposta nas duas obras precedentes. Em torno de 1850, a folia é “bárbara”, em uma referência à classificação promovida por José Pedro Barrán (1990), por sua vez inspirada no clássico “Facundo”, de Sarmiento. Isto é, desenvolve-se sem muitos controles sociais, apesar dos intentos da polícia. São o que a autora chama de “tres dias de verdadera locura en que Montevideo era escenario de feroces guerrillas, con el agua cayendo a torrentes desde todos los balcones y azoteas y con ela ire surcado por uma variadísima gama de proyectiles más o menos contundentes” (ALFARO, 2008, p. 9)

A partir do final do século XIX, em um processo que seria coroado no início do século XX, a festa foi disciplinada, ganhou ordenamento, regras, princípios e infra-estrutura, graças ao engajamento da elite “civilizada”, da imprensa e da repressão. A autora expõe com segurança os conflitos e preconceitos sociais que assolam a folia e produzem a transformação. E dá especial atenção a três personagens tão importantes quanto relativamente pouco abordados em se tratando de Carnaval: os negros, as mulheres e as crianças.

Aborda como as mulheres passaram de foliãs engajadas, despudoradas e até mesmo agressivas em relação ao sexo masculino, nos anos 1870, a “jovens protegidas” nos carros alegóricos, carruagens e automóveis do corso, no início dos anos 1910. Expõe como os negros participam, a tocar “música de brancos”, em sociedades filarmônicas e como a música de raiz afro passa a ser combatida com o advento do carnaval civilizado até lutar por seu espaço e se tornar – a exemplo do samba – um dos típicos sons do Carnaval. Quanto às crianças, mostra de modo crítico como foram moldadas conforme a lógica adulta em seus “bailes infantis”, máscaras e representações.

Narra, ainda o processo de formação das murgas como espaços privilegiados de comemoração. Na realidade, a autora se rende à impossibilidade de localizar a origem desse modo de comemoração artístico, chistoso e crítico dos costumes e da vida política. Por mais que essa localização seja possível do ponto de vista da pesquisa histórica, torna-se esforço vão porque, como ela deixa claro, as murgas tornaram-se uma narrativa construída pela memória coletiva, logo o rigor da ciência histórica segue uma lógica alheia a um mito vivido como verdadeiro. A reflexão da autora não deixa de remeter ao livro de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1991), cujo subtítulo é precisamente “o vivido e o mito”. Por fim, o livro traz referência à diversidade que marca a folia, a começar pelas diferentes espacialidades da capital uruguaia e as comemorações de bairros e seus tablados.

A cada narrativa, registros fotográficos ajudam a materializar as informações, permitem leituras alternativas, apresentam personagens e atores, caso do Marqués de las Cabriolas – uma espécie de Rei Momo do Carnaval uruguaio, que comandou o desfile de abertura, entre 1906 e 1931, sob inspiração da Comissão Municipal de Festas, processo que ilustra como a festividade foi apropriada pelo Estado.

Além da plasticidade e do cuidado editorial, um dos aspectos que mais chamaram a atenção no trabalho da autora – portanto, não apenas neste livro, mas também nos dois precedentes – é a similitude entre as trajetórias históricas da folia uruguaia (montevideana, em especial) e brasileira. Hoje, quem observa o modo como o Carnaval é festejado nos dois países vai encontrar uma série de pontos em comuns, mas inegavelmente o que mais se destaca é o fato de se tratarem de dois modos distintos de conceber os folguedos, com suas tradições, atores e ações diferenciados.

No entanto, apesar de apresentarem identidades próprias e distintas, ambos passaram pelas mesmas transformações, em temporalidades muito semelhantes. Em traços gerais, a folia “bárbara”, mais parecida com uma guerra, e que para nós era o “Entrudo”, ficou no século XIX, tendo sido submetida a novo regramento, o qual significou um “aburguesamento”, ou seja, a submissão aos códigos de conduta e à percepção do mundo das elites nacionais. A autora evidencia o papel importante que a serpentina e o confete desempenharam no processo de disciplinamento ao permitirem a manutenção dos costumes de “atirar coisas nos outros” e substituírem a água por artigos refinados. “Limpia, delicada, respetuosa, la serpentina parecía ser el paradigma del nuevo carnaval que se abria paso, trabajosamente, en el Uruguay de fines del siglo XIX” (ALFARO, 2008, p. 28) Pelotas, por exemplo, vivenciou de modo idêntico tal “revolução”, como tive oportunidade de narrar em uma obra que abarca período histórico semelhante, de 1890 a 1937 (BARRETO, 2003). Nesse caso, mais do que simplesmente promoverem uma mudança radical no Uruguai, como afirma a autora, a serpentina e o confete transformaram a festa como um todo e em muito ajudaram a que ela fosse moldada aos princípios elitistas.

As separações entre os dois carnavais se dão a partir desse ponto em que ele foi “disciplinado”, isto é, as mudanças ocorridas a partir do momento em que a elite perde o controle da folia e ela é reapropriada por novos atores, em especial os elementos populares e negros.

Enfim, o livro de Alfaro é uma obra a ser conhecida e consultada por vários motivos. O primeiro é porque se trata de uma obra qualificada, tanto do ponto de vista de pesquisa histórica quanto de produção editorial. Depois, porque permite aos brasileiros um contato mais próximo com a folia uruguaia, da qual em geral se conhece pouco. Terceiro, porque possibilita perceber a série de semelhanças (e diferenças) entre as duas tradições, nas quais a festa de Momo ocupa uma posição tão destacada, o que ajuda a entender com mais propriedade algumas das características que o carnaval brasileiro apresenta.

Referências

ALFARO, Milita. El Carnaval Heroico – 1800-1872. Montevideo : Trilce, 1991.

ALFARO, Milita. Carnaval y modernización – impulso y freno del disciplinamiento – 1873-1904. Montevideo: Trilce, 1998.

BARRÁN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en Uruguay. 2v. Montevideo : Ediciones de la Banda Oriental, 1990.

BARRETO, Álvaro. Dias de folia – o carnaval pelotense de 1890 a 1937. Pelotas : UCPel, 2003.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia, uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001.

CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.). Carnavais e outras frestas. Campinas: Unicamp, 2002.

LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer. Carnaval em Porto Alegre – 1870-1915. Campinas: Unicamp, 2001.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1991.

SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. Carnaval em Branco e Negro. Campinas: Unicamp, 2007.


Resenhista

Alvaro Augusto de Borba Barreto – Professor da UFPel, Doutor em História. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ALFARO, Milita. Memorias de la bacanal – vida y milagros del carnaval montevideano 1850-1950. Montevideo: Banda Oriental, 2008. Resenha de: BARRETO, Alvaro Augusto de Borba. História em Revista. Pelotas, v.14, p. 145-149, dez./2008. Acessar publicação original [DR]

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