Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (S-RH)

KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: NICHNIG, Claudia Regina. “Escrevo da periferia, não do centro”: mulheres negras e experiências de racismo cotidiano”. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v.25, n.43, p.398-405, jul./dez. 2020.

O livro de Grada Kilomba é resultado de sua tese de doutorado defendida e publicada na Alemanha em 2008 somente dez anos mais tarde publicado no Brasil, em 2019. A pesquisadora, escritora e artista, nascida em Lisboa, na apresentação da edição de seu livro ao público brasileiro, aponta que sua experiência de estudante negra em Lisboa-Portugal, mas também em Berlim-Alemanha, fez com que se sentisse em um não lugar destinado à pesquisadora negra, jamais reconhecida nesta posição, muitas vezes confundida com a pessoa da limpeza. Ao discutir a história colonial destes dois países, Grada Kilomba vai mostrar como o racismo se faz presente nas práticas diárias e que, mesmo que estes países não tenham mais colônias na atualidade, a herança deste período ainda persiste nas marcas coloniais. Foi na Alemanha que encontrou “uma forte corrente de intelectuais negras que haviam transformado radicalmente o pensamento e o vocabulário contemporâneo global durante várias décadas” (KILOMBA, 2019, p. 12) e, portanto, a sua escrita dialoga com as mais importantes autoras e autores da diáspora africana e do feminismo negro, como Gayatri Spivak, Patricia Hill Colins, bell hooks, Philomena Essed, Frantz Fanon, Stuart Hall, Paul Gilroy, destacando autoras que abordam as questões de gênero entrelaçadas com o debate de raça.

A obra revela questões subjetivas e políticas que envolvem racismo, sexualidade e práticas, que a autora chama de “racismo cotidiano”, em que a sua própria narrativa, mas também de outras colaboradoras com sua pesquisa aparecem nos capítulos do livro. Desde a apresentação, Kilomba descreve como trata de uma narrativa “pessoal, escrevi-o para entender quem eu sou” (KILOMBA, 2019, p. 13). Trata-se de uma narrativa, ora autobiográfica, em que traz suas experiências como estudante de pós-graduação em um país marcadamente branco e com uma história de exclusão e violência em relação a outros e outras que não são de uma origem alemã, ora trazendo narrativas de mulheres negras diversas. Apresenta às leitoras e leitores brasileiros alguns conceitos importantes para a leitura do texto como: sujeito, objeto, outra/o, negra/o, mestiça/o, mulata/o, cabrita/o, escravizada/o e subalterna; e também a divisão do livro em quatorze capítulos.

A autora debate a acessibilidade e a “dimensão política” da língua, e como a língua portuguesa traz marcas de suas heranças coloniais e patriarcais, e argumenta que, ao naturalizar o sujeito como sendo o masculino, esta língua exclui outros sujeitos “sem permitir variações no gênero feminino – a sujeita – ou nos vários gêneros LGBTTQIA+ – xs sujeitxs – que seriam identificados como erros ortográficos” (KILOMBA, 2019, p. 15). Ela problematiza “o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, escrita ou falada” e também como o “termo object vem do discurso pós-colonial, sendo também usado nos discursos feministas e queer para expor a objetificação dessas identidades numa relação de poder” (KILOMBA, 2019, p. 15).

Na introdução, que a autora intitula “tornando-se sujeito”, ela mostra como foi imposto o silêncio aos sujeitos/as subalternizados/as, utilizando-se do que ensina bell hooks: “escrever esse livro foi, de fato, uma forma de transformar, pois aqui eu não sou a ‘outra’, mas sim eu própria” (2009, p. 27).

