Vozes negras na história da educação: racismo/educação e movimento negro no Espírito Santo (1978- 2002) | Gustavo Henrique Araújo Forde

O livro ora resenhado é resultado da pesquisa realizada pelo autor no doutorado em educação na Universidade Federal do Espírito Santo. Selecionada no Edital de projetos da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Espírito Santo. O texto revela uma face ainda muito silenciada da presença da população negra na história da educação brasileira.

As principais questões que movimentaram Forde ao longo da pesquisa foram: de que modo a educação foi constituída como pauta central do movimento negro do Espírito Santo? Quais usos e sentidos foram atribuídos à educação pelo conjunto desse movimento? De que maneira a militância negra movimenta e mobiliza seus espaços-tempos para o combate ao racismo na educação? De que modo a categoria “negro” é concebida na agenda política do movimento negro? Quais implicações o movimento negro tem produzido no contexto da educação escolar? São questões que o autor responde de forma crítica ao longo de cada capítulo do livro. Leia Mais

Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano | Grada Kilomba

A obra “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, fruto da tese de doutoramento da escritora Grada Kilomba, foi publicada inicialmente na versão em inglês no Festival Internacional de Literatura, em Berlim, no final de 2008. A sua versão em português ocorre apenas 10 anos depois, sendo necessária, segundo a autora, a inclusão de uma introdução para abarcar, problematizar e explicar como seriam traduzidas algumas terminologias para a língua portuguesa, marcada por um histórico de herança colonial e patriarcal.

Grada Kilomba inicia sua obra explicando que a adaptação em algumas palavras, ocorre justamente para deixar evidente a tentativa de desmontar uma linguagem tradicionalmente reduzida ao gênero masculino, com origens coloniais dotada de relações de poder, abusos e inferiorização de pessoas afrodescendentes, comumente objetificadas e animalizadas através de uma linguagem racista. Para sinalizar o seu posicionamento, a autora adapta para o português, algumas terminologias recorrendo ao uso do itálico e abreviação em algumas palavras. Na obra, temos, portanto, adaptações de termos como sujeito, objeto, “outra/o”, negra/o, p. (preta/o), mestiça/o, mulata/o, cabrita/o, escravizada/o(escrava/o) e subalterna. (p.15) Leia Mais

Racismo brasileiro: uma história da formação do país | Ynaê Lopes Santos

Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense, onde dirige atualmente o Departamento de História, nos brinda nesse ano de 2022 com um novo livro, Racismo brasileiro. O livro tem a ambição de reinterpretar a história do Brasil, mais precisamente, a formação do Estado nacional brasileiro, tomando o racismo como fio condutor. É, portanto, um livro escrito a contrapelo da história oficial. Leia Mais

Racismo y sexualidad en la Cuba colonia. Intersecciones | Verena Stolcke

Verena Stolke 2 sexualidad en la cuba colonia
Verena Stolke | Canal Santiago Morcillo

Racismo e sexualidade em Cuba sexualidad en la cuba coloniaPeço licença para contar uma anedota. Penso que ela ajudará a compreender a importância do recentemente publicado Racismo y sexualidade em la Cuba colonial. Intersecciones. Também, auxilia a contextualizar as contribuições do livro, seja para os estudos de gênero e sexualidade, seja para os estudos de raça, seja para a história da antropologia. O ano era 2011. Eu havia ingressado no Mestrado em Antropologia Social na Unicamp. Em uma das disciplinas obrigatórias o professor responsável, Omar Ribeiro Thomaz, nos apresentou uma série de obras por ele denominadas de “heterodoxas”. Eram trabalhos que incorporavam a dinâmica social, os conflitos, a transformação sociopolítica e traçavam novos caminhos, métodos e técnicas do fazer antropológico. Em síntese, eram investigações de temas antropológicos considerados clássicos, mas realizados por perspectivas analíticas pouco usuais. Marriage, Class and Colour in Nineteenth Century Cuba. A study of Racial Attitudes of Sexual Values in a Slave Society, de Verena Stolcke, publicado originalmente em 1974 e reeditado em castelhano em 2017, era um destes livros.

Como bem salienta a autora (César; Lassali; Stolcke, 2017), é interessante notar que o título da versão em castelhano é mais apropriado que em inglês. Isso porque afirma ela, dimensiona não apenas a intersecção dos temas abordados, como destaca os elementos centrais que organizavam a sociedade cubana na época colonial. Na disciplina, não lemos o livro todo, fruto de sua pesquisa de doutoramento em Oxford orientada por Pierre Rivière, mas as discussões foram importantes para compreender os motivos pelos quais a “heterodoxia” de Verena nos fornecia uma instigante e inovadora maneira de fazer e praticar pesquisa antropológica. O trabalho de campo por ela realizado se centrou em Arquivos Coloniais de Cuba e Espanha. É verdade, porém, que este não fora desde sempre o objetivo da investigação. Stolcke conta que tinha como objetivo estudar as mudanças na família depois da Revolução de 1959. Chegou a ficar alguns meses em Sierra Maestra – juntamente com sua filha e com seu marido que investigava os efeitos da reforma agrária implementada por Fidel Castro – realizando a pesquisa. Entretanto, politicamente havia um contexto delicado e a presença de europeus passou a não ser bem quista. Leia Mais

Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

A narrativa sobre a circulação e experiências de homens negros livres, letrados, pensadores ativos na vida social no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas de vigência da escravidão é o tema predominante nessa obra, que teve sua origem no trabalho de pesquisa para o doutorado da autora, defendido na Universidade de Campinas em 2014. Agora vertida em livro e compondo o 46º volume da coleção Várias Histórias.

Marcada por um trabalho procedimental baseado na micro-história, a pesquisa é fartamente ancorada em um trabalho diligente e preciso sobre a documentação escolhida, explorada sob a autoridade de quem oportuniza ao leitor superar a visão, dominante em certa historiografia, de que se tratava de homens únicos e/ou isolados em sua geração e sociedade. Oferece-nos a autora desse livro a oportunidade de acessar, em sua proposta narrativa, uma prosopografia de negros brasileiros em atividade política e conexões urbanas, nas últimas décadas do século XIX, marcada pela “politização da raça a partir de escritos de liberdade (p.24). Leia Mais

Histórias(s) do presente. Os mundos que o passado nos deixou | Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro

Logo no início de Histórias(s) do Presente. Os mundos que o passado nos deixou, Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro, ambos investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, deixam claro que “o cepticismo é uma forma sã de viver cívico, não apenas um inabalável princípio científico”. Na introdução do livro, os autores interrogam o passado e procuram pistas para interpretar com rigor a atualidade, observando que “o conhecimento da história não é um elixir contra a maldade ou contra o desvario” (JERÓNIMO; MONTEIRO, 2020, p. 12). A dinâmica, observam, vai mesmo em sentido contrário, já que os usos da história serviram quase sempre “propósitos bem pouco edificantes”. A atestá-lo, está o facto de o conhecimento não impedir o ódio. Dessa forma, induzir dúvidas onde só parece haver certezas, como propõem na Introdução da obra, será já uma tarefa e tanto (JERÓNIMO; MONTEIRO, 2020, p. 12).

O livro agrupa, numa versão atualizada, a série de trabalhos dados à estampa no jornal diário português Público, em 2017 e 2018, (12 ensaios e 12 entrevistas a reputados especialistas internacionais) sobre eventos e processos históricos que marcaram o nosso passado, e sobre os legados que nos deixaram. Neste rol, encontram-se quase todos os assuntos que preenchem a atualidade informativa de há anos a esta parte: a crise dos refugiados, o racismo, a globalização, os nacionalismos, os usos dos véus, as fake news, os abusos da história. Através da exploração das histórias plurais saídas dos campos de concentração, da emergência de um discurso dos direitos humanos ou das políticas do medo e da histeria coletiva organizada, hoje tão presentes, convida-se o leitor a tentar perceber como se chegou até aqui, propondo-lhe um olhar do que aconteceu de forma a poder imaginar-se um futuro melhor. Leia Mais

Negros de prestígio e poder: ascensão social/estilos de vida e racismo na cidade de Salvador | Ivo de Santana

O livro é resultado da tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na Universidade Federal da Bahia, em 2009, com foco nas “trajetórias profissionais de pessoas negras que vivenciaram processos de mobilidade social na administração pública” (p. 35) na capital baiana. A temática não é inédita para Ivo de Santana, já que havia desenvolvido pesquisas nos anos 1990 sobre executivos negros em organizações bancárias, tendo publicado sobre o assunto um artigo na Afro-Ásia, n. 23 (2000). Leia Mais

Crítica da Razão Negra | Achille Mbembe (R)

O camaronês Achille Mbembe obteve seu doutorado na Universidade de Sorbonne em 1989 e posteriormente obteve o DEA em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Atua como professor e pesquisador de História e Política no Instituto Wits para Pesquisa Social e Econômica em Joanesburgo, África do Sul, e no Departamento de Estudos Românticos do Instituto de Humanidades Franklin, Duke University. Ele também ocupou cargos na Columbia University, Berkeley, Yale University, na University of California e Harvard.

As obras de Mbembe publicadas no Brasil são: Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada (2019); Necropolítica (2018); Crítica da Razão Negra (2018) e Políticas da Inimizade (2017). A sua produção acadêmica ganhou destaque no campo de estudos pós-coloniais e contribuiu para a abertura de uma nova discussão epistemológica sobre a categoria negro.

Para além de sistematizar conceitos e categorias interpretativas, os estudos pós-coloniais, mas recentemente a decolonialidade, consiste também numa prática de oposição e intervenção contra os desígnios imperialistas. Esse projeto é aquele que, ao identificar a relação antagônica entre colonizador e colonizado, busca denunciar as diferentes formas de dominação e opressão dos povos.

De acordo com o antropólogo venezuelano Fernando Coronil1, é possível afirmar que o pós-colonialismo como termo apareceu nas discussões sobre a decolonização2 de colônias africanas e asiáticas depois da Segunda Guerra Mundial, tendo sido produzido, principalmente, por intelectuais do Terceiro Mundo que estavam radicados nos departamentos de estudos culturais, de língua inglesa, antropologia das universidades inglesas e posteriormente das universidades norte-americanas.

A professora Larissa Rosevics explica que a maior parte das pesquisas pós-coloniais seguiu a trajetória dos estudos literários e culturais, através da crítica a modernidade eurocentrada, da análise da construção discursiva e representacional do ocidente e do oriente, e das suas consequências para a construção das identidades pós-independência.

A preocupação dos estudos pós-coloniais esteve centrada nas décadas de 1970 e 1980 em entender como o mundo colonizado é construído discursivamente a partir do olhar do colonizador, e como o colonizado se constrói tendo por base o discurso do colonizador.3

Achille Mbembe considera urgente debater a razão negra e retomar o diálogo sobre o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro e da problemática da raça. Para o autor, não há colonialismo que não esteja vinculado a uma forte dose de racismo estrutural. Nesse sentido, interessa compreender que, como consequência direta desta lógica dominante, o negro e a raça viraram sinônimos no imaginário das sociedades europeias.

Seguindo o pensamento do psiquiatra martiniquense Frantz Fanon, Mbembe declara que a ideia de raça começa a ser construída a partir da modernidade burguesa com processos de colonização da América e o tráfico de pessoas escravizadas e arrancadas do continente africano. Essa construção da raça se consolida no século XIX, com a hegemonia do capitalismo, e está vigente com algumas transformações na contemporaneidade.

Fanon compreende que a ideia de raça esteve como uma das formas de legitimação das relações de poder e o racismo como um elemento que tem consequência direta na destruição dos valores culturais do grupo colonizado. O autor acredita na necessidade de destruir o signo do negro e do branco para construir uma sociedade onde a cor da pele, o fenótipo, não constituí marcador social estruturante das relações sociais.4

Entretanto, Mbembe tenta renovar e reinterpretar nossa compreensão de poder e subjetividade na África contemporânea e subverter alguns pressupostos dos estudos pós-coloniais. Ele afirma que a África não é mais a colônia que Frantz Fanon descreveu em sua obra Os condenados da Terra. O objetivo do seu trabalho é construir uma forma mais dinâmica de pensar que leve em consideração as complexidades dos povos africanos que emergiram recentemente da experiência da colonização e da violência.

Seguindo a linha de outros pensadores pós-coloniais, Mbembe dialoga com a o conceito de Négritude, de Aimé Césaire5 e de Movimento Pan-Africano de Marcus Garvey. Contudo, o autor acredita que, assim como Frantz Fanon, esses intelectuais resgatam o negro da subalternidade dando-lhe uma identidade própria, mas continuam a manter a raça enquanto conceito diferenciador.

Debater a razão negra é, portanto, retomar o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro na contemporaneidade. Para o historiador indiano Sanjay Seth, a própria ideia de razão se constituiu, em parte, por meio de uma série de exclusões. Assim como a modernidade europeia se consagrou como o futuro de todos, também as tradições intelectuais não-europeias se tornaram antecipações inferiores da Razão universal. O autor argumenta que:

Pluralizar a razão não significa abandonar o raciocínio; negar que existe um ponto arquimédico, a partir do qual é possível exercer a crítica, não é defender o fim da crítica. Mas é, sim, defender uma reconsideração daquilo que pensamos estar fazendo quando redescrevemos o(s) passado(s) dos povos em termos que lhes são alheios. Se o que existe é não a Razão, e sim tradições de raciocínio; não a História e suas representações na escrita da história, e sim muitos passados re-presentados de muitas formas, então não podemos escrever com qualquer presunção de privilégio epistêmico.6

Em defesa à razão negra, Mbembe demonstra a ligação que existe entre a razão kantiana e os conceitos de modernidade e de colonialidade. O autor declara que a razão universal supõe a existência de um sujeito igual, cuja universalidade é incorporada pela sua humanidade. Encontramos o mesmo projeto de universalização na colonização. Esta apresenta-se, pelo menos no plano retórico, como resultado do Iluminismo. Assim, segundo Mbembe, os negros tinham desenvolvido concepções da sociedade que não contribuíam para o poder dessa invenção da razão universal.

É também a razão que faz com que, desde o início, o discurso sobre a identidade negra esteja cativo de uma tensão, da qual tem ainda dificuldade de libertar-se. Daí o autor questionar se o negro faria parte da identidade humana em geral ou deveria antes, em nome da diferença e da singularidade, insistir na possibilidade de figuras culturais diversas de uma mesma humanidade, figuras culturais de vocação não autossuficiente, e cujo destino final é universal.

A formação das identidades africanas contemporâneas não se faz de todo em referência a um passado vivido como um destino lançado, mas a partir da capacidade de colocar o passado entre parênteses, condição de abertura ao presente e à vida em curso. Ao levar em consideração esse conceito, Mbembe menciona a identidade em devir, que se alimenta simultaneamente de diferenças entre os Negros, tanto do ponto de vista étnico, geográfico, como linguístico, e de tradições herdeiras do encontro com Todo o Mundo.

Dessa maneira, a identidade em devir é um processo dinâmico, contínuo e inacabado. Achille Mbembe refere-se a um “devir-negro do mundo”, em que toda a Humanidade subalterna corre o risco de se tornar negra, e em que as desigualdades em que todo o processo assenta correm o risco de se disseminarem rapidamente. O autor amplia a categoria de negro a uma condição universal a que todos estarão sujeitos pelo fato do neoliberalismo,7 na sequência dos novos modelos de exploração que o caracterizam, olhar para todos enquanto negros, com a consequente ideia de submissão associada.

