Memórias, Narrativas e Patrimônios | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020

A vida humana e suas trajetórias, desde algum tempo, passaram a ter, nas práticas museológicas e de cunho patrimonial, uma centralidade e importância significativas, pois somente ao se considerar as experiências individuais e coletivas é que os atos de preservação se justificam. Tal perspectiva impõe-se, pois, se por um lado, a trajetória é marcada por conexões com territorialidades e materialidades, por outro, toda a produção de cultura material, matéria-prima das ações de preservação, não pode ser entendida afastada da vida humana e suas aventuras.

O dossiê Memórias, Narrativas e Patrimônios reúne 16 artigos que provocam e cruzam discussões sobre práticas patrimoniais, experiências e memórias de modos diversos como os sujeitos vivem e constroem patrimônios e potencializam ações dos agentes envolvidos nesses processos.

Esses artigos evocam antigas e novas abordagens-ancoragens-identitárias, transportando-nos ao universo das narrativas literárias, memorialistas e patrimoniais encontradas nas obras de duas importantes escritoras afro-estadunidenses: Audre Lorde (1934-1992) e Toni Morrison (1931-2019). Nas obras Irmã outsider (LORDE, 2019)1 e A origem dos outros: seis ensaios sobre o racismo e literatura (MORRISON, 2019),2 as autoras compreendem as narrativas pessoais como narrativas políticas, considerando as dimensões (auto)biográficas como necessárias para a compreensão político-existencial. Mesmo sem o apelo específico para a temática da valorização da vida humana, os artigos articulam-se e buscam responder à antiga e atual luta de povos e grupos que passaram, e ainda passam, por violentos processos de subalternização, baseados na “desumanização”, ao tratarem de questões que dão “[…] continuidade ao projeto humano, que é permanecer humano e impedir a desumanização e a exclusão de outros.” (MORRISON, (2019, p. 62). Nessa mesma perspectiva, Lorde (2019, p. 147) chama atenção para a permanência das lutas para impedir a desumanização: “[…] a guerra contra a desumanização é interminável”.

A valorização da vida humana, plural e pulsante tornou-se a tônica do dossiê, destacando-a como principal patrimônio a ser preservado. Essa ênfase resultou na pluralidade de temas e formas de abordagens, nas quais são postos em evidência os campos de negociações e negações, dos diálogos, silêncios e apagamentos presentes nos processos patrimoniais, construídos e vivenciados de forma hegemônica e suas resistências contra-hegemônicas. Dessa pluralidade dialógica, quatro eixos se formaram. O primeiro aborda discussões patrimoniais, sonoridades e comunicação, ainda que a perspectiva de abordagem dessa questão possa surgir do seu oposto, o silêncio. O segundo eixo reflete sobre narrativas e memórias, a partir de identidades construídas em diálogos com o pertencimento territorial e étnico. As narrativas agrupadas no terceiro eixo ancoram-se em reflexões sobre experiências pessoais, a partir de narrativas (auto)biográficas. Por fim, no quarto e último eixo, os artigos abordam sobre a institucionalização de memórias (auto)biográficas e suas políticas.

Abrindo o primeiro eixo Discussões patrimoniais: sonoridades e comunicação, o artigo Patrimônio imaterial: reflexões sobre a rebeldia da matéria, de Ana Clara de Rebouças Carvalho, destaca nesse embate conceitual a “rebeldia da matéria” ao abordar sobre “a natureza contraditória da dualidade material/imaterial”, agregando à discussão “perspectivas pouco usuais ao debate patrimonial, sobretudo, em seus desdobramentos éticos, pragmáticos e políticos”. O segundo artigo, Gramáticas de poder: performance como ferramenta para a divulgação do patrimônio cultural da comunidade surda [Gramáticas de poder: el performance como una herramienta para la divulgación del patrimonio cultural de la comunidad sorda], de Sebastián Carrasco, apresenta argumentos reflexivos sobre a experiência performática da língua de sinais como patrimônio da comunidade surda, através de “três exercícios de criação plástica com pessoas surdas da cidade de Bogotá”. Nessa mesma perspectiva, que aborda a codificação de memórias a partir de signos não verbais, é desenvolvida a reflexão de Clovis Carvalho Britto