É a partir desta e outras afirmações que percebo a proximidade dos escritos de Grada Kilomba com uma forma narrativa autobiográfica, que “[…] permite uma pluralização de vozes no cenário de negociação política e artística, já que figuras marginalizadas e antigamente silenciadas passam a exigir seu espaço na arena de representação estética” (MIOTTO, p. 185). Se as biografias ou autobiografias podem ser lacunares, em relação ao seu uso como fonte, há o debate sobre a “crença da autenticidade de um discurso vindo diretamente do interessado” pois há uma relação direta entre a “identidade do autor, do narrador e do personagem” (PEREIRA, 2000, p. 123). Autores como Foucault, ao trazerem a questão da subjetividade à tona, nos permitem pensar as biografias e autobiografias como uma forma de escrita de si, em que há a intenção de captar “[…] uma vida em sua totalidade e em sua gênese. Está presente, ainda, a declaração de intenções: o pacto autobiográfico é necessário, embora não suficiente.” (PEREIRA, 2000, p. 123).

Kilomba, apoiada em bell hooks, nos aponta como é importante o ato da escrita para esse tornar-se sujeito e definir sua própria realidade. “Essa passagem de objeto a sujeito é que marca a escrita como um ato político” (KILOMBA, 2019, p. 28) e frisa que “[…] escrever é um ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/escritor validada/o e legitimada/o” (KILOMBA, 2019, p. 28).

Falando em seu próprio nome, Grada Kilomba, ao tratar de episódios de racismo cotidiano, afirma que “Memórias de plantação examina a atemporalidade do racismo cotidiano”, pois esta é “uma questão relativa [tanto] ao passado quanto ao presente” (2019, p. 29), ou seja, os episódios de racismo, assim como o colonialismo, provocam nas mentes e corpos das pessoas negras uma ferida que não sara, e “que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra”.

O primeiro capítulo do livro apresenta uma história traumática que remete às memórias de infância da autora. “A máscara que Anastácia era obrigada a usar” que era sobretudo “uma máscara de silenciamento” (KILOMBA, 2019, p. 33), o ato de tampar a boca relacionando a posse e o silenciamento imposto às pessoas negras escravizadas, demonstrando relações desses episódios com as opressões, preconceitos relacionados às pessoas negras na atualidade. Em “Quem pode falar” a autora traz todo o debate sobre a descolonização do conhecimento. Dialogando com Gayatri C. Spivak e respondendo à pergunta do célebre título do livro da autora indiana, “Pode a subalterna falar?”, Kilomba responde à provocação: “[…] sua voz ainda não seria escutada ou compreendida pelos que estão no poder. Nesse sentido, a subalterna não pode, de fato, falar. Ela está sempre confinada à posição de marginalidade e silêncio que o pós-colonialismo prescreve” (KILOMBA, 2019, p. 47). O que a autora pretende dizer é que está presente “uma dificuldade de falar dentro do regime repressivo do colonialismo e do racismo” KILOMBA, 2019, (p. 47). E, nessa esteira, traz a problematização de que “[…] grupos subalternos são menos humanos do que seus opressores e, são, por isso, menos capazes de falar em seu próprio nome” (KILOMBA, 2019, p. 48), presente no debate colonial para justificar atrocidades, violências e mortes. A autora se ancora em pensadores negros como Frantz Fanon, e tantos outros, para afirmar que os colonizadores fizeram questão de ocultar que os/as colonizados/as “não tem sido nem vítimas passivas nem tampouco cúmplices voluntárias/os da dominação” (KILOMBA, 2019, p. 49). Isso provoca uma virada epistêmica e produz efeitos diretos no aprender e no ensinar história, mas também nas subjetividades das pessoas.