Essa identidade não é fruto da consciência individual. Ela é uma relação social estruturante que transcende o nível do indivíduo. É construída historicamente e concretamente. A identidade parece construir-se no cruzamento entre este ritual de enraizamento e o ritmo de afastamento, na constante passagem do espacial ao temporal e do imaginário ao órfico. O segundo revela uma prática de fronteira determinante entre as identidades itinerantes, de circulação.

Historicamente, Mbembe menciona que a ligação ao território e ao solo em África sempre dependeu do contexto. Em alguns casos, as entidades políticas tinham como delimitação não as fronteiras, no sentido clássico do termo, mas uma imbricação de espaços múltiplos, constantemente feitos, desfeitos e refeitos tanto pelas guerras e conquistas como devido à mobilidade de bens e pessoas.

Escalas muito complexas permitem estabelecer correspondências produtivas entre as pessoas e as coisas, podendo ser convertidas umas nas outras, como aconteceu durante o tráfico de escravos. Poderíamos dizer que, operando por empurrões, destacamentos e cisões, a territorialidade pré-colonial é uma territorialidade itinerante. Da mesma maneira, esta era uma das modalidades de constituição de identidades.

Tudo começa, para Mbembe, por um ato de identificação: «Eu sou um negro». O ato de identificação constitui a resposta a uma pergunta que se faz: «Quem sou eu, portanto?»; ou que nos é feita: «Quem são vocês?». No segundo caso, trata-se de uma resposta a uma intimidação. Trata-se, em ambos os casos, de revelar a sua identidade, de a tornar pública. Mas revelar a sua identidade é também reconhecer- se, é saber quem se é e dizê-lo ou, melhor, proclamá-lo, ou também dizê-lo a si mesmo. O ato de identificação é igualmente uma afirmação de existência. «Eu sou» significa, desde logo, eu existo.

A própria raça é entendida como um conjunto de propriedades fisiológicas visíveis e de características morais discerníveis em Crítica da Razão Negra. São estas propriedades e características que, pensa-se, distinguem as espécies humanas entre si. As propriedades fisiológicas e as características morais permitem, por outro lado, classificar as espécies dentro de uma hierarquia na qual os efeitos da violência são ao mesmo tempo políticos e culturais. É esta negação de humanidade (ou este estatuto de inferioridade) que obriga o discurso dos Negros a inscrever-se, desde as suas origens, numa tautologia: também somos seres humanos.

Notas

1 CORONIL, Fernando. Elephants in the Americas? Latin American pós-colonial studies and global decolinization. In: MORAÑA, Mabel; DUSSEL, Enrique; JÁUREGUI, Carlos (Eds.). Coloniality at large: latin american and poscolonial debate, p. 396-416. Durhan; London: Duke University Press, 2008.

2 O uso do termo “decolonial” ao invés de “descolonial” é uma indicação de Walter Mignolo para diferenciar os propósitos do Grupo Modernidade/Colonialidade e da luta por descolonização do pós-Guerra Fria, bem como dos estudos pós-coloniais asiáticos. Cf.: MIGNOLO, Walter. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógicas de la colonialidad y poscolonialidad imperial. Tabula Rasa, n.3, 2005, pp.47-72.

3 ROSEVICS, Larissa. Do pós-colonial à decolonialidade. In: CARVALHO, Glauber. ROSEVICS, Larissa (Orgs.). Diálogos internacionais: reflexões críticas do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Perse, 2017.

4 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

5 CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978.

6 SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? História da Historiografia, Ouro Preto, no. 11, abril 2013, p. 173-189.

7 Por neoliberalismo o autor entende como uma fase da história da Humanidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais. O neoliberalismo é a época ao longo da qual o tempo (curto) se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. Tendo o capital atingido o seu ponto de fuga máximo, desencadeou-se um movimento de escalada. O neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual «todos os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem) deter um valor no mercado.

Ana Luiza Rios Martins – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora do curso de Licenciatura em História da Universidade Aberta do Brasil/ Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2627-5144


MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. Resenha de: MARTINS, Ana Luiza Rios. Crítica da razão negra e a introdução ao pensamento decolonial. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.514-518, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça / Reni Eddo-Lodge

Em uma conversa em um grupo de WhatsApp, diante de uma tirinha que ridicularizava a questão da representatividade, uma colega de profissão, negra e mãe de uma filha de três anos, também negra, comentou como a interpretação da tirinha a incomodava, porque era rasa. Recebeu como resposta de um colega de área, professor universitário, que “o incômodo faz parte da vida. É assim mesmo.”

Reni Eddo-Lodge, autora do livro Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, escreve que desde os quatro anos ela entende viver em um mundo de privilégio branco (Eddo-Lodge, 2019, p. 81), ao reconhecer na televisão a divisão entre mocinhos e vilões representados por pessoas brancas x negras. Aparentemente, muitos de nós, brancos e brancas, ainda não nos entendemos privilegiados e esse é o motivo pelo qual a jornalista se viu motivada a escrever esse livro. Estava cansada de ouvir os mesmos argumentos contestando esse tal de privilégio branco vindos de pessoas próximas e decidiu publicar sua resposta em livro para se livrar desse fardo (o que, evidentemente, como a própria afirma, não aconteceu). Gabi de Pretas, que faz a apresentação do livro e que é criadora do canal de YouTube DePretas, recomenda o livro a pessoas brancas que se perguntam sobre seu papel na luta antirracista, àquelas que nunca se perguntaram sobre sua branquitude e a seus colegas negros e negras que já não aguentam mais esses debates.

Diante de uma conversa como a que mencionei no começo deste texto, é compreensível o cansaço que parte de nossos colegas negros, indígenas ou mulheres sentem ao se deparar repetidas vezes com a necessidade de confrontar parentes, amigos e colegas de profissão, em ambientes que deveriam ser seguros, sobre temas como esses, e ainda sair como as “encrenqueiras”, “intolerantes”, “imaturas” ou qualquer versão eufemística que nossos colegas encontram para não usar o já condenado “racismo reverso”. Eddo-Lodge faz o serviço de mostrar que a discussão do privilégio branco é ainda mais urgente. É muito mais simples contestar extremistas e supremacistas brancos, uma vez que seu posicionamento já é muito claro. Mas a insídia do racismo está em justamente passar despercebido pelas nossas relações mais íntimas e cotidianas. Como a própria Eddo-Loge afirma: “Parece haver uma crença entre alguns brancos de que ser acusado de racismo é muito pior do que o próprio racismo” (Eddo-Lodge, 2019, p. 116). E é em espaços como grupos de WhatsApp, festas familiares, ambientes de trabalho em que muitas vezes ele adquire maior perniciosidade psicológica, uma vez que são exigidas classe e elegância aos nossos colegas pretos e pretas ao retorquir seus colegas brancos.

Não encontramos, no livro, referências a teorias ou autorias que construam um arcabouço conceitual, teórico e/ou epistemológico para o racismo. Reni Eddo-Lodge, em linguagem jornalística, direta e sem muitas notas de rodapé, se utiliza principalmente de dados estatísticos, legislação e coberturas jornalísticas referentes à Inglaterra desde a 1ª Guerra Mundial e entrevistas e depoimentos de pessoas brancas e mestiças [1] para provar seu argumento: o da existência de um privilégio branco. Seu raciocínio é apresentado pela generalização de argumentos que ela destrincha capítulo após o outro, e que servem como um material didático para nos educar sobre temas recorrentes em nossas trajetórias como docentes, colegas, parceiros e parceiras: punitivismo e violência policial; cotas, representatividade e tokenismo [2]; racismo e preconceito; queda de estátuas e liberdade de expressão; interseccionalidade; acusações de fragmentação e diversionismo pela própria esquerda. Para ao fim compreendermos que racismo não é algo referente apenas a ações individuais, morais. Racismo é problema estrutural, que organiza todas as nossas relações sociais, cegando a branquitude e permitindo-lhe que chegue ao ponto de responder a uma mãe negra que o incômodo faz parte da vida (“Quando focam em ofensas, ao invés de sua própria cumplicidade em um sistema drasticamente injusto, eles transferem, com sucesso, a responsabilidade de consertar o sistema dos beneficiados por ele para aqueles mais inclinados a perder por causa dele” [Eddo-Lodge, 2019, p. 116-117]). Ironicamente, se há uma coisa para que “Porque não converso mais com pessoas brancas sobre raça” serve é para incomodar. É muito desconfortável, como bem alertou Gabi de Pretas, ler Reni e se perceber como alguém a quem já ocorreram alguns dos argumentos que ela contesta.

A reivindicação não é apenas por igualdade, já que isso presume ainda a manutenção de um sistema que permanece exclusivo, com apenas o revezamento dos indivíduos que ocupam os espaços de poder. A reivindicação de Reni, e de tantas outras, e que incomoda a tantos de nós ao ponto de rechaçá-las, acusando-as de reivindicação de superioridade moral, é de reformulação total do sistema: “O ônus não está em mim para mudar. Ao contrário, está no mundo ao meu redor” (Eddo-Lodge, 2019, p. 155).

Ao final do livro, Eddo-Lodge tem a generosidade de sugerir algumas possibilidades para essa mudança. Que reconstruamos, pois, esse mundo. Nossas crianças não merecem se conformar com a inevitabilidade de seus incômodos.

Notas

1. Esse é o termo utilizado no livro para indicar filhos de casamentos interraciais.

2. No livro, a tradutora Elisa Elwine define tokenismo da seguinte forma: “tokenismo é uma expressão inglesa que se refere à prática de fazer esforço simbólico com o objetivo de ser inclusivo para membros de minorias. Seria uma forma de aparentar igualdade racial ou sexual” (Eddo-Lodge, 2019, p. 72).

Aryana Costa – Professora do Departamento de História / UERN – campus Mossoró, trabalha com ensino de História e historiografia.


EDDO-LODGE, Reni. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 214 p. Tradução de Elisa Elwine. Resenha de: COSTA, Ariana. “Mas nem todo branco…”. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original. [IF]

 

Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (S-RH)

KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: NICHNIG, Claudia Regina. “Escrevo da periferia, não do centro”: mulheres negras e experiências de racismo cotidiano”. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v.25, n.43, p.398-405, jul./dez. 2020.

O livro de Grada Kilomba é resultado de sua tese de doutorado defendida e publicada na Alemanha em 2008 somente dez anos mais tarde publicado no Brasil, em 2019. A pesquisadora, escritora e artista, nascida em Lisboa, na apresentação da edição de seu livro ao público brasileiro, aponta que sua experiência de estudante negra em Lisboa-Portugal, mas também em Berlim-Alemanha, fez com que se sentisse em um não lugar destinado à pesquisadora negra, jamais reconhecida nesta posição, muitas vezes confundida com a pessoa da limpeza. Ao discutir a história colonial destes dois países, Grada Kilomba vai mostrar como o racismo se faz presente nas práticas diárias e que, mesmo que estes países não tenham mais colônias na atualidade, a herança deste período ainda persiste nas marcas coloniais. Foi na Alemanha que encontrou “uma forte corrente de intelectuais negras que haviam transformado radicalmente o pensamento e o vocabulário contemporâneo global durante várias décadas” (KILOMBA, 2019, p. 12) e, portanto, a sua escrita dialoga com as mais importantes autoras e autores da diáspora africana e do feminismo negro, como Gayatri Spivak, Patricia Hill Colins, bell hooks, Philomena Essed, Frantz Fanon, Stuart Hall, Paul Gilroy, destacando autoras que abordam as questões de gênero entrelaçadas com o debate de raça. Leia Mais

Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)

KILOMBA Grada Foto Divulgacao sexualidad en la cuba colonia

Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)

Grada Kilomba. Foto: Divulgação.

KILOMBA G Memorias da plantacao sexualidad en la cuba coloniaKILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira.1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: ARAUJO, Débora Oyayomi. Artefilosofia, Ouro Preto, v.15, n.28, abr., 2020.

Ao ler Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, a primeira sensação é de um lago calmo, de águas paradas que, quando tocado, provoca ondulações que reverberam em camadas. Quando as fraturas e os traumas produzidos ao longo de séculos são ratificados no contexto político atual por meio de uma política genocida de corpos e identidades diaspóricas, ler Grada Kilomba é uma convocação a revisarmos nossa existência. Por isso, ainda que muito depois de sua publicação original, esse livro chega ao Brasil no tempo certo.

A versão em português de sua tese de doutorado, tese esta laureada, em 2008, com a “mais alta (e rara) distinção acadêmica” (p. 12), nos diz muito mais do que havia sido registrado em sua versão original, escrita em inglês, pois reitera o quanto nosso idioma oficial é colonial e colonizado. Na “Carta da autora à edição brasileira”, coube à Grada Kilomba criar um glossário de termos coloniais, racistas e patriarcais para ressaltar terminologias produtora s do trauma racial, nos lembrando de que “cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (p. 14). Assim, enquanto algumas palavras são registradas em itálico devido à problemática “das relações de poder e de violência” (p. 15), outras são simplesmente abreviadas e grafadas em letra minúscula para que, no processo almejado por seu estudo, que envolve a “desmontagem da língua colonial” (p. 18), não rememoremos termos que expressam traumas. Essa primeira característica é imprescindível para o exercício proposto pela autora de produzir oposição absoluta ao “que o projeto colonial predeterminou” (p. 28). Por isso, neste texto, eu também utilizarei os mesmos formatos e, tal qual ela, produzirei o texto em primeira pessoa. Escrever em primeira pessoa e demarcar sua subjetividade é, sem dúvida, uma convocação de Grada Kilomba a todas as pessoas negras que lêem seu livro. Mas vai além, pois propõe o despojamento das armaduras coloniais e acadêmicas que nos aprisionam em modelos rijos de produção científica. Isso se evidencia não somente pela introdução (denominada “Tornando-se sujeito”), mas por todo o sumário, cuja proposta é de identificar, tratar e curar o trauma vivenciado pelo contato da pessoa negra com a branca, no processo de colonização de corpos e mentes da segunda sobre a primeira. Por isso, nada mais propício do que Memórias da plantação como título da obra, dada a capacidade de captura e dissecação do trauma colonial produzido por meio da Plantation. O seu subtítulo compromete-se com a contemporaneidade e a atemporalidade do trauma: o racismo cotidiano que “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘ Outra/o ’ subordinado e exótico” (p. 30).

Seu estudo tem como objetivo exprimir a realidade psicológica do racismo cotidiano manifestado, na forma de episódios, por relatos subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas, de duas mulheres negras, sendo uma afro-alemã e outra afro-estadunidense que vive na Ale manha. Nesse processo, uma segunda marcante característica é o comprometimento da obra com uma abordagem interpretativa fenomenológica, envolvendo duas importantes dimensões: a escrita em primeira pessoa, entendendo que “[e]u sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como ato político. […] enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade da minha própria história.” (p. 28); o investimento na mais descrição do fenômeno em si e menos na abstração dos relatos subjetivos de mulheres negras, sob pena de esse processo “facilmente silenciar suas vozes no intuito de objetivá-las sob terminologias universais” (p. 89). Assim, seu estudo responde a um “desejo duplo: o de se opor àquele lugar de ‘Outridade’ e o de inventar a nós mesmos de (modo) novo” (p. 28).