Ao trazer o debate para a academia, Grada Kilomba mostra como o conhecer e o desconhecer são efeitos de “uma ordem violenta colonial” pois “[…] a academia não é um espaço neutro nem tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e erudição, é também um espaço de violência” (KILOMBA, 2019, p. 51). Quando destaca a noção de “violência” em seu texto, Grada Kilomba quer mostrar como essas violências são também impositoras de saberes e conhecimentos. Denuncia a falta de credibilidade em relação ao seu trabalho como pesquisadora, que é tomado como “não muito científico”, “demasiado subjetivo”, “muito pessoal e emocional”, todas características que se distanciam de um trabalho científico que se pretende neutro e objetivo. A autora discute o eurocentrismo e a epistemologia que “[…] define não apenas o que é conhecimento verdadeiro mas também em quem acreditar e quem confiar” (KILOMBA, 2019, p. 54). Ao enfrentar o que ela chama de “mito da objetividade” (KILOMBA, 2019, p. 52) e “mito de neutralidade” (KILOMBA, 2019, p. 55), aponta para as dificuldades enfrentadas pelas autoras/es negras/os por estarem fora das estruturas acadêmicas e diante de um conhecimento que é colonizado, e que faz com que na academia estejamos diante daquilo que não é “[…] uma verdade objetiva científica, mas sim o resultado de relações desiguais de poder de ‘raça” (KILOMBA, 2019, p. 53). Debate “os temas, paradigmas e metodologias da academia tradicional”, mostrando que as pessoas negras/os enfrentam dificuldades em relação aos questionamentos direcionados à produção do conhecimento válido, e se pergunta “[…] como eu, uma mulher negra, posso produzir conhecimento, em uma arena que constrói, de modo sistemático os discursos de intelectuais negras/os como menos válidos” (KILOMBA, 2019, p. 54). Kilomba compara a irracionalização do pensamento das pessoas negras com o mesmo processo que sofre o pensamento feminista: “[…] os homens tentam irracionalizar o pensamento das mulheres, como se as interpretações feministas não fossem nada mais do que a fabricação da realidade, da ilusão, talvez até uma ilusão feminina” (KILOMBA, 2019, p. 55), escancarando as hierarquias na produção do conhecimento.

Ao se perceber em uma posição marginal na produção do conhecimento, postula: “[…] uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todos nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma história e de uma realidade específicas, não há discursos neutros” (p. 58). Ao afirmar “escrevo da periferia, não do centro”, mostra como a produção do conhecimento marginal traz à tona as realidades vividas, experienciadas, o que nos dizem também as intelectuais negras brasileiras, como Sueli Carneiro (2011), Cláudia Pons Cardoso (2014), Ângela Figueiredo (2020), Ana Maria Veiga (2020), entre outras.

Grada Kilomba mostra todas as dificuldades e os obstáculos experienciados como estudante negra estrangeira, antes mesmo de apresentar sua candidatura, como foi questionada se tinha certeza que era aquilo que queria, sendo inclusive indicada a fazer sua tese na sua própria casa, demonstrando que algumas vezes foi dito a ela que o espaço acadêmico não era o seu lugar. “Descolonizando o conhecimento”, a autora se apoia em autoras africanas, asiáticas e afrodiaspóricas, como Felly Nkweto Simmonds e Gayatri Spivak, quando afirma que “[…] o mundo como habito como acadêmica é um mundo branco”, apresentando sua trajetória como aluna e pesquisadora negra, que por muitas vezes foi a única em diferentes espaços. “[…] não posso ignorar quão difícil é para nossos corpos escaparem às construções racistas sobre eles, dentro da academia” (KILOMBA, 2019, p. 65).

Ao discutir sobre a produção do conhecimento entre “a margem e o centro”, assim como bell hooks, que trata como é ser da periferia e estar ocupando lugares centrais, como a produção do conhecimento, Grada Kilomba fala da margem “como um lugar da criatividade”, mas que é preciso não “romantizar a opressão”, pois, tal como afirma bell hooks, “a margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência”, e estar na academia não como objeto de pesquisa mas sim como sujeito, é estar constantemente na resistência dentro desse espaço.

No terceiro capítulo do livro, “Definindo o racismo”, a autora aponta como este é “uma realidade violenta” pois o colonialismo, além da escravização, definiu locais para as pessoas racializadas na sociedade europeia, e o racismo “como uma ‘coisa’ externa, uma ‘coisa’ do passado algo localizado nas margens e não no centro da política europeia” (2019, p. 71). Kilomba mostra como a maioria das pesquisas sobre racismo na Europa assumem uma “macroperspectiva” (KILOMBA, 2019, p. 71), sem contudo dar atenção para as pessoas que são vítimas, trazendo uma metáfora: a “bomba relógio denota a catástrofe emergente que as/os imigrantes parecem representar a nação” (KILOMBA, 2019, p. 73). Mais especificamente, a autora traz “experiências subjetivas de mulheres negras com o racismo” (KILOMBA, 2019, p. 73), mostrando como o racismo estrutural institucional e o racismo cotidiano impactam diferentemente as vidas das mulheres. Afirma, ainda, que seu estudo “[…] busca entender, reconstruir e recuperar experiências de mulheres negras com o racismo em uma sociedade branca patriarcal, levando em consideração as construções de gênero e o impacto do gênero nas formas e nas experiências de racismo” (KILOMBA, 2019, p. 81).

Para isso traz, além de seu próprio relato, os relatos de seis mulheres negras, apresentando uma pesquisa em que a “subjetividade consciente” conta muito, e afirma que: “[…] aceito sem críticas todas as declarações das/os entrevistadas/os mas que eu respeito totalmente seus relatos acerca do racismo e mostro interesse genuíno em eventos ordinários da vida cotidiana” (KILOMBA, 2019, p. 83), no intuito de buscar praticas de racismo cotidiano, infelizmente também presentes na vida acadêmica.

Do ponto de vista metodológico, traz explícitas tanto sua subjetividade de autora, através de sua narrativa, mas também as narrativas de suas entrevistadas, marcadas por experiências racializadas de percursos acadêmicos na Alemanha. Ao apresentar essa metodologia de pesquisa, mostra que realizou entrevistas “não diretivas baseadas em narrativas biográficas” (KILOMBA, 2019, p. 85) com três mulheres afro-alemãs e três de descendência africana que vivem na Alemanha.

Uma narrativa traumática da autora aparece no capítulo quatro, intitulado “Racismo Genderizado”, em que narra a experiência de ir ao médico, e ao final da consulta ter sido convidada pelo médico para cozinhar, limpar e lavar na casa de sua família, durante as férias de verão no litoral de Portugal. A autora interpreta o convite, dirigido a uma menina negra, como uma prática racista que mostra como raça e gênero estão entrelaçados. “Tal fantasia colonial poderia ocorrer no consultório de uma/um medica/o negra/o?” (KILOMBA, 2019, p. 95); conclui que “muitas, se não a maioria, das experiências pessoais com o racismo, são formas de ‘racismo de gênero’” (KILOMBA, 2019, p. 96).

Kilomba também faz a crítica em relação aos autores e publicações que debatem o racismo, os quais não trazem as especificidades das mulheres, e por outro lado, o debate feminista ocidental não trazia as especificidades das negras, tornando as mesmas invisíveis. Apoiando-se em Heide Sabia Mirza, afirma que “as mulheres negras habitam um espaço vazio, um espaço que se sobrepõe às margens da ‘raça’ e do gênero, o chamado “terceiro espaço” (KILOMBA, 2019, p. 97). Conceitua como vácuo ou apagamento o processo que sofrem as mulheres negras aos serem invisibilizadas, tanto em relação ao debate de raça como de gênero – um duplo ou triplo fardo ao qual estão submetidas as mulheres negras –, chamando atenção para o racismo, o sexismo e a lesbofobia, aos quais são submetidas por opressões cumulativas as mulheres marcadas por sua raça, etnia, sexualidades, entre outros fatores. A autora afirma que essas opressões se entrecruzam e, portanto, faz uso da expressão “racismo genderizado” (ESSED, 1991, p. 30) para se referir à opressão racial sofrida por mulheres negras como estruturada por percepções racistas e papéis de gênero (KILOMBA, 2019, p. 99). Por isso, a autora é bastante enfática em afirmar que existe, ao não considerar as mulheres negras também como mulheres, uma “invisibilização e o silenciamento das mulheres negras dentro do projeto feminista global” (KILOMBA, 2019, p. 100).