Dividido em quatorze capítulos, Grada Kilomba perfaz as estratégias raciais operadas pela Plantation e atualizadas nas ações cotidianas contemporâneas. O silêncio é metaforizado, no primeiro capítulo, pela máscara, representante do colonialismo. De outro lado, as metáforas do mito da objetividade e da neutralidade acadêmica são exploradas no segundo capítulo (intitulado “Quem pode falar? Falando do Centro, Descolonizando o Conhecimento”), atuando, ao lado do primeiro, como um exercício de dissecação do racismo como discurso, e explorando e denunciando os processos de descrédito intelectual e acadêmico produzido sobre os corpos e identidades postas à margem. Com isso, a primeira cura ao trauma proposta pela autora envolve a necessidade de descolonização do conhecimento, reconhecendo a potência da posição à margem: “Falar sobre margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão. […] No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas o simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência […]” (p. 69). Isso envolve, pelo próprio exercício realizado pela autora, o reconhecimento de outras metodologias investigativas e de outros olhares interpretativos. O modo de produzir a pesquisa é impactado diretamente, pois realça as maneiras com o nos apresentamos ao mundo e como somos afetados pelo mundo à nossa volta. Assim, no texto de Grada Kilomba, somos, com nossa subjetividade e experiência individual com o racismo, convocadas/os a nos apresentar ao estudo, como interlocutoras/es ativas/os, críticas/os e conscientes do nosso papel social. É nessa perspectiva que sou impelida a assumir minha posição neste texto resenhístico a partir da minha trajetória pessoal como mulher negra e vivenciadora de experiências cotidianas com o racismo. Não seria possível de outro modo produzir qualquer síntese crítica da obra em questão.

O capítulo 3, “Dizendo o indizível – Definindo o racismo”, produz uma revisão teórica condizente com a proposta de descolonização do conhecimento: ao invés de recuperar a etimologia do termo e sua trajetória ao longo dos séculos, o racismo é apresentado por meio de autoras/es que o interpretam no plano cotidiano das relações sociais. Philomena Essed e Paul Mecheril são os nomes de destaque responsáveis por expor as próprias teor ias raciais e o protagonismo branco em suas definições: “Nós somos, por assim dizer, fixadas/os e medidas/os a partir do exterior, por interesses específicos que satisfaçam os critérios políticos do sujeito branco […]” (p. 73). Assim, a autora acena uma problemática pouco explorada quando se discute o mito da neutralidade: a de que as formulações, teorizações e epistemologias sobre o racismo podem estar sendo confortavelmente produzidas por intelectuais brancas/os que não necessariamente revisam sua própria condição de branquitude. Por isso o capítulo ressalta a necessidade de a pessoa negra tornar-se sujeito falante, ou, nas palavras de Mecheril (p. 74), a “perspectiva do sujeito”, em nível político, social e individual. Ao fazer isso, a autora encaminha-se para a definição do racismo por meio de três características simultâneas por ele assumidas: a construção de/da diferença; a ligação com valores hierárquicos intrínsecos; e o poder de base histórica, política, social e econômica. E, ao expor tais características, a autora ressalta uma afirmação amplamente difundida por nós, estudiosas/os negras/as das relações raciais, em especial no contexto brasileiro: “É a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo. E, nesse sentido, o racismo é a suprema cia branca. Outros grupos raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem o poder” (p. 76). É imprescindível, para nós, que intelectuais negras/os e intelectuais brancas/os engajadas/os assumam tal perspectiva pois, ainda que seja um aspecto simples e óbvio na interpretação das relações raciais, a compreensão de que poder e racismo são intrinsecamente ligados é uma operação complexa para muitos que resistem em manter sua perspectiva colonial e colonizadora de enxergar o mundo.

Contudo, um aspecto pouco explorado pela autora são as facetas desse racismo: ao passo que ela se dedica a explorar com relativo detalhamento alguns aspectos do cotidiano dos discursos racistas, ao procurar definir racismo estrutural e institucional, Grada Kilomba restringe-se a apresentá-los de modo sintético e sinonímicos, em certa medida. Já a descrição e conceituação do “racismo cotidiano”, uma categoria proposta pela autora – e que, como já destacado desde o início deste texto, representa sua base analítica –, há um maior detalhamento, com destaque para as formas em que o sujeito negro é percebido e que o relegam à condição de “outro”: infantilização, primitivização, incivilização, animalização e erotização. Nesse sentido, a autora conclui que é nos contextos cotidianos que a pessoa negra se depara com tais formas e, por isso, não se trata de experiências pontuais e sim corriqueiras que se repetem “incessantemente ao longo da biografia de alguém” (p. 80).

Nesse capítulo são apresentados os pressupostos metodológicos da pesquisa a partir da perspectiva da “pesquisa centrada em sujeitos ”, tomando como referencial analítico a teoria psicanalítica e pós-colonial a partir de Frantz Fanon. Nessa dimensão, a pesquisa emerge no exame das “experiências, autopercepções e negociações de identidade descritas pelo sujeito e pela perspectiva do sujeito ” (p. 81) e do study up, proposta metodológica em que pesquisadoras/es investigam membros do seu próprio grupo social. Tal proposta é mediada por uma “subjetividade consciente”: a compreensão de que ainda que a/o pesquisadora/a – e membro do grupo – não aceite sem críticas todas as declarações da pessoa entrevistada, ela respeita seus relatos acerca do racismo e demonstra “interesse genuíno em eventos ordinários da vida cotidiana” (p. 83). Assim, as relações hierárquicas frequentemente produzidas entre pesquisadoras/es e informantes é diminuída, considerando o compartilhamento de experiências semelhantes com o racismo. Co m o desenho da pesquisa delimitado, o capítulo adentra na descrição dos procedimentos das entrevistas “ não diretivas baseadas em narrativas biográficas ” (p. 85), que envolveram eixos como: percepções de identidade racial e racismo na infância; experiências pessoais e vicárias de racismo na vida cotidiana; percepções de branquitude no imaginário negro ; percepções de beleza feminina negra e questões relacionadas ao cabelo; percepções de feminilidade negra, entre outras. Foram, ao todo, seis mulheres negras participantes: “três afro-alemãs e três mulheres de ascendência africana que vivem na Alemanha: uma ganense, uma afro-brasileira e uma afro-estadunidense” (p. 84), mas ao final apenas duas – Alicia (afro-alemã) e Kathleen (afro-estadunidense) – tiveram suas entrevistas analisadas, devido ao fato, segundo a autora, de que as demais narrativas “não eram tão ricas e diversas quanto as de Alicia e Kathleen” (p. 84). As entrevistas, respondidas em inglês, alemão e português, captaram as mais diversas percepções acerca das memórias e contato com o racismo cotidiano, tema dos capítulos seguintes do livro.

Mas antes das análises, a autora mais uma vez assume a subjetividade como marca da descolonização acadêmica e mental para conectar raça e gênero a partir de uma experiência pessoal vivida: no capítulo 4 “Racismo genderizado – ‘(…) Você gostaria de limpar nossa casa?’ – Conectando ‘raça’ e gênero”, Grada Kilomba explora a necessidade de interpretações entrecruzadas sobre o racismo cotidiano que marca as experiências de mulheres negras, que são racializadas e generificadas. Para tanto, recupera perspectivas de Essed, Fanon, bell hooks, Heidi Safia Mirza e outras para interpretar, analisar e argumentar como operam as correlações entre mulheres negras e homens negros, mulheres brancas e homens brancos na interface de temas como patriarcado, feminismo, sexismo e violência. São expostas contradições do discurso feminista branco, da ideia de sororidade universal, e são evidenciados os limites do homem negro que não é “beneficiado” com o patriarcado. Por outro lado, sua perspectiva também ressalta a condição em que o termo “homem” é utilizado por Fanon tanto para designar “homem negro ” quanto “ser humano”, que acaba por realçar o masculino como condição única de representação da humanidade. Por isso, ressalta a autora, que a “reivindicação de feministas negras não é classificar as estruturas de opressão de tal forma que mulheres negras tenham que escolher entre solidariedade com homens negros ou com mulheres brancas, entre ‘raça’ ou gênero, mas ao contrário, é tornar nossa realidade e experiência visíveis tanto na teoria quanto na história” (p. 108).

Por meio de categorias, trechos das narrativas das entrevistadas foram divididos em capítulos, por temas. No capítulo 5, “Políticas espaciais”, os relatos dimensionam as experiências relacionadas à “Outridade”, ao estrangeirismo e ao estranhamento daquelas mulheres na Alemanha, país onde vivem. Perguntas como “De onde você vem?”, “Como ela fala alemão tão bem?” ou afirmações do tipo “Mas você não pode ser alemã!” são marcadores latentes nos relatos das entrevistadas, refletindo uma espécie de fantasia que domina a realidade acerca da história alemã, ignorando que existem várias histórias sobre uma mesma localidade. Assim, analisa a autora: “racismo não é a falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ – como acredita o senso comum –, mas sim a projeção branca de informações indesejável na/o ‘Outra/o’. Alicia pode explicar eternamente que ela é afro-alemã, contudo, não é sua explicação que importa, mas a adição deliberada de fantasias brancas acerca do que ela deveria ser […]” (p. 117).

O capítulo seguinte, “Políticas do cabelo”, analisa as experiências de violência e opressão que incidem sobre a imagem, autoestima e identidade das mulheres entrevistadas, ressaltando que existe “uma relação entre a consciência racial e a descolonização do corpo negro, bem como entre as ofensas racistas e o controle do corpo negro ” (p. 128). Na tentativa de aliviar as violências sofridas, a adoção de procedimentos de desracialização do “sinal mais significativo de racialização” (entendido, pela autora, como sendo o cabelo) é uma ação latente nas narrativas das entrevistadas. Mas oscilam, em seus discursos, a percepção da invasão de seus corpos por meio do toque, dos olhares de nojo e desprezo e experiências de resistência e consciência política.

“As políticas sexuais” são abordadas no sétimo capítulo da obra e apresentam o cerne da discussão em torno da objetificação e expropriação da humanidade do corpo negro. As histórias, cantigas, mitos e narrativas difundidas desde a infância constroem, para negras/os e brancas/os, uma barreira racial repleta de violência, sadismo e ódio. A autora explora, por meio da noção de “constelação triangular” (forjada a partir do complexo de Édipo em Freud e das ampliações analíticas de Fanon), as situações cotidianas em que o racismo é produzido sem nenhum cerceamento e, pelo contrário, muitas vezes apoiado por outrem: “Por conta de sua função repressiva, a constelação triangular, na qual pessoas negras estão sozinhas e pessoas brancas como um coletivo, permite que o racismo cotidiano seja cometido” (p. 137). Esse processo de triangulação também opera em contextos em que o homem negro é alvo do ódio do homem branco: “Dentro do triângulo do racismo, o sujeito branco ataca ou mata o sujeito negro para abrir espaço para si, pois não pode atacar ou matar o progenitor” (p. 140).

No capítulo 8, intitulado “Políticas da pele”, os relatos das entrevistadas são analisados sob a perspectiva d a deturpação versus identificação racial, que envolvem processos de negação da negritude feita pela pessoa negra ou branca, a depender das relações afetivas estabelecidas entre ambas. É o caso relatado por Alicia, ao ouvir de sua amiga branca que ela não era negra, ou de sua família adotiva, que se referia a ela como mestiça (Mischling), ao passo que as demais pessoas negras eram referidas pejorativamente como N. (Neger). Grada Kilomba interpreta tal processo como um misto entre fobia racial e recompensa: “Isso permite que sentimentos positivos direcionados a Alicia permaneçam intactos, enquanto sentimentos repugnantes e agressivos contra sua negritude são projetados para fora” (p. 147).

Numa categoria maior, intitulada anteriormente em seu texto como “cicatrizes psicológicas impostas pelo racismo cotidiano” (p. 92), a autora engloba os capítulos de 9 a 12. O primeiro deles, “A palavra N. e o trauma”, a dor, aspecto central de sua tese, é retomada a partir de narrativas que envolvem o contato com a violência exotizadora por meio da utilização discursiva de termos racistas. Para tanto, o capítulo inicia com a narrativa de Kathleen que ouviu de uma criança branca: “Que Negerin [Feminino de Neger ] linda! A Negerin parece tão legal. E os olhos lindos que a Negerin tem! E a pele linda que a Negerin tem! Eu também quero ser uma Negerin !”. Ao afirmar que quer ser uma Negerin também, a menina produz um efeito duplo: de reafirmação de sua posição d e sujeito branco – pois Negerin “nunca significa ser chamada/o apenas de negra/o; é ser relacionada/o a todas as outras analogias que definem a função da palavra N. ” (p. 157) – e recolocação da vítima na cena colonial original: “Essa cena revive, assim, um trauma colonial. A mulher negra continua a ser o sujeito vulnerável e exposto, e a menina branca, embora muito jovem, permanece a autoridade satisfeita” (pp. 157-158). O trauma causa dor, demonstrando os efeitos psicossomáticos do racismo por meio da necessidade de transferir a experiência psicológica para o corpo, buscando “uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização)” (p. 161).

“Segregação e contágio racial” é o título do capítulo 10, no qual o medo branco é acionado pela metáfora da luva branca utilizada por pessoas negras forçadamente quando tinham que tocar o mundo branco. Como descreve a autora, as luvas atuavam como uma “membrana, uma fronteira separando fisicamente a mão negra do mundo branco, protegendo pessoas brancas de serem, eventualmente, infectadas pela pele negra ” (p. 168). O efeito nefasto vai, contudo, além, pois as luvas que aliviavam o medo branco da contaminação “ao mesmo tempo, evitavam que negras e negros tocassem os privilégios brancos ” (p. 168). Outra metáfora acionada no capítulo é: “uma pessoa negra tudo bem, é até interessante, duas é uma multidão” (p. 170), expondo a faceta da solidão de pessoas negras em espaços segregados e o quanto suas ações são constantemente vigiadas e avaliadas. Esse tema liga-se diretamente ao capítulo seguinte, “Performando negritude”, em que o sujeito que representa a exceção é exposto e cobrado pois, ao mesmo tempo em que é alvo do medo e do ódio, deve “representar aquelas/es que não estão lá” (p. 173). Por isso, o questionamento e a comprovação da capacidade intelectual é uma marcante nas narrativas das entrevistadas. Ser “três vezes melhor do que qualquer pessoa branca para se tornar igual” (p. 174), faz dela uma pessoa “tríplice” e, assim, a compensação é acionada: “Você é negra, mas…” inteligente. A inteligência existe “desde que seja comparada à branquitude” (p. 177). Outros aspectos explorados no capítulo relacionam-se à recolocação geográfica do estrangeira/o ou da pessoa negra para fora, para a margem, e o racismo explícito, endossado por um processo discurso alienante, pois a pessoa é insultada sem ser alvo direto do insulto, retomando, novamente, as constelações triangulares. Tais contextos são ressaltados mais uma vez pela autora como mostras do racismo cotidiano.