A crítica da pesquisadora negra europeia (porém do “sul” europeu) faz coro com as denúncias feitas por feministas estadunidenses e latino-americanas, como Angela Davis, Julieta Paredes e Lélia Gonzalez. Grada Kilomba denuncia a ideia de uma “sororidade universal” como falsa, criticando a ideia de um patriarcado universal que oprime a todas da mesma forma, pois seriam as “mulheres como um grupo coletivo genderizado e oprimido em uma sociedade patriarcal” (KILOMBA, 2019, p. 100) oprimidas da mesma forma? Faz uma crítica bastante contundente às feministas ocidentais, pois, para ela, “há uma resistência no contexto dos feminismos ocidentais em aceitar e teorizar o racismo como uma dimensão central e crucial na experiência das mulheres”; segundo a autora, “o gênero tornou-se assim o único foco de suas teorias” (KILOMBA, 2019, p. 103), e se apoia em autoras como bell hooks e Patrícia Hill Collins para questionar o patriarcado absoluto, chamando atenção para um patriarcado racial, enfatizando a importância da raça nas relações de gênero (KILOMBA, 2019, p. 105).

No capítulo “Descolonizando mulheres negras”, Kilomba se apropria do debate de Frantz Fanon para apresentar os efeitos do psicológico no colonialismo, entretanto afirma que o autor não trouxe as especificidades das mulheres no contexto do racismo, contribuindo para a invisibilidade e o apagamento das mulheres negras.

No quinto capítulo do livro o mote são as “políticas espaciais”, que consideram o fato de as mulheres negras, na Alemanha, serem racializadas, o que faz com que não sejam reconhecidas como alemãs, sempre sendo negado a elas esse lugar na nação. Já no capítulo “políticas do cabelo” traz um debate importante para as mulheres negras, que é a questão do cabelo como definidor de identidades e consciência política ressignificando aquilo que por muito tempo foi considerado como característica de inferioridade, exotismo e não civilização para as mulheres negras, o que produziu traumas e constrangimentos por colocarem-nas fora de um padrão de beleza, por serem consideradas como corpos a serem domesticados e controlados.

No capítulo “políticas sexuais” a autora vai narrar episódios de violências contra negros e práticas de racismo cotidiano, que são naturalizadas como possíveis ao ser contadas em forma de “piadas”. Neste capítulo, a autora problematiza o racismo como um fenômeno social, afirmando que não se trata de uma experiência individual, não devendo ser considerado “decorrentes de sua própria sensibilidade e excessiva e, portanto, são de sua própria responsabilidade” (KILOMBA, 2019, p. 138). Desta forma, não é a mulher negra quem deve assumir o sentimento de vergonha e culpa pela piada racista do companheiro, de acordo com o exemplo que a autora explora, mas é o agressor quem deve ser responsabilizado.

Outra questão trazida pela autora, tal qual problematizou Lélia Gonzalez (1984), é o fato de crianças brancas terem sido nutridas por mulheres negras durante o colonialismo, tendo seus “corpos usados como mamadouros, nos quais as crianças brancas sugavam o leite. Existem imagens muito imponentes de negritude e maternidade” (KILOMBA, 2019, p. 141). Aborda ainda práticas racistas que reforçam e incitam o medo em relação às pessoas negras, que caracterizam os homens negros como violentos, as mulheres negras como possíveis autoras de roubos de crianças, e os homens negros de mulheres brancas.