O último capítulo da categoria “cicatrizes psicológicas…” é intitulado “Suicídio”. Sem dúvida é o máximo e último estágio do trauma e o mais eficaz do racismo. É quando o “ sujeito negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da Outridade” (p. 188). Tal capítulo é fruto da recorrência de narrativas das mulheres entrevistadas sobre experiências diretas com o suicídio (seja da mãe, da amiga…) e da necessidade de tratar o trauma. Assim, nos lembra Grada Kilomba que, no contexto da escravização, toda a comunidade negra era punida quando um de seus membros tentava ou cometia suicídio. Isso não explicita apenas o óbvio (o interesse das/os escravizadoras/es em não perder sua propriedade), mas, principalmente, “revela um interesse em impedir que as/os escravizadas/os africanas/os se tornem sujeitos ”. Por isso o suicídio “é, última instância, uma performance de autonomia” (p. 189). Mas não somente esse aspecto é explorado: a autora também analisa como a figura da mulher negra forte e, portanto, sem necessidade de apoio psicológico, é recorrente na trajetória de vítimas de suicídio. Essa imagem é uma resposta à outra figura estereotipada da mulher negra como preguiçosa e negligente em relação às suas filhas e filhos. Portanto, num duplo processo de estereotipia, as “mulheres negras só se encontram na terceira pessoa, quando falam de si mesmas através de descrições de mulheres brancas ” (p. 195).

Por fim, os últimos capítulos são dedicados ao tratamento: correspondem à categoria “estratégias de resistência” (p. 92). “Cura e transformação” intitula o 13º capítulo, e analisa situações vivenciadas por Kathleen (ao enfrentar um contexto de racismo) e Alicia (ao se reconectar consigo mesma). Dois marcadores desse capítulo são, portanto, a desalienação e o reencontro com seu coletivo. O contato com leituras, com suas histórias e com seus iguais emergiram nos discursos das duas mulheres entrevistadas atuando de modo a reparar uma conexão interrompida. É latente, nesse sentido, a narrativa de Alicia sobre o fato de inicialmente não entender e aceitar que pessoas negras desconhecidas a cumprimentassem e depois reconhecer o laço histórico que as une. Ao ser chamada de irmã (sistah) por um jovem negro, sua percepção foi de que “‘Sim, sistah, eu sei o que você passou. Eu também. Mas eu estou aqui… Você não está sozinha.’” (p. 210).

A “reparação traumática” é acionada por Alicia, assim como foi por Kathleen, quando enfrentou sua vizinha que insistia em manter um boneco negro como “enfeite” na varanda de sua casa. Esse processo liga-se diretamente à conclusão do livro, no capítulo “Descolonizando o eu”. Entre outros elementos explorados e retomados pela autora, está a proposição mais significativa para a cura do trauma: ao invés de perguntar à vítima o que ela fez diante do racismo cotidiano (e sempre inesperado), sua proposição é que a pergunta seja: “O que o racismo fez com você?”. “A pergunta é direcionada para o interior […] e não para o exterior”, produzindo um efeito de empoderamento “no qual alguém se torna o sujeito falante, falando de sua própria realidade” (p. 227). Mas, principalmente, a proposição de novas fronteiras é o elemento central da cura: é quando, para a autora, o triângulo é modificado e não mais são respondidas as perguntas produzidas pela branquitude que, verdadeiramente, não está interessada em respostas, mas sim na experiência de ocupar a posição de falantes sobre o sujeito negro. A cura também ocorre com a superação do perfeccionismo e a assunção da desalienação. A autora demonstra como todo esse processo opera por meio de cinco mecanismos diferentes de defesa do ego: negação (do racismo e reprodução da linguagem da/o opressora/opressor); frustração (percepção de sua condição de exclusão no mundo conceitual branco); ambivalência (coexistência de amor e ódio, nojo e esperança, confiança e desconfiança para com pessoas brancas); identificação (a busca por sua história e a produção da identificação positiva com sua própria negritude); descolonização: “não se existe m ais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu” (p. 238).

Ao pensar no contexto contemporâneo em que o racismo à brasileira vem assumindo novas configurações, a obra de Grada Kilomba não somente oferece respostas à cura do trauma, mas reafirma a necessidade de assumirmos a nossa história. Retomando a metáfora inicial do lago antes calmo e agora agitado pela reverberação das ondas, um convite inicial e retomado ao final do livro também é feito neste texto: “Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade […] tornamo-nos sujeito ” (p. 238).

Débora Oyayomi Araujo-Doutora Educação (UFPR) e Licenciada em Letras (Unespar). Professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do LitERÊtura-Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias. E-mail: [email protected]

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O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise | Noemi Kon, Maria Lucia da Silva, Cristiane Abdul

“Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”.1 Com essas palavras que hoje assumem ares proféticos, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) terminava um dos seus seminários em 1972. Leia Mais

Grande Otelo: um intérprete do cinema e do racismo no Brasil (1917-1993) | Luís Felipe Kojima Hirano

Para a pensadora Lélia González (1984), o racismo é “a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira” (González, 1984, p.224) e “negro” o significante-mestre, aquele que “inaugura a ordem significante de nossa cultura” (González, 1984, p. 237). O livro que ora comento nos brinda com uma excelente análise da trajetória de um personagem emblemático para pensar as relações raciais ao longo do século XX no Brasil. Em especial, para verificar que se o sujeito neurótico sempre oculta o sintoma por meio de sua negação, então há muito a ser descortinado na rede de significantes dessa neurose cultural de que nos fala González (1984).

O movimento metodológico de Hirano (2019) para a análise do seu conjunto de dados, baseado em fontes históricas sobre o cinema, é digno de nota. O autor propõe lançar um olhar com enfoque antropológico a esses dados, baseando-se no descentramento do olhar (Hirano, 2019, p. 71), um dos pilares dessa disciplina. É feito, então, um triplo descentramento, quais sejam: 1) descentrar a interpretação usual do cinema brasileiro pelos cineastas, em sua maioria brancos; 2) analisar os filmes enfocando a performance de seus intérpretes, ainda que não obliterando a trama e a montagem; e 3) discutir as relações raciais no Brasil, em um campo profundamente marcado, conforme fica evidente a partir da leitura, pela presença estadunidense, que toma o branco como norma. Leia Mais

Da senzala ao palco: canção escrava e racismo nas Américas/1870-1930 | Martha Abreu

APRESENTAÇÃO: DIÁLOGOS EM DELAY

Tomo emprestada a expressão “diálogos em delay” das reflexões de Julio Groppa Aquino, que nos fala de diálogos que entrecruzam temporalidades e nos deslocam do tempo linear da cronologia: Leia Mais

Da senzala aos palcos: Canções escravas e racismo nas Américas, 1870-1930 | Martha Abreu

Num formato ainda raro entre nós, este livro digital que integra a Coleção História Illustrada explora as possibilidades que esta mídia oferece de conjugação de texto, som e imagem. Além das mais de 200 fotos, ilustrações de partituras, anúncios de espetáculos, notícias de jornais – o e-book traz dezenas de fonogramas e alguns vídeos com gravações de canções e espetáculos musicais do início do século XX que permitem ao leitor/ouvinte uma extraordinária experiência de interação com as fontes que sustentam o empreendimento historiográfico. A narrativa é leve, mas muito potente, favorecendo a recepção do trabalho por um público mais amplo que o acadêmico.2

A autora é Professora Titular de História das Américas da Universidade Federal Fluminense e consagrada pesquisadora da cultura popular, música negra, memória da escravidão e relações raciais no pós-abolição nas Américas. Além de inúmeros livros e artigos, já havia produzido, também de forma pioneira, vários vídeos de pesquisa que nos fazem refletir sobre novos suportes para o discurso historiográfico e ensino de História. Leia Mais

Só quem não leu ou não entendeu livros de Lobato pode julgá-los racistas | Jorge Coli

No último domingo, Jorge Coli publicou em sua coluna na Ilustríssima o texto intitulado “Viva Lobato!” (1) O artigo festeja a boa notícia de que as obras de Monteiro Lobato estão agora em domínio público. Coli retoma um debate que eu havia acompanhado com interesse em 2010, provocado pela denúncia de conteúdo racista do livro Caçadas de Pedrinho protocolada pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no Conselho Nacional de Educação. Da denúncia resultou um parecer técnico solicitado pelo próprio MEC, que recomendou a permanência do livro no Programa Nacional de Biblioteca da Escola com a seguinte advertência: “A obra Caçadas de Pedrinho só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”.

A recomendação deu publicidade ao assunto e levou a polêmica ao grande público. Escritores de prestígio como Ziraldo e Ana Maria Gonçalves se manifestaram publicamente. O primeiro defendendo a importância da obra de Lobato para sua e outras gerações de brasileiros; a segunda explicitando o conteúdo racista e alertando para seus efeitos danosos nas crianças negras. Leia Mais

Escritos de liberdade: literatos negros/racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulga dados a respeito das desigualdades por cor no país. Em tempos de “pós-verdade”, de ataque às instituições de pesquisa, de fake news divulgadas por fontes duvidosas, de convicções rápidas e não fundamentadas, mas que recebem status de verdades absolutas, é sempre bom lembrar que a desinformação oculta a forma como as desigualdades de hoje se vinculam às de ontem. De acordo com os dados disponibilizados pelo IBGE em 2019, os negros (soma de pretos e pardos) tornaram-se 55,8% da população brasileira. Entretanto, as pessoas brancas permanecem recebendo os salários mais elevados, continuam sendo majoritárias entre o ocupantes dos cargos gerenciais e seguem tendo as taxas mais elevadas de frequência escolar em todas as idades.1 Leia Mais

Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo | Joana Gorjão Henriques

Entre os séculos XVIII e XIX, vários viajantes estrangeiros que passaram por Lisboa descreveram, frequentemente com grande incômodo, o que lhes parecia uma característica extravagante da capital do Reino de Portugal: uma presença considerável de gente negra. Só para destacar um, entre tantos registros expressivos, o italiano Giuseppe Barreti, que esteve em Lisboa em 1760, não escondeu sua perturbação diante da quantidade de negros e mulatos que “formigavam em todo canto” da cidade. A multidão de gente de cor permanecia numericamente expressiva no início do século XIX. Segundo cálculos coevos, em 1801, os negros eram cerca de 15.000, de um total de 220.000 moradores da cidade de Lisboa. Isso de fato particularizava a capital de Portugal em comparação com outras grandes cidades e capitais da Europa, cuja presença negra não alcançava proporções semelhantes.1 O fenômeno, menos expressivo em termos demográficos, também podia ser observado em outras cidades do reino, como Porto, Faro e Évora. Entretanto, a história dos descendentes de africanos no sul da Europa em geral, e particularmente em Portugal, começa muitos séculos antes. Embora, em termos cronológicos e geográficos, as pesquisas sobre o tráfico de escravos e a escravidão em Portugal2 ainda sejam modestas e circunscritas, investigações recentes têm demonstrado que, já no início do século XVI, algo entre 15% e 20% da população de Lisboa “tinha nascido na África ou era de origem africana”.3 Leia Mais

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930) | Martha Abreu

O livro Da senzala ao palco, ao investigar e comparar como os cantos e as danças dos negros escravizados nos Estados Unidos e no Brasil transitaram das senzalas para a indústria cultural, entrega informações importantes, faz reflexões interessantes e aponta caminhos instigantes. Em edição digital, o livro oferece aos leitores cerca de 200 ilustrações, fotos, capas de partituras, cartazes e jornais da época, além de 48 fonogramas e cinco vídeos com canções e danças. Ou seja, é uma obra que não só pode ser lida, mas também vista e — muito importante — escutada. Recorro à aguda observação de Shane e Graham White, citada por Martha Abreu logo no início de seu livro: “A cultura escrava foi feita para ser ouvida”. (cit. p. 83) Leia Mais

Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do homem – CABRAL et al (S-RH)

CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto. (Orgs.). Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do homem. Lisboa: Rosa de Porcelana Editora, 2016, 398 p. [Acervo fotográfico e fac-símile da correspondência]. Resenha de: FLORES, Elio Chaves. Documentos afetivos: cartas, amorosidades e revoluções no mundo Atlântico (1946-1960). SÆCULUM – REVISTA DE HISTÓRIA [36]; João Pessoa, jan./jun. 2017.

A expressão “mundo atlântico” está inscrita na modernidade de Áfricas, Europas e Américas. A modernidade empilhou documentos da economia política do capitalismo (Europa), da escravidão e da colonização (Américas), do tráfico diaspórico e do colonialismo (África). Tudo isso tornou possível que um jovem nascido na Guiné na década e 1920, que fez estudos básicos em Cabo Verde, nas décadas de 1930-1940, e que se encontrava em Lisboa depois da Segunda Guerra Mundial, em meio ao primeiro arrebatamento amoroso, registrasse indignação sobre os problemas raciais no Brasil da “democracia racial”. Agora publicados, esses documentos afetivos – Aqui me tens − totalizam cinquenta e três cartas à colega (1946-1948), namorada (1949- 1951) e esposa (1952-1960) Maria Helena, escritas nessas temporalidades amorosas.

Na carta de 28 de agosto de 1950, Amílcar Cabral escreve a Maria Helena a sua percepção sobre o lado de cá do mundo atlântico, esse é o tema da missiva, o racismo no Brasil:

Recebi hoje tua carta, bem como o recorte do Primeiro de Janeiro, referente ao problema ‘racial’ no Brasil. O República já tinha publicado a notícia e também o acontecimento relativo à bailarina negra, Katherine Dunham, e ao campeão de box, Joe Louis. É mais uma prova de que a ‘lepra’ dos preconceitos raciais grassa por todos os lados.

[…] Uma coisa, porém, é preciso atenção: não serão, nem poderiam sê-lo, as leis como as promulgadas no Brasil que resolverão o problema. Em muitos dos Estados Unidos da América existem leis análogas – e o negro é linchado ou escorraçado. A Constituição portuguesa é um dos mais belos documentos da igualdade dos homens, sem distinções ante o direito às benesses da civilização – e o negro em Portugal, é afastado do exército, da marinha, da Magistratura, etc. Leis do gênero da referida – quando não servem apenas para ‘deitar poeira nos olhos’, não conseguem mais do que amedrontar os racistas menos audaciosos ou menos poderosos, economicamente. Outras serão as que hão de extirpar de vez e para sempre o preconceito – e essas terão de corresponder a uma alteração profunda do complexo econômico-social do Mundo, base, afinal, dos preconceitos.

Por isso que essas leis − levarão o seu tempo, mas hão de ser realidade – não interessarão apenas aos Negros: interessam a todos os Homens. (p. 312-313) A carta de Amílcar é, a rigor, uma “carta pública”, pois de íntima tem apenas o vocativo da amada, depois da data, “Lena”. Amílcar cita várias vezes o antropólogo norte-americano Alfred Métraux ao tecer críticas aos eventos racistas no Brasil contra Katherine Dunham e Joe Louis que foram proibidos de se hospedar num hotel supostamente apenas para brancos na cidade de São Paulo2. Para Métraux, o racismo era um “mito novo”, justamente dos séculos da modernidade atlântica e que, para ele, talvez não sobrevivesse “à grande revolução da nossa época” – as sociedades contemporâneas que acabavam de inventar os direitos humanos. Amílcar também cita e destaca estudos da UNESCO/ ONU assinados por cientistas de vários países do mundo sobre as “diferenças” e a “história cultural” dos grupos humanos:

“Os fatores que tiveram papel preponderante na evolução intelectual do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Esta dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos”. Amílcar parece estar ciente de que o racismo é mito novo, da ordem capitalista e, mesmo do lado de cá do Atlântico, para superá-lo, haveria de se gestar “uma alteração profunda do complexo econômico-social do Mundo”. Nem Amílcar nem Maria Helena que se enfiaram de corpo e alma nas revoluções africanas e contra o regime racista português de Salazar, suportariam o “dogma racial” nos exílios da Guiné-Conacry e do Marrocos.

Desde que Amílcar Cabral e Maria Helena se conheceram a “linha de cor”, inexistente para a amizade, parece que acaba por condicionar as relações familiares e as sociabilidades acadêmicas. Se na primeira carta (07 out. 1946) Amílcar se despedia como “colega ente amigo”, o namoro assumido no ano de 1948 informa uma poética de amorosidades que precisa enfrentar o dogma racial. Na carta de 25 de abril de 1948, Amílcar lamenta a “falsidade de preconceitos nascidos de condições criadas pelo próprio homem, da teimosia (cega, aliás) num erro que hoje, dentro de limitadíssimas oportunidades, é denunciado pelas mais palpitantes manifestações das realidades, realidades que a Vida patenteia e a Ciência demonstra” (25 abr. 1948, p.91). Pelos argumentos da paixão e pelo que se dizia de sua “africanidade”, Amílcar se sente interpelado a se posicionar etnicamente e a se universalizar na condição humana.

Não sabem (eu gostaria de poder dizer-lhes) que sei que sou negro, isto é, que não sou caucásico ou mongoloide, mas que entre estas três raças existem diferenças apenas na cor da pele e em alguns traços fisionômicos; que tu sabes que sou negro e, mais do isso, que não é na cor da pele que reside o valor de um homem ou as características que poderão denunciar sua superioridade ou inferioridade perante os outros indivíduos.

Não sabem, Lena, quando dizem “Ela não aguenta”, que na realidade não tens nada que aguentar, a não ser, do meu lado, algum passageiro dissabor que naturalmente te adviria de qualquer homem, e, do lado dos descontentes, uma incompreensão facilmente destrutível, filha, aliás, da ignorância e da cegueira causadas por infundamentados preconceitos; que o teu amor por mim não é um amor de mártir ou de sacrificada, mas, sim, o amor de uma Mulher por um Homem, amor que dignifica e eleva. Eu gostaria de dizer-lhes, Lena querida, que a “linha de cor” é um mito que, felizmente, a Humanidade, sempre progressiva, vai afastando do seu seio, semelhantemente ao que sucedeu a muitos outros mitos. (25 abr. 1948, p. 91) Isso não é tudo. Amílcar precisa responder a uma questão ainda mais complexa, pois se refere à reprodução social da vida. É que o dogma racial se antecipa ao próprio evento social: “Que será dela quando tiver um filho” – negro, moreno ou mulato, nas expressões lisboetas. Lembremo-nos de Fanon: um negro castrado não é problema; a negrura estéril é utopia da brancura. A resposta que Amílcar deseja que Maria Helena distribua a esse tipo abjeto de constrangimento racial é mundana: “Não sabem, Lena, que à pergunta ‘Que será dela quando tiver um filho’, tu poderás responder, muito singelamente que serás uma Mãe. Mas uma mãe consciente da sua missão, integrada nos problemas da Vida – e que saberá preparar, no Mundo e para o Mundo, os seus filhos” (25 abr. 1948, p. 91).

Noutra carta, do dia 20 de agosto do mesmo ano, Amílcar deixa transparecer na narrativa certo aborrecimento sobre a mesma questão que aparece reiterada na correspondência de Maria Helena, “às pessoas que te dizem coisas mirabolantes por causa da cor da minha pele”. Ele reitera que “o mito das raças é apenas um mito” e, taxativo, escreve: “Desde que sejamos absolutamente conscientes da nossa posição dentro do sério problema da nossa vida” (20 ago. 1948, p. 135). Essa longa carta, carregada de tensão e desejo, também define a confissão do “chamamento africano”, a justificativa para o retorno ao continente de origem: ”Mas tu sabes, como eu, quais as forças que me chamam pra a África, forças a que não resistirei, porque seria trair me, trair a própria vida”. Amílcar repassa para Maria Helena as contingências africanas e o faz na estilística da verve colonial, como se voltasse como herói civilizador, para “lá, onde pouquíssimo ou nada ainda se fez”; ou, “lá, onde a Técnica e a Ciência ainda são sombras”; ou, “lá, onde a vida me chama”. Trata-se de uma decisão que é comunicada à luz dos eventos relacionais envoltos na subjetividade da linha de cor. Assim foi narrado: “Hoje, já que as circunstâncias mo exigem, quero dizer-te que, se totalmente impossível, tu não me acompanharás. Mas eu tenho de ir.

Acabado o curso, eu só ficarei na metrópole, se de todo não puder seguir para África”. Depois, passa a explicar o sentido dessa decisão: “Não conto viver toda a minha vida lá, nem espero viver no sertão, longe dos grandes centros [que designou antes como cidades progressivas e belas do litoral]. Conto apenas viver parte da minha vida em África e dar, com toda a boa vontade de que for capaz, em todo o amor imenso que em anima, o meu esforço no sentido de fazer alguma coisa pelas gentes africanas, pelos homens, afinal”. O final do parágrafo é denotativo de um manifesto: “Quero dizer: subordino-me conscientemente a esta contingência da vida:

tenho de ir para África”. A leitura dos últimos dois parágrafos da carta permitem adjetivar esse manifesto de amoroso: “E viverão juntos [os dois enamorados] na terra onde a vida lhes oferece maiores horizontes no sentido de serem úteis à Humanidade.

E creio que tu concordas comigo que esse local, para nós e porque eu sou um desses indivíduos, deve ser a África”. Ao finalizar, duas verdades emolduram a missiva:

“uma, é que tenho de ir para a África; outra, Lena, a outra é esta: Eu amo-te” (20 ago. 1948, p. 137-138). Nas cartas seguintes, Amílcar reconhece o tormento, a tensão e a necessidade da “consciência coletiva vencer a individual”. Na carta de 26 de agosto ocorre a citação da resposta de Maria Helena: “resolvi deixar tudo para te ajudar e seguir-te” (26 ago. 1948, p. 175). É vida que segue3.

Na carta de 23 de agosto de 1950, uma semana antes da referida carta em relação aos eventos raciais no Brasil, Amílcar narra ironicamente o caráter burguês do bairro lisboeta onde estava residindo. O tropos da ironia para vituperar a classe burguesa será uma das expressividades de Amílcar. Ele informa que fixou residência à Av. Casal Ribeiro, num meio termo entre os bairros de Alcântara e Bairro Azul. Dizia que mais abaixo se encontravam Casal Ventoso e a Fonte Santa “e todas as demais imundícies que a injustiça social criou e alimenta”. A pobreza ao longe e o modo de vida burguês na sua proximidade:

interessante, mas o ar que se respira é demasiadamente burguês para nos deixar saborear a beleza das suas árvores centrais. Sim, demasiadamente burguês. Ali, defronte, as janelas eternamente fechadas: a ‘madame’ está na praia, como não podia deixar de ser. À tarde, meninas anêmicas e olheirentas penduram-se à janela, na linha dos cabelos propositadamente desprendidos atiram a isca de um olhar à Dorothy, condimentado pelo batom berrante. A mamã, rechonchuda e metafísica, de vez em quando vem à janela, observa a ‘pesca’ e palita os dentes, ruminando os detritos do ‘bombom’ que o papá-dinheirudo ofereceu, certamente uma compensação da última façanha extralar ou intracabret. (23 ago. 1950, p. 307)

Esse olhar crítico à cultura burguesa – às amorosidades burguesas – ironizada em 1950, ganha ares de indignação na única carta do início de 1951, na qual Amílcar se insurge contra as comemorações cristãs de passagens do ano: “O que espanta nesta decantada Civilização Cristã – é o cinismo comum às manifestações mais vulgares. Um cinismo tremendamente hipócrita, uma hipocrisia tremendamente cínica. Feliz Ano Novo” (03 jan. 1951, p. 329-330).

Amílcar Lopes Cabral (1924-1973) e Maria Helena de Ataíde Vilhena Rodrigues (1927-2005) se casaram no dia 21 de dezembro de 1951, afirmando um namoro interracial começado no Instituto Superior de Agronomia, quando eram colegas de faculdade, desde o ano de 1946, numa Lisboa salazarista e ainda “metrópole” de colônias portuguesas em África. Amílcar Cabral era filho de Juvenal Cabral e de Iva Pinhel Évora, ambos nascidos em Cabo Verde e que se encontraram na Guiné no início da década de 1920. A Guiné propiciou trabalho a Juvenal que se tornou funcionário administrativo, professor e comerciante. Sabe-se que Iva Évora chegou à Guiné aos 29 anos com um filho e, em seguida à relação amorosa com Juvenal, deu à luz ao segundo filho, Amílcar, no dia 12 de setembro de 1924, em Bafatá, na região central da Guiné. Maria Helena era filha de Joaquim Rodrigues e Carlota Ataíde Vilhena, nascidos e radicados no norte de Portugal. Carlota Ataíde deu à luz a Maria Helena em Chaves – Casas Novas, no ano de 1927. O pai de Maria Helena era capitão médico do exército colonial e há notícia de que foi gravemente mutilado numa das campanhas da África.

Para nós, brasileiros, que a cada três frases, pelo menos numa louvamo-nos como agentes das mestiçagens modernas, mas pouco toleramos amores entre homens negros e mulheres brancas, o conteúdo epistolar desses “documentos afetivos” – as cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena – escritos na temporalidade 1946-1960 podem inspirar algumas reflexões sobre os casamentos interraciais e seus desdobramentos político-afetivos no mundo atlântico contemporâneo, isto é, a segunda metade do século XX. Talvez seja preciso concordar com Frantz Fanon que, em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), defendeu a ideia, num capítulo seminal, de que “é preciso falar mais longamente das relações possíveis entre o negro e a branca”.

Casas características nitidamente princípio do século, grandes prédios em linha impecável, esta Avenida é na realidade O primeiro semestre de 1952 foi de preparativos para a viagem de retorno à África. No mês de setembro acontece a viagem. Em carta escrita a bordo da embarcação, “Atlântico, a 12 horas de Cabo Verde, em 17/9/52”, Amílcar se prepara para rever Cabo Verde e, depois, chegar à Guiné, destino que aguardará, também, Maria Helena. Essa carta é expressiva do que estamos chamando “mundo atlântico”.

Embebido pela viagem, Amílcar observa para Maria Helena: “Hás de notar que o movimento constante do mar é o reflexo de um exemplo de movimento constante de tudo quanto existe”. Nesse estado de espírito, de rever Cabo Verde e, em seguida, rever Iva, a mãe, na Guiné, sabe-se da gravidez da Maria Helena: “Porque será que eu já não sei pensar a Iva sem pensar-te?”. Os planos nessa África atlântica não cessam e se a vida e o trabalho não vingarem na Guiné deveriam “abalar para Angola”. O Atlântico narrado por Amílcar não é o da Grande Travessia – a trágica Middle Passage – dos negreiros da modernidade atlântica, esse Atlântico “amilcariano” é uma espécie de passagem da promissão, uma vida adulta em África que se pretendia plena.

O mar, sempre em movimento, é um manto azul, salpicado de branco. Pequenas vagas que se formam e se desfazem no próprio seio do mar. Espumas. Um cardume-bando de peixes voadores que se assustou com o monstro do ferro, e levantou voo. Ali, à esquerda, há uma estrada de prata levando ao horizonte: o reflexo do sol no mar. A conga continua, dançando o navio ao som da sua música íntima e monótona: o motor que geme. Eu, aqui, esperançoso e esperançado, escrevendo para ti, falando contigo. Ouvirá o que não digo.

Sentirás o que sinto. […] Eu incompleto, chegando. (17 set.1952, p. 337-39) Na carta do dia 24 de setembro, na Guiné, Amílcar informa sobre o trabalho, a casa, a mobília, a granja, o emprego e os preparativos para a viagem e a chegada de Maria Helena. Apresenta a Guiné como projeção de africanidade emancipada: “A natureza aqui, apesar de tudo quanto opiniões metafísicas podem apontar, convida ao trabalho e à conquista no sentido da ‘vivificação da vida’. Se alguma certeza eu tenho – oh, se tenho certezas! – é a de que gostarás disto. Da terra e dos povos, das coisas e das gentes” (24 set. 1952, p. 348).

Não é possível saber da chegada de Maria Helena, o nascimento da primeira filha e os seus desdobramentos pela ausência de cartas, apenas uma no ano de 1953 e nenhuma no ano de 1954. Mas no ano de 1955 veremos Amílcar em viagem para São Tomé e depois para Angola. Decepciona-se com Luanda e o racismo intrínseco do fato colonial – “Isto de Luanda que estou a conhecer”, dirá consternado, “é das coisas mais miseráveis que imaginar se pode em matéria de ambiente colonial”.

Amílcar conta o que seus olhos avistam e compara realidades coloniais africanas.  Trata-se de uma visada sociológica impressionista:

Há muitos prédios em construção, é certo, mas que valem os prédios, se os homens ‘vivem’ deploravelmente? Além disso, como cidade, coitadinha de Luanda aos olhos de Dakar, por exemplo. E coitadinhos dos indígenas destas paragens, aos olhos da gente da Guiné, sim, da Guiné dita portuguesa. Uma miséria, Lena. Só para pensares, fica sabendo que aqui, os choferes de táxi, os criados de hotel, restaurantes e cafés, etc. a raia miúda da sociedade é constituída por europeus.

Calcularás por certo quais as posições e as situações que restam (mas o que poderá restar?) para os africanos. Miséria de todos os tamanhos. Para brancos e pretos. Racismo do mais sujo, com sorriso nos lábios, só para os pretos. Enjoado, Lena. Mas a esperança e a certeza de que afora de tudo, o mundo marcha. Há de caminhar para a redenção na terra destes seres que por aqui vegetam e que são homens de coração e de cabeça.

[…] Passam crianças pretas sujas, mal vestidas. Parecem negros tristes e sem esperança. Passam brancos ricos, bem postos, de espada, e também brancos miseráveis. Eu penso em ti e na Mariva. (30 ago. 1955, p. 365)

São nas cartas de 1955 que, ao final, Amílcar passa a se referir, também, a Mariva – Iva Maria, a primeira filha. Parece aumentar a recorrência à “linha de cor”. Nesse caso, a linha de cor, sofisticada na metrópole e na academia, salta aos olhos no espaço colonial: “Passam negros tristes e sem esperança. Passam brancos ricos, bem postos, de espada, e também brancos miseráveis. Eu penso em ti e na Mariva”.

Pensar “raça” com Maria Helena e Mariva é universalizar a si mesmo, mas pensar “classe” amedronta o futuro. Vide que, aqui, é a “linha de classe” – ricos e pobres – que divide também os brancos. A experiência Angola/ Luanda fixa uma ambiguidade amilcariana que era apenas verve quando glosa do bairro burguês lisboeta da carta de 23 de agosto de 1950. Agora ele começa a trabalhar nessa dimensão: raça e classe, isto é, o fato colonial. Nas cartas seguintes, em que conhece outras cidades angolanas, Amílcar anuncia uma posição: “Lobito e Benguela são razoáveis. Mas a miséria continua. Miséria contra a qual hei de lutar” (01 set. 1955, p. 369).