Em “políticas da pele”, problematiza o não reconhecimento pelos outros como mulheres negras, como há um apagamento e negação em relação à identificação da raça, tornando invisível esta questão. Já no capítulo “a palavra e o trauma”, a autora problematiza a linguagem, mostrando que é através do discurso que pessoas negras são coladas em situação de inferioridade, a partir do colonialismo e da escravização. Kilomba aponta para a “dinâmica de orgulho-vergonha nesse relacionamento colonial” (KILOMBA, 2019, p. 157), mostrando como é no discurso que expressões de inferioridade se transformam em práticas racistas, resultando em ofensas e traumas para as pessoas negras.

De repente o colonialismo é vivenciado como real – somos capazes de senti-lo! Esse imediatismo, no qual o passado se torna presente e o presente passado, é outra característica do trauma clássico. Experiencia-se o presente como se estivesse no passado. Por um lado, cenas coloniais (o passado) são reencenadas através do racismo cotidiano (o presente), e por outro lado o racismo cotidiano (o presente) remonta cenas do colonialismo (o passado). A ferida do presente ainda é ferida do passado e vice-versa; o passado e o presente entrelaçam-se como resultado. (KILOMBA, 2019, p. 158)

Problematiza as experiências de racismo vivenciados no corpo, principalmente a partir do relato de uma de suas colaboradoras. Para ela, existe uma espécie de segregação racial nas cidades, o que caracteriza como resultado de um suposto medo do que ela chama de “contágio racial” (KILOMBA, 2019, p. 167). Mostra como as pessoas negras em espaços não seus, ou destinados aos brancos, vivenciam um tipo de isolamento, pois carregam consigo seus corpos, sua raça e sua ancestralidade. Outra questão apontada é o desconhecimento em relação à origem de seus ancestrais. Ao serem perguntadas as mulheres negras sobre suas origens, muitas não sabem informar, pois um dos resultados da diáspora africana foi este apagamento e, portanto, “não ter o direito de saber era uma parte intrínseca das políticas de escravização” (KILOMBA, 2019, p. 179).

No capítulo doze, “suicídio”, traz novamente o relato de sua colaboradora para afirmar que esta atribui o suicídio da mãe ao racismo e ao isolamento social, já que trabalhava e vivia entre pessoas brancas, sem um círculo de amizades. Além de sua principal colaboradora, Kilomba mostra que outras mulheres negras narraram histórias que “ligam o suicídio ao impacto do racismo e do isolamento” (KILOMBA, 2019, p. 188). “O suicídio pode emergir como ato de tornar-se sujeito” (KILOMBA, 2019, p. 189), diante de situações em que a/o sujeita/o negra/o não concebe viver num ambiente de isolamento, naquilo que a autora conceitua como “um interesse em impedir que as/os escravizadas/os africanas/os se tornem sujeitos” (KILOMBA, 2019, p. 189).

Em “cura e transformação” a autora discute a presença de objetos coloniais, como bonecas negras nas varandas nas casas do sul dos Estados Unidos, que surgem após a abolição da escravização, os quais permanecem no imaginário das pessoas e marcam uma representação racista e inferiorizada para as pessoas negras. Kilomba mostra, utilizando os relatos de uma das mulheres negras com quem dialoga, que, mesmo sabendo “que a terminologia colonial era errada”, ela precisou “aprender a se definir politicamente negra” (KILOMBA, 2019, p. 202), principalmente pelo fato de ter sido criada por uma família adotiva alemã. A autora discute, então, os efeitos do tráfico negreiro, afirmando que a “África é o único continente cuja população foi negociada, desmembrada e escravizada, coletivamente segregada da sociedade e privada de seus direitos, tudo para o benefício de comunidade europeias” (KILOMBA, 2019, p. 206), apresentando os efeitos subjetivos das experiências de ruptura resultado deste período histórico.