Na carta de 10 de outubro de 1955, escrita em Catumbela, próxima de Lobito, Amílcar fala entusiasmado da leitura de Jorge Amado. Recheados na carta, copiados entre aspas, constam vários trechos da obra, mas não se menciona o título. Amílcar apenas diz: “Vou no 2.º volume e do primeiro vou transcrever-te umas passagens, belas de verdade pela poesia que encerram”. Essa pista leva à trilogia, Subterrâneos da Liberdade (São Paulo, Livraria Martins Editora, 1954)4. As passagens são aquelas dos enamorados, João e Mariana, operários que também se casam “por uma vida melhor”. Amílcar se inspira em várias literaturas e não seria exagero se falar de um Atlântico das letras. A prosa engajada de Jorge Amado parece empolgar o missivista para o advento da luta revolucionária e, ele mesmo, vê analogias entre a história de amor, ficcional do lado de cá, mas realista do lado de lá: Amílcar e Maria Helena. O primeiro volume, Os Ásperos Tempos, recebe um tratamento de poética de amorosidade à primeira leitura. Amílcar lê o Brasil da “democracia racial” pela narrativa de Amado:

Operários e camponeses, ‘coronéis’ e banqueiros, luta, flor.

Luta subterrânea, na legalidade e na ilegalidade, buscando em cada gesto, em cada pensamento, a estrela que a penumbra não pode esconder, gerando sob e sobre a lama dum presente de crianças famintas, o porvir de todos os homens. A hipocrisia e o cinismo desenfreados, o interesse, o estômago dominando o coração e o cérebro, a lealdade mais bela, a solidariedade transformada em atos vividos em cada instante, o desinteresse pessoal numa luta impessoal mas coletiva. E sobre esse mundo brasileiro de 37 a 40 [1937- 1940], a luz do luar e a luz do sol, do luar do amor e da esperança num céu grávido de estrelas, do sol nascendo da terra, das entranhas da terra, do coração dos homens e das mulheres que lutam, do olho simples e interrogativo das crianças desamparadas. O amparo nascendo do desamparo, a certeza gerada da incerteza, a luz brotando da escuridão. Só o amor, esse é o livro de Jorge Amado. Um livro dos homens, um livro para nós todos, na imensidão do seu amor e da sua esperança. Da sua certeza. (10 out. 1955, p. 373-374)

Pode ser que desse “céu grávido de estrelas”, nos dois lados do Atlântico, nasça algo parecido com a revolução da justiça e da igualdade. Na carta seguinte, Amílcar se acha “um pouco gongórico”, pois na medida em que se enfia no “sertão” angolano, mais necessidade de mudança ele sente para a África: “Campos de sisal por todo o lado. Nem uma parte da terra para o indígena cultivar. Exploração dos diabos. O que vale e consola e anima é que isso tudo vai mudar, vai acabar – oh se vai! – para a ressurreição da vida nestas paragens” (31 out. 1955, p. 378). Entretanto, dois anos depois, as vicissitudes econômicas do cotidiano, os problemas de saúde de Maria Helena e os seguidos deslocamentos pela Guiné, incitam uma frase lapidar, quase como súplica: “Que haja a compreensão e a paz racional que é a única mesologia adequada às nossas consciências” (21 out. 1957, p. 387).

A última carta é de 1960 e trata da guinada revolucionária. Desse lapso epistolar de dois anos o leitor nada saberá. A vida pública e a impossibilidade de servir ao Estado salazarista e aos empreendimentos coloniais parecem “apressar” uma possibilidade que vinha desde 1955 – “Não renuncio seja ao que for, mas penso que se impõe traçar um caminho seguro”. Escrita de Paris, Amílcar está imerso nas atividades revolucionárias. O plano está traçado: “Tenho na algibeira a passagem para a viagem definitiva. Tenho também a ordem das passagens para ti e para Mariva, que ficarão aqui depositadas em teu nome e à tua disposição”. Várias recomendações são elencadas para Maria Helena tomar providências: a papelada e os livros deveriam ser enviados para Dakar – Senegal; vender a mobília da casa e o carro; levar apenas as roupas e as coisas pessoais necessárias; transferir o dinheiro e economias para Londres; arrumar escola para Mariva; ajudar as mães de cada um, Carlota e Iva; ordens aos companheiros, resolver casos de hipoteca e cooperativa; enfim, “tudo o resto, inclusive o gato Mico”. O término da carta indica a “nova” vida, a vida revolucionada e pela revolução: “Por hoje, paro aqui. Cheio de saudades.

Talvez de ansiedade também. Mas cheio de esperanças no futuro, na vida que vamos construir. E a certeza, a consciência, a alegria de que esta carta é talvez a mais bela carta de amor que já te escrevi” (30 abr. 1960, 391-394). Ainda em 1960: Maria Helena e Mariva ficam oito meses em Paris. Amílcar Cabral adota o nome da clandestinidade, Abel Djassi. O decorrer do ano de 1960 é vida em profusão: Amílcar/Abel escreve ensaio sobre o colonialismo português; organiza quadros e escola de formação revolucionária na Guiné-Conacry; vai à China comunista; tornase a principal liderança do PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde; no mês de dezembro, o comitê do partido lança o informativo do movimento emancipacionista: Libertação. Amílcar Cabral organiza a luta e continua a escrever5.

A cuidadosa edição epistolar de Amílcar Cabral, com a adição de importante acervo fotográfico e a impressão fac-símile de cinquenta e três cartas escolhidas desloca do espaço privado para o campo da história política o cenário e a trajetória de formação e práxis revolucionária de umas das expressões do marxismo negro. As cartas, que podem ser definidas como poéticas de amorosidades compartilhadas, não deixam de narrar experiências de racismo, africanidades e vontades criadoras numa África que se pretendia emancipada do fardo colonial. Assim, um “patrimônio privado”, carregado de afetividades, foi possível ser disponível para um vasto público leitor graças ao projeto de edição coordenado pela historiadora Iva Maria Cabral, primeira filha de Amílcar Cabral e Maria Helena, pesquisadora da “história racial” em Cabo Verde e autora da tese de doutorado A Primeira Elite Colonial Atlântica: dos “homens honrados brancos” de Santiago à “nobreza da terra” – Final do século XV – Início do século XVII (Praia: UCV, 2013). Antes do “Aqui me tens” – o corpus epistolar − uma primeira parte, constitutiva de “considerações, apresentações e prefácios”, converge para a escrita e o casal protagonista. Os editores, Márcia Souto e Filinto Elísio, na apresentação “Triunfar sobre a morte vulgar ou considerações acerca da edição do livro Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do homem”, acertaram na metodologia de edição, ao proporem, em vez de anexos que se tornam irrelevantes, “acompanhar cada transcrição com seu respectivo original, de modo a propiciar ao leitor não só o acompanhamento, no calor da leitura, do texto manuscrito (o papel, a letra e os estados de alma, elementos que possam vir a revelar mais acerca do autor no momento da feitura da carta), mas também para facilitar alguma atenção especial que os leitores possam ter em relação a alguma passagem e facilitar o contato mais próximo com o texto autógrafo” (p. 13).

Pedro Pires, companheiro do autor das missivas nas lutas de libertação e atual presidente da Fundação Amílcar Cabral, assina o prefácio “Convergência no tempo e nos propósitos” (p. 19-24) onde se surpreende pela ausência da correspondência de Maria Helena, “desconhecemos a plenitude das suas cartas e das suas respostas aos apelos e interpelações do Amílcar”. Essa diluição da voz feminina nalgumas citações da escrita masculina não se coaduna com os avanços notáveis das teorias feministas desde que Maria Helena se tornou uma das primeiras engenheiras agrônomas formadas numa faculdade portuguesa. O olhar atento de Pedro Pires vê em “Lena” a confidente e depositária das ideias e reflexões de Amílcar Cabral, mas que, “por vezes, o diálogo ganhava a força de um monólogo em que martelava e repetia as ideias quase que se dirigindo a si próprio”. Pires atenta para cinco momentos reveladores das cartas que permitem acompanhar a trajetória e formação revolucionária do sujeito apaixonado. O primeiro foi o enfrentamento do racismo ao se relacionar com uma mulher branca. O segundo dizia respeito à questão ética das relações humanas e da política. O terceiro implicava a defesa da dignidade humana e as responsabilidades sociais frente às injustiças e desigualdades econômicas. O quarto, talvez o mais pragmático, seria o “chamamento africano” como se fosse um destino traçado em lutar pela emancipação dos povos africanos, notadamente os da Guiné e de Cabo Verde. Por fim, o quinto, narrado na última carta, configura “o fim do ciclo da vida privada” e a consequente “partida para o desconhecido e o incerto” com uma pitada de fé na “vitória sobre o colonialismo”.

A pesquisadora Inocência Mata, no ensaio prefacial, “As cartas de Amílcar a Maria Helena como documento expressivo na construção de uma narrativa coletiva” (p. 27- 33), defende a hipótese que as cartas formam “um duplo espaço biográfico” do emissor e da destinatária, ainda que estejam ausentes as “respostas físicas” de Maria Helena. A autora pontua que embora a função prevalecente nas cartas seja a “razão emotiva” o livro se constitui como “filigrana documentativa de um tempo ainda presente na memória coletiva, vale dizer, no caso, (trans)nacional (pelo menos Guiné- Bissau, Cabo Verde e Portugal) – e nisso consiste o interesse público e institucional deste acervo”. Outra apresentação das cartas, “História em Dueto” (p. 37-40), assinada por Carlos Lopes, organizador do importante livro Desafios Contemporâneos da África: o legado de Amílcar Cabral (São Paulo: Editora da UNESP, 2012) e atual secretario executivo da comissão econômica das Nações Unidas em África, observa que desde a primeira carta, datada de 1946, aparece “uma personalidade vocacionada para fazer história”. Lopes enfatiza um percurso, “indivíduo e sociedade”, perceptível no suporte carta, “documento afetivo”, que presumivelmente seria o espaço para a “vivacidade poética” e o “arrebatamento amoroso”. Lopes também lamenta ficar “sem acesso às cartas de Helena”, mas defende que a “história em dueto” seria também aquela protagonizada por Maria Helena, “a de Amílcar e a de África”.

Bem, já que decidimos apresentar a “primeira parte” ao final desta resenha, voltaremos, para concluir, à carta do dia 21 de outubro de 1946, a segunda do corpus, na qual Cabral escreve para uma já notada colega de faculdade, ela então com 19 anos e, ele, recém-chegado a Lisboa, com 22 anos: “Bem: já vou longe…

Retorno, e respeito o pouco tempo de que dispõe, cara colega. A propósito do tempo de que dispõe: eu queria escrever no princípio: Leia quando tiver tempo, mas só o faço no fim. Quantas vezes, na vida, o fim não é o princípio?” (21 out. 1946, p. 47).

Aqui me tens! Do privado para o público. Entretanto, segundo as teorias feministas, o privado é público e o pessoal é político. Então, além do que expressamos como documentos afetivos, esse conjunto de cartas não seria também um patrimônio?

Notas

2 A antropóloga norte-americana Irene Diggs também foi discriminada num hotel do Rio Janeiro, por essa mesma época. Alguns casos “internacionais” repercutiam na imprensa, mas as práticas racistas institucionais e nos estabelecimentos comerciais, clubes e escolas eram diárias assim como a ausência da população negra do processo político brasileiro. Para essa discussão no contexto 1945-1960, ver: NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003, p. 221-280.

3 A última carta de agosto é um relato “historiográfico” dos acontecimentos da África do Sul e da institucionalização do regime de segregação racial com a vitória do Dr. Malan, adepto do fascismo europeu, nas eleições de 1948. Amílcar anota o aspecto positivo de alguns casamentos interraciais na África do Sul (29 ago. 1948 p. 193-195). Em setembro vai para Coimbra e se encanta com a cidade, onde “sente-se toda a alma portuguesa” (12 set. 1948, p. 231). O ano de 1948 contém o maior número de correspondência: 31 cartas. Não foram escritas cartas no ano de 1949, mas aparecem três sonetos, dois dedicados a Maria Helena e um para a mãe, Iva Évora. Em abril de 1950, carta enigmática sobre a morte, onde Amílcar pensa duas mortes, a vulgar, “cessação do fenômeno vital”, e a outra, uma espécie de “morte social” (p. 275-278). Na carta de 18 ago. 1950 Amílcar estuda o “africanista” Maurice Delafosse e o poeta negro cubano Nicolás Guillén (p. 302-304).

4 Os volumes são: Os ásperos tempos (1.º), Agonia da noite (2.º) e A luz do túnel (3.º). As citações que Amílcar envia para Maria Helena são do primeiro. Publicados em São Paulo, pela Livraria Martins Editora, a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade ficcionaliza o Estado Novo (1937-1945) em três momentos, a partir da “voz” de um membro do Partido Comunista Brasileiro: a instauração da ditadura; a greve dos estivadores do porto de Santos; e, a perseguição aos comunistas. A edição mais recente da trilogia, no formato original, isto é, em três volumes veio a lume também em São Paulo (Companhia das Letras, 2011). Parece provável que Amílcar tenha adquirido a obra de Jorge Amado em Luanda, pois essa disponibilidade da literatura brasileira em Angola vinha desde os primeiros modernistas. Conferir: MADRUGA, Elisalva. Nas trilhas da descoberta: a repercussão do modernismo brasileiro na literatura angolana. João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB, 1998.

5 Quase a totalidade dos escritos políticos de Amílcar Cabral foi publicada numa primeira edição, em 1977, em dois volumes, sob a coordenação de Mário de Andrade, seu biógrafo angolano e também intelectual ativista das emancipações africanas, especialmente de Angola. Depois disso, a obra foi republicada. Ver: CABRAL, Amílcar. Unidade e luta: a arma da teoria. Vol. 1; Unidade e luta: a prática revolucionária. Vol. 2 (Obras Escolhidas). Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2013.

Elio Chaves Flores – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado do Departamento de História e Docente Permanente dos Programas de Pós-Graduação em História e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do CNPq – PQ-2 (Área de História Moderna e Contemporânea). E-mail: <[email protected]>.

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A reprodução do racismo: fazendeiros/negros e imigrantes no oeste paulista/1880-1914 | Karl Monsma

Domingo de carnaval de 1894. Na Fazenda Sant’Anna, município de São Carlos, no Oeste paulista, cinco colonos italianos festejavam no terreiro da fazenda a folia de momo, embalados pela música, dança e bebida. Num determinado momento, o grupo decidiu ir para uma estação ferroviária, onde, em frente a uma venda, continuou a pândega em meio a transeuntes que circulavam pelo local. O “crioulo” Narciso, de aproximadamente 30 anos, fazia uma visita de cortesia ao proprietário da venda, o brasileiro branco Guilherme Hopp. Por volta das seis horas da tarde, Guilherme, com a ajuda de Narciso, começou a fechar a venda. Os italianos pediram mais vinho, e Narciso transmitiu o pedido a Guilherme, mas este se negou, dizendo que a venda estava fechada. Quando o “crioulo” comunicou a recusa aos italianos, obstruindo a porta do estabelecimento, pelo menos quatro deles o atacaram, dando-lhe “tapas e ponta-pés”. Guilherme socorreu Narciso para dentro da casa e fechou a porta. No entanto, os italianos arrombaram a porta e novamente agrediram o “crioulo” com socos e facadas, “sendo que duas foram bem visíveis, pois que a faca entrando enroscou-se, demorando o assassino em tirá-la’’. Guilherme conseguiu puxar Narciso para o interior da casa novamente e o aconselhou que se escondesse na roça de milho, afim de que pudesse escapar da fúria dos italianos. Narciso não resistiu. No dia seguinte, foi encontrado morto no milharal. Os italianos sabiam que Guilherme era quem não queria lhes vender mais vinho, mas atacaram o mensageiro “crioulo”. Algumas semanas depois, Antonio Augusto, um jovem branco brasileiro, deu pancadas num “preto” porque faltou ao trabalho na fazenda onde Antonio atuava como mestre. Em resposta, o “preto” matou Antonio com uma facada. Leia Mais

A reprodução do racismo: fazendeiros/negros/ e imigrantes no oeste paulista/ 1880-1914 | Karl Monsma

Com A reprodução do racismo, o professor Karl Monsma (Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul) oferece uma abordagem inovadora das relações cotidianas entre imigrantes, negros e fazendeiros no período da abolição até a primeira década do século XX. No erudito livro, Monsma busca entender os processos humanos que não só produzem, mas reproduzem o racismo, apesar de grandes mudanças institucionais e/ou sociais ao longo do tempo. Ele usa o duplo contexto de abolição e imigração para mostrar um habitus racial em mudança e como os diferentes negociaram essa nova realidade, procurando as melhores condições e resultados possíveis, tanto para o indivíduo quanto para os grupos. Apesar do enfoque geográfico no oeste paulista – principalmente no município de São Carlos – a contribuição tanto historiográfica quanto metodológica do livro vai muito além desse contexto.

O livro se divide em duas partes principais. Monsma começa com uma análise teórica e hemisférica do racismo como fenômeno histórico. Primeiramente, ele navega em uma vasta literatura sociológica, antropológica e histórica para teorizar os conceitos “raça,” “racialização,” e “racismo.” Para Monsma, abordagens do conceito bourdieusiano habitus, que tomam em conta as contradições e inconsistências presentes no próprio habitus, parecem as mais produtivas, abrindo novos caminhos para combinar o conceito abstrato com observações históricas do cotidiano. Mudanças sociais ou estruturais desestabilizam o habitus racial numa sociedade—mas por que a persistência da dominação racial? Para Monsma, o racismo se reproduz em tais contextos dada a intersecionalidade do habitus racial com outros contextos humanos: redes socais, instituições, ideologias, etc. Desconsiderando o resto do livro, esse capítulo teórico já seria de leitura importante para qualquer estudante ou pesquisador interessado em tais aspectos da sociedade. Leia Mais

Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, p. 241-244, jan./jun., 2007

Como o racismo à brasileira deve ser enfrentado?

Célia Maria Marinho de Azevedo é professora de História aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp). Seu campo de especialização é a história do negro e das “relações raciais”. Depois de ter publicado o importante trabalho, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites, século XX, em 1987, foi a vez de Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), em 2003, e Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo, um ano depois. É justamente esta última publicação o objeto da presente resenha. O livro é uma coleção de sete artigos que Célia de Azevedo escreveu entre 1997 e 2003.

No primeiro capítulo (Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direitos de ‘raça’?), a autora sustenta a tese de que seria mais eficaz a adoção de medidas universalistas (de cunho social) para a abolição do racismo do que medidas diferencialistas (ou específicas), em que o Estado tem que reconhecer a existência de raças. No entendimento de Célia de Azevedo, o “combate ao racismo significa lutar pela desracialização dos espíritos e das práticas sociais. Para isso é preciso rechaçar qualquer medida de classificação racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raça, ou, para sermos mais claros, os direitos de ‘raça’” (p. 50).

Já no segundo capítulo (Cota racial e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos), a autora analisa basicamente duas questões: o debate em torno da validade ou não da política de cotas para minorias discriminadas nos Estados Unidos e como a experiência estadunidense pode servir de inspiração para os brasileiros engajados na luta anti-racista e até que ponto ela pode ser importada para nosso país.

O terceiro capítulo (Entre o universalismo e o diferencialismo: as políticas anti-racistas e seus paradoxos) trata do espinhoso dilema: afinal, as propostas mais adequadas para se combater o racismo são as de cunho universalista ou diferencialista. Para Célia de Azevedo, faz-se necessária a “criação de oportunidade para os segmentos da população historicamente discriminada – sem no entanto perder o sentido universal de humanidade” (p. 73).

No quarto capítulo (A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça), a autora esquadrinha, primeiramente, alguns postulados do historiador Dominick LaCapra acerca da Nova História Intelectual e, em um segundo momento, analisa como LaCapra e outros autores vêm criticando o uso da noção essencialista de raça na produção do conhecimento histórico.

O quinto capítulo (13 de Maio e anti-racismo) problematiza a substituição, nas últimas décadas, do 13 de Maio – data em que se comemora o aniversário da Lei de Abolição, assinada pela Princesa Isabel – pelo 20 de novembro, presumível data da morte do “herói” negro Zumbi dos Palmares. Célia de Azevedo defende a idéia de que a Abolição foi resultado da luta de um amplo movimento contestatório (protagonizado por escravos, libertos e seus aliados progressistas). Por isso, entende que não se podem distorcer os fatos: a liberdade foi uma conquista dos negros e não uma dádiva das elites brancas (ou da Princesa Isabel); logo, o 13 de Maio “dos escravos” tem que ser tão revalorizado quanto o 20 de novembro de Zumbi dos Palmares.

No sexto capítulo (Quem precisa de São Nabuco), Célia de Azevedo questiona um dos personagens mais “santificados” da História do Brasil, Joaquim Nabuco (1849-1910), daí o porquê do “São Nabuco” do título. A autora demonstra que seu personagem pensava como as pessoas ilustradas de seu tempo. Se do ponto de vista racial as teorias que apregoavam a superioridade biológica, intelectual e cultural do homem branco sobre o negro estavam em voga na Europa e no Brasil no final do século XIX, Nabuco não ficou imune e bebeu em tais postulados. Para além de abolicionista, Nabuco – como um bom proprietário, senhor de escravos e político de sua época – seria defensor de seus interesses de “raça e classe”, isto é, para a Célia de Azevedo, Nabuco concebia a Abolição em dupla perspectiva: como uma medida que garantiria a manutenção da ordem (e da grande propriedade) e como um mecanismo que facilitaria a entrada massiva de imigrantes brancos europeus a fim de promover a purificação racial da população brasileira.

Por fim, no sétimo capítulo (“Para além das ‘relações raciais’: por uma história do racismo”) a autora preconiza a necessidade de superar a noção de “raça”, bem como a de “relações raciais”, para eliminar “o racismo no dia-a-dia”. Em lugar de “raça”, a autora entende que deveria existir apenas a noção universalista de “humanidade”.

A despeito de o livro abordar temas correlatos, o escopo central é escrutinar a proposta de ações afirmativas para negro, especialmente em sua versão mais conhecida (e polêmica), as cotas raciais. Célia de Azevedo deixa patente que tal proposta não é a melhor solução para atacar as desigualdades raciais no Brasil. Primeiro, porque a “política de preferência racial esteve longe de ser um sucesso” nos EUA; segundo, porque existiriam programas mais eficazes para se combater o “racismo institucional” e o estado de penúria de boa parte da população negra. Esses programas não teriam um recorte racial e, sim, social, como o da reforma agrária, o da recuperação da qualidade das escolas públicas de ensino fundamental e médio; o Projeto de Renda Básica Universal e o Programa Bolsa-Escola. Que se sabe, os defensores das cotas raciais não são contrários à reforma agrária ou à melhoria da escola pública. Porém, o mais paradoxal é que alguns dos programas preconizados por Célia de Azevedo (como renda básica e bolsa-escola) estão no bojo das chamadas políticas compensatórias, e tais políticas seguem o mesmo princípio das ações afirmativas (do qual as cotas raciais fazem parte): reparar as injustiças do passado (e do presente) para os grupos que são discriminados negativamente, por motivo de cor, gênero, classe social ou orientação sexual.

Um dos motivos pelos quais Célia de Azevedo se opõe à política de cotas raciais é que ela consiste numa política pública específica (ou diferencialista). Em sua opinião, não são as políticas específicas e sim as universalistas as mais apropriadas para garantir a promoção dos negros. No entanto, não é isso o que as pesquisas apontam. A implementação de políticas públicas universalistas, quais sejam, programas governamentais que atacariam as causas sociais da desigualdade não sinalizam para a erradicação do racismo no país. Conforme apurado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2001, todas as políticas públicas universalistas empreendidas pelo governo, desde 1929, não conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no progresso educacional do brasileiro. Os brancos estudam em média 6,6 anos e os negros 4,4 anos. Esta distância, de 2,2 anos, é praticamente a mesma do início do século XX. A conclusão é reveladora: apesar de ter acontecido uma elevação do nível de escolarização do brasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferença de anos de estudos dos negros frente aos brancos permanece inalterada.

Isso significa que programas sociais ou políticas públicas universalistas, por si só, não evitam as desvantagens que os negros levam em relação aos brancos no acesso às oportunidades educacionais. Para se corrigir esta deficiência do sistema racial, são necessárias também políticas públicas específicas em benefício da população negra, ou seja, programas sociais que adotem um recorte racial na sua aplicação. Os problemas específicos dos grupos que historicamente sofreram (e sofrem) discriminação (como negros, mulheres, gays, entre outros) se resolvem, combinando medidas gerais e específicas. Portanto, a discriminação contra o negro deve ser enfrentada, igualmente, com ações anti-racistas.

Um outro motivo pelo qual Célia de Azevedo rejeita a política de cotas raciais é que ela exige que o Estado classifique racialmente a população. E, segundo a autora, enfrentar o racismo significa lutar pela “desracialização dos espíritos e das práticas sociais”. Se a “raça” foi uma invenção nociva aos destinos da humanidade, afirma Célia de Azevedo, “por que reivindicar a racialização pelo Estado?”. Ora, é sabido que “raça” é uma construção social, com pouca ou nenhuma base biológica, mas não adianta o Estado negligenciá-la, porque as pessoas classificam e tratam o “outro” de acordo com as idéias socialmente aceitas. Ademais, o Estado brasileiro nunca teve a tradição de desenvolver políticas de identidade racial junto à população (haja vista a decisão do governo federal de retirar o quesito “cor” ou “raça” do censo oficial em 1970), mas nem por isso o racismo deu sinais de subtração ou perecimento.

Como é de praxe nas coletâneas, o livro peca pela redundância das idéias e, em casos extremos, pela repetição literal de trechos, como o que acontece no primeiro parágrafo da página 72 e no terceiro da página 81. De toda sorte, o livro é uma equilibrada contribuição teórica para o importante debate que está pautando a agenda nacional no momento: como o racismo à brasileira deve ser enfrentado? Ninguém tem mais dúvidas que o Brasil é um país marcado pela desigualdade de oportunidades entre negros e brancos, seja no mercado de trabalho, na esfera educacional, na vida pública, etc.; entretanto, não há consenso acerca das medidas a serem tomadas para se atacar um mal que penaliza quase metade da população brasileira e a impede do pleno exercício da cidadania. Só existe um consenso: não dá mais para ficar de braço cruzado e aceitar a falácia de que o Brasil é o país do paraíso racial.

Petrônio Domingues – Doutor em História/USP. Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail:  [email protected]

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Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica | Edward Telles

Edward Telles nasceu nos Estados Unidos, onde atualmente é professor de Sociologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Viveu no Brasil alguns anos, lecionando como professor-visitante na Unicamp e, posteriormente (1997-2000), trabalhando como Assistente do Programa de Direitos Humanos da Fundação Ford, no Rio de Janeiro. Após publicar diversos artigos em periódicos nacionais e internacionais acerca das relações raciais no Brasil, publica o livro Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica.

A obra está dividida em dez capítulos (Da supremacia branca à democracia racial; Da democracia racial à ação afirmativa; Classificação racial; Casamentos inter-raciais; Segregação residencial; A persistência da desigualdade racial; Discriminação racial; Formulando políticas adequadas; Repensando as relações no Brasil). Seu objetivo é reexaminar os argumentos apresentados na história dos estudos das relações raciais no Brasil; elucidar a lógica interna de funcionamento do sistema racial brasileiro e fazer uma análise comparativa do modelo racial daqui com o dos Estados Unidos (e, em menor escala, com o da África do Sul), por intermédio, sobretudo, do método quantitativo. O livro é fartamente amparado por tabelas e dados estatísticos. Leia Mais

Talking About Identity: Encounters in Race, Ethnicity, and Language – JAMES; SHADD (CSS)

JAMES, Carl E.; SHADD, Adrienne. Editors. Talking About Identity: Encounters in Race, Ethnicity, and Language. 2nd Edition. Toronto: Between the Lines, 2001. 323p. Resenha de: HORTON, Todd. Canadian Social Studies, v.39, n.2, p., 2005.

As editors of a narrative anthology, James and Shadd have compiled a compelling series of stories exploring the complex perspectives of Canada’s racial, ethnic and linguistic minorities. Quotations are used to indicate that the term minorities can be considered by some to be marginalizing to the extent that it positions entire groups of people outside the mainstream majority, perpetuating their Otherness. However, as James states in the introduction, the term also indicate[s] the power relationships in our society: ‘majority’ represents not simply numbers, but the cultural group with political and economic power, as compared to the ‘minority,’ which does not have access to that power (p. 7). Using the work of Stuart Hall, James notes that in talking about ‘identity’ they view this core concept as a ‘production,’ which is never complete, always in process and always constituted within, not outside representation (p. 2). In this vein, James and Shadd have successfully created a book that makes explicit the complex ways personal exchanges and interactions influence and inform understandings of race, ethnic and language identities. It does this by focusing on the vicissitudes of people’s daily encounters and, with each powerfully written story, the reader comes to appreciate the contingent, contextual and relational nature of identities.

The stories are clustered into five themed parts: Who’s Canadian Anyway?; Growing Up Different; Roots to Identity, Routes to Knowing; Race, Privilege, and Challenges; and, Confronting Stereotypes and Racism. Each part provides a space for the contributing authors to voice their individual experiences and interpretations of living in a world that defines people by their race, ethnicity and language.

In a selection from Part I entitled Where Are You Really From?: Notes of an ‘Immigrant’ from North Buxton, Ontario co-editor turned author Adrienne Shadd deftly weaves a story of invisibility and marginalization based on the title question. Shadd illustrates how the four hundred year history of Blacks in Canada has been made invisible in both this country and throughout the world leading to the widespread belief that there is no such thing as a Black Canadian save for recently arrived immigrants. She also draws on her experiences growing up in North Buxton, Ontario a rural Black community near Chatham once famous as a settlement of ex-slaves who escaped from the United States on the Underground Railroad to explore her views on the overlap of caste and class in the public consciousness and the affirmation that can come from education in segregated schools. However, the crux of the story is found in the complexity of daily encounters when varying forms of the question where are you really from are asked. Shadd explains how displays of frustration and annoyance to her answer of Canada and the pursuit of an answer that more satisfies the inquisitor’s conception of a Canadian marginalizes her in her own country. As Shadd explains, you are unintentionally denying me what is rightfully mine my birthright, my heritage and my long-standing place in the Canadian mosaic (p. 15). Still, Shadd is not content to tie up the point in a neat little package. Instead, she ends with an encounter that blows open the discussion again as a Guatemalan Canadian tells her that except for the Native people, the rest of us are just immigrants anyway (p. 16).

While the stories in Part I focus on issues of Canadian-ness, the stories in Part II explore the experiences of growing up, that precarious time when being seen as different or viewing oneself as different can be most traumatic. Stan Isoki, a teacher living in Ontario, relates his encounters with race in a story entitled Present Company Excluded, Of CourseRevisited. Here, Isoki takes the unusual step of updating his first edition manuscript by interjecting more recent commentary and reflection. The effect for the reader is the feeling of a dialogue between who and what the author was and who and what they have become. Isoki, a Canadian of Japanese heritage, shares his feelings of being made to feel both visible and invisible, saving his most potent criticism for several teachers who taught him as a boy and those with whom he worked as a colleague. The criticism is not vitriolic or vituperative, though he has every right to heap mountains of scorn on these individuals given their charge of educating young minds. Instead, Isoki’s critique is a cry for awareness and sensitivity on the part of teachers (and governments) as well as a call to action to re-create a vision of Canada that is truly multicultural.