No último capítulo intitulado “descolonizando o eu” retoma o início e o título do livro, usando “a metáfora da plantação como símbolo de um ‘passado’ traumático que é reencenado através do racismo cotidiano” (KILOMBA, 2019, p. 213). A rememorização do trauma colonial, a autora traz a ideia de memória, esquecimento e trauma; assim como o filósofo Paul Ricoeur (2008) faz com a situação da memória traumática da guerra na Europa, a autora problematiza o trauma do colonialismo. Afirma que “a ideia de “esquecer” o passado torna-se, de fato, inatingível, pois, cotidiana e abruptamente, como um choque alarmante, ficamos presas/os a cenas que evocam o passado, mas que, na verdade, são parte de um presente irracional. Para Kilomba, essa “configuração entre passado e presente é capaz de retratar a irracionalidade do racismo cotidiano” (KILOMBA, 2019, p. 213), um trauma ainda presente, sendo que a tríade “escravização, colonialismo e o racismo cotidiano contém o trauma de um evento de vida intenso e violento” (KILOMBA, 2019, p. 214). A autora conceitua o que ela entende como “traumas individuais e familiares dentro da cultura branca dominante mas também como trauma histórico coletivo da escravização e do colonialismo reencenado e restabelecido no racismo cotidiano” (KILOMBA, 2019, p. 215), diferenciando as ideias de choque violento, separação e fragmentação e de atemporalidade.

A ideia e a conceituação de descolonização como o “desfazer do colonialismo” e a descolonização como ligada com o racismo cotidiano finaliza o debate do livro, o qual ela conclui mostrando “uma sequencia de mecanismo de defesa do ego que o sujeito negro atravessa para se conscientizar de sua negritude e de sua realidade vivida com o racismo cotidiano” (KILOMBA, 2019, p. 235) o que ela aponta que ficou óbvio através dos relatos de duas de suas biografadas. Para Grada Kilomba existem “cinco mecanismos diferentes de defesa do ego: negação/ frustração/ambivalência/identificação/descolonização” (KILOMBA, 2019, p. 235), sendo que finaliza mostrando como “todo o processo alcança um estado de descolonização, isto é, internamente não se existe mais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu.” (KILOMBA, 2019, p. 238). A partir deste processo “somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade de nossa própria realidade. Assim, regresso ao início desse livro: tornamo-nos sujeito” (KILOMBA, 2019, p. 238).

O debate plural e racializado trazido por Grada Kilomba, marcado por questões subjetivas e partir da sua autobiografia, mas também de biografias de mulheres negras, dialoga com a efervescência do campo dos estudos de gênero, raça e etnia no Brasil, marcadamente influenciada pelos estudos feministas negros. O livro traz contribuições importantes para as/os pesquisadoras/es que se propõem a aprofundar seus estudos sobre racismo na contemporaneidade, sem deixar de considerar que as marcas de gênero e sexualidade, não passam incólumes às praticas racistas.

Assim, Memórias de Plantação, que talvez merecesse para o Brasil a adaptação “Memórias da Plantation”, pois assim entendemos o sistema monocultor de exploração, através de uma escrita primorosa e tocante, traz narrativas sensíveis de mulheres marcadas por sua raça e sexualidade, nos alertando para a importância de estarmos atentas/os às marcas do colonialismo e o desfazer deste, pois se trata de uma ferida que “dói sempre, por vezes infecta, e por vezes sangra”.

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Claudia Regina Nichnig – Doutoranda no Programa de Pós Graduação em História, na Universidade do Estado de Santa Catarina, sob a orientação da Profa. Dra Silvia Maria Favero Arend. É doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2013), na área de Estudos de Gênero. Pós-doutora em História, pela UFSC e pós-doutora em Antropologia Social no CNRS, EHESS, Universidade Jean Jaures, em Toulouse, França. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003), graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (1999). Atua principalmente nos seguintes temas: feminismos no Brasil; família no Brasil contemporâneo; gênero e direito, conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo e homoparentalidades no Brasil e na França, decolonialidade, violências e mulheres indígenas. E-mail: [email protected].

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