One of the most insightful stories appears in Part III. Written by Howard Ramos and entitled It Was Always There: Looking for Identity in All the (Not) So Obvious Places, a road side encounter in northeastern New Brunswick is the catalyst for an exploration of the author’s feelings about his father’s identification with Canada and lack of connection to his native Ecuador. This also leads to a period of self-reflection about the ways the author has positioned his father as not quite Canadian and himself as having little or no relationship to his Ecuadorian heritage. Drawing on the work of Ernest Renan and Benedict Anderson, Ramos comes to understand that identity, like nation-building, is a process of forgetting, misinterpreting and re-creating symbols and markers (p. 108). His father, in an effort to become Canadian, forgot his past while subtly sharing that past, that part of who he is, with his son. Ramos, in turn had to acknowledge his misinterpretation of what it means to be Canadian and the boundaries he has created that prevent his father from being who he wishes to be. He also had to recognize his connection to his Ecuadorian heritage as something that was always there, waiting to be embraced in the fullest sense of Canada’s yet to be achieved society based on multiculturalism and acceptance of diversity.

One of the most compelling contributions to the book occurs in Part V. Entitled I Didn’t Know You Were Jewishand Other Things Not To Say When You Find Out, Ivan Kalmar’s piece initially caused me a great deal of discomfort which, I believe, was his intent. Written in a quasi-advice column style, Kalmar refers to the reader as you fostering the feeling of being spoken and occasionally lectured to directly. My feelings of consternation stemmed from indignation at his assumption that I, an educated person, would ever be culturally insensitive. This is mixed with feelings of guilt as I secretly admit to myself that I may indeed have said things or acted in just the ways he describes. Once passed what at times felt like an assault on my enlightened self, I read and re-read his reasoning for offering such advice. In each case, Kalmar thoughtfully demonstrates the challenge of being culturally sensitive, noting that what is often intended as a compliment or search for common conversational ground can also be interpreted as intolerant and insulting. This duality can be frustrating, but just as you feel like you will never be able to get it right or that no matter what you do someone will take offense, Kalmar acknowledges that most people have purity of intent and exhorts that he simply wishes to encourage consideration of his points and reconsideration of our words and actions. The coda to the piece emphasizes a generosity of spirit toward people as they struggle to live in a world characterized by multiple perspectives on identity, saying that even if we occasionally slip up, not to worry as we mean well. As he says, I’m not only a Jew. I am a human being, like you (p. 240).

James and Shadd’s book was written as an effort to make explicit how identities related to race, ethnicity and language influence and inform individuals’ life experiences and relationships (p. 2) and in this regard it succeeds brilliantly. Highly readable, the book is applicable to any university course wishing to delve into the complex world of identities. While not written for secondary school, portions of this book could be used by teachers to introduce a concept, encourage discussion or address a relevant issue. Indeed, there are few more effective entry points into discussions of race, ethnicity and language than the daily encounter.

Todd Horton – Faculty of Education. Nipissing University. North Bay, Ontario.

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Power, Knowledge and Anti-Racism Education: A Critical Reader – SEFA DEI; CALLISTE (CSS)

SEFA DEI, George J. ; CALLISTE, Agnes (Eds.), with the assistance of Margarida Aguiar. Power, Knowledge and Anti-Racism Education: A Critical Reader. Fernwood Publishing, 2000. 188p. Resenha de: BECKETT, Gulbahar H. Canadian Social Studies, v.38, n.3, p., 2004.

Power, Knowledge and Anti-Racism Education: A Critical Reader is a volume edited by George J. Sefa Dei and Agnes Calliste. As the title suggests, this book is indeed a critical, informative, and thought provoking reader on power, race, gender, and education. The book includes eight chapters plus an introduction and conclusion that address questions of racism and schooling practices in a variety of educational settings in Canada, a country that practices multiculturalism and is considered to value and promote diversity. Most Canadians believe that the country’s multicultural policy was established with good intentions and has served the country and its people well. As such, we rarely ask ourselves questions such as: Who is benefiting from the policy and who is not? Why and why not? What are the strengths and limitations of the multicultural policy in empowering people of all origins? What more can be done to ensure equality in education and the larger society? This very well written book asks and answers these and many other very important questions.

Specifically, Power, Knowledge and Anti-Racism Education addresses critical issues such as multiculturalism, racism, equality, exclusion, and gender issues from theoretical as well as practical perspectives. It calls for a critical examination of and going beyond multiculturalism by challenging the status quo with critical anti-racist education. In Chapter 1, Dei contextualizes the book through his discussion of a critical anti-racist discursive theoretical framework that deals foremost with equity: the qualitative value of justice (p. 17). He is critical of multiculturalism arguing that it creates a public discourse of a colour-blind society and he calls for an acknowledgement of and confrontation with differences. According to Dei, confronting the dynamics and relational aspects of race, class, ethnic, and gender differences is essential to power sharing in colour-coded Euro-Canadian contexts.

In Chapter 2, Bedard continues the discussion of multiculturalism and anti-racist education through a deconstruction of Whiteness in relation to historical colonialism, imperialism, and capitalism. He reminds readers of the complexity of the race issue as we still live with the legacy of colonialism. He asserts that through their ideological and intellectual ruling of Canada, as well as many other parts of the world (e.g., Africa and Asia), white people enjoy more privileges that are not afforded to people from other racial backgrounds. In Chapter 3, Ibrahim revisits tensions surrounding curriculum relevance and demonstrates how popular culture, especially Black popular culture (e.g., Hip Hop and Rap), can be utilized to carry out anti-racism education as it relates to students identity formation, cultural and linguistics practices, and sense of alienation from or relation to everyday classroom practice. In Chapter 4, James and Mannette address issues related to visible minority students’ access to publicly funded post-secondary education. Through rich personal accounts from students, they illustrate how these students mediate systemic barriers, gain entry, and experience post-secondary education in Canada.

In Chapter 5, Henry presents a brief reflection of black teachers’ positionality in Canadian universities and schools through three vignettes: her personal experience, two teacher candidates’ experiences, and a veteran teacher’s experience. Through these vignettes, Henry makes a case that black women in Canadian universities and schools were isolated and bore the responsibility of raising the awareness and consciousness of the White people in their work environment (p. 97). She calls on all of us to reflect on every day acts of power and subordination and to use them to develop theories and workable strategies to end inequality (p. 97). In Chapter 6, Tastsoglou discusses various types of borders and the challenges and rewards of cultural, political, and pedagogical border crossing. As a transnational person who crosses various borders daily, I found the discussion to be particularly interesting. Among others, I like the points Tastsoglou makes about otherness (i.e., how all of us can be othered sometime or another) and the detailed illustration of border pedagogy (Giroux, 1991) that can enable us to engage in socially and historically constructed multiple cultural experiences.

In Chapter 7, Wright addresses issues of exclusion and engages in an anti-racist critique of progressive academic discourse in general rather than Canadian multiculturalism per se, using post-modernist, post-structuralist, post-colonialist, feminist, and Afrocentricist discourses. What I found particularly informative in this chapter is Wright’s discussion of what Afrocentricism and feminism are and how they can contribute to our understanding of inclusion and exclusion. In Chapter 8, Calliste presents and discusses some research studies on racism in Canadian universities. This chapter shows racism does exist in Canadian universities overtly as well as through hidden curriculum. As such, it supports Dei’s argument that Canada is a colour-coded society where racism and inequality exist and need to be addressed.

In summary, Power, Knowledge and Anti-Racism Education: A Critical Reader is a book that challenges us to be critical of the multiculturalism that has become part of Canadian social and public discourse. It reminds us that multiculturalism works with the notion of a basic humanness. As such, it downplays inequalities and differences by accentuating shared commonalities among peoples of various backgrounds. It advocates empathy for minorities on the basis of a common humanity, envisions a future assured by goodwill, tolerance, and understanding among all, but it also breeds complacency, creating the illusion that we live in a raceless, classless, and genderless society. For example, Dei points out that, while a raceless, classless, and genderless society is an ideal that we all aspire to and work towards, we must remember that, at present, such a society is a luxury that is only possible for people from a certain racial background, namely white people. He, therefore, urges us to acknowledge that while multiculturalism is an important first step in building an ideal nation, it is anti-racist education that seeks to challenge the status quo and aspires to excellence. According to Dei and Calliste, anti-racism education practice must lead to an understanding that excellence is equity and equity is excellence (p.164). I would recommend this book as a required text for undergraduate and graduate level sociology and educational foundations related courses.

References

Giroux, H. (1991). Post-modernism as border pedagogy: Redefining the boundaries of
race and ethnicity. In H. Giroux (Ed.). Postmodernism, feminism, and cultural
politics: Redrawing educational boundaries
 (pp. 217-56). Albany: State University of New York Press.

Gulbahar H. Beckett – College of Education, Criminal Justice, and Human Services. University of Cincinnati, Cincinnati, OH, USA.

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O Racismo – D’AIRE (VH)

D’ AIRE, Teresa Castro.  O Racismo. [Lisboa]: Sociedade Gráfica, 1996. Resenha de: RIBEIRO, Maria Solange Pereira. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 181-183, mar., 1999.

Racismo em Portugal: qualquer semelhança com o Brasil é mera coincidência.

Teresa Castro introduz essa obra com um dito africano de profunda densidade ideológica: “obrigado meu Deus por ter criado o cavalo, porque se não existisse o cavalo os brancos montavam em cima de nós “e afirma logo no início, sobre a epopéia dos descobrimentos, a miscigenação das raças e a teoria dos brandos costumes, serem tudo mentira – “os portugueses são racistas, sim”.

Essa obra é composta de perguntas e respostas, constituíndo-se um texto que no seu cômputo geral é claro e de leitura rápida e fácil de modo que pode servir facilmente como texto para debates ou discussões em níveis diferenciados. O livro enfoca um assunto de profunda importância na explicitação do racismo em Portugal, desse modo, em circunstâncias e dosagem diversas, poderá ser útil ao ensino em matérias que discutam o preconceito racial. Apresenta-se dividido em 15 entrevistas referentes às seguintes perguntas básicas:- Origem geográfica do entrevistado e de sua família; nível de escolarização e profissão: como e onde mora e qual a cor dos vizinhos; se o entrevistado acredita ter raça mais bonita, mais inteligente; se tem raça que comete mais crimes; se o entrevistado se casaria com alguém de outra religião que não a sua; se o entrevistado se casaria mais facilmente com um pobre ou com um preto, se as leis portuguesas protegem todos da mesma forma, etc.

As respostas a essas perguntas e a outras são surpreendentes e reveladoras sobre a existência de racismo em Portugal.

Diz a autora sobre as pessoas que inicialmente admitiram a existência do racismo em Portugal. quando convidados a falar um pouco mais sobre suas experiências fecharam-se e comentaram que no seu caso pessoal nem tinham muita razão de queixa. Para essas pessoas. que passaram pelas humilhações mais vergonhosas que um ser humano pode ser sujeito, a não-denúncia era como se fosse a única forma de conservar o mínimo de dignidade que os brancos ainda lhes não roubaram. conclui a autora na sua introdução.

Prosseguindo a análise levanta questões sobre o depoimento do dirigente do SOS Racismo que afirmou ser o português mais racista do que os alemães. uma vez que na Alemanha tomam se providências diante de manifestações agressivas de preconceitos e intolerância, enquanto em Portugal as autoridades. através da ausência de atitudes, são coniventes com os agressores.

A maioria dos entrevistados foi unânime em afirmar que os discriminados que vão a tribunal por maus tratos. dificilmente ganham a causa. pois os juízes são racistas. É comum em Portugal a ação dos Skinheads e da Polícia contra grupos minoritários especialmente o preto. Entretanto admitir ter sido discriminado é sentir a humilhação duas vezes, a grande maioria das pessoas discriminadas não dão queixa e dizem não adiantar.

Mas nem todos pensam assim, há negros conscientes de seus direitos e estão mobilizando as autoridades para que façam justiça com as minorias portuguesas ou como dizem os portugueses os “retornados” (ex-colônia Portuguesa). O SOS Racismo está solicitando também que se incorpore nos currículos das escolas secundárias o senso de respeito pelas raças. Trabalhos como o da cantora cabo-verdiana Celina Pereira. vem tentando levar às escolas bilíngües histórias nascidas em Cabo Verde. Um livro com fita cassete foi patrocinado por uma organização não-governamental italiana, editada em três idiomas; italiano, português e crioulo. São canções infantis, trovadinhas, cantigas de roda, confeccionadas dentro de uma ordem pedagógica e didática para as escolas de ensino bilíngüe. Nos Estados Unidos a obra aparece em português, crioulo e inglês e já é utilizada em algumas escolas em Massachusetts, onde a autora recebeu alguns prêmios.

O projeto dirige-se a crianças cabo-verdianas que possuem um índice muito grande de insucesso escolar, pois são obrigadas a aprender a estudar numa língua que não é a delas; entretanto, Portugal não tomou conhecimento do projeto, lamenta Celina. O maior número de africanos que vivem em Portugal é de Cabo Verde, acrescenta a cantora; “eu só queria dar às crianças de Cabo Verde algumas referências culturais dos seus progenitores para poder se situar enquanto seres humanos, saber de onde vêm e para onde vão”.

Este livro, curiosamente, leva-nos a tecer algumas comparações e consequentemente uma compreensão da base do racismo no Brasil, uma vez que estamos na condição de “retornados”, através da língua e de algumas heranças culturais.

Um dos fatos de aproximação é que no Brasil os negros de nível sócio-econômico mais elevado ficam “sem cor” e passam a discriminar a sua raça. Isso ocorre também com o mulato, que para fugir da discriminação se coloca mais próximo do branco de forma ideológica. Dessa forma vai emergindo uma massa sem identidade pois o mulato nem é negro nem é branco, como afirma uma entrevistada- a colonização tirou do africano que vive em Portugal, a cultura, a língua, os costumes e lhes impôs uma vida de humilhação.

Por outro lado a autora coloca a dificuldade das mulheres pretas em se manifestarem e em dar depoimentos aprofundando ao gravíssimo problema da auto-estima.

“Eu quando tenho saudades de ver um preto basta-me olhar para o espelho, e pronto, tão cedo já não preciso de voltar a vê-los na minha frente.”

Sobre esse fato revela a autora, que o curioso nessas mulheres é serem de um status sócio-econômico de classe média e talvez tenham sido ainda mais discriminadas do que os homens por isso tenham tanta pressa em esquecer as humilhações do passado. Uma culpa de todos nós, considera Teresa Castro, cidadãos de todas as raças e que parece repetir-se em muitos casos como recorrência.

Maria Solange Pereira Ribeiro – Doutoranda- Educação- USP. E-mail: [email protected]

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O Brasil e a questão judaica – Imigração, diplomacia e preconceito – LESSER (RBH)

LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica – Imigração, diplomacia e preconceito. Tradução de Marisa Sanematsu. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1995. P.372. Resenha de: IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.364-366, 1996.

Zilda Márcia Gricoli Iokoi – Universidade de São Paulo.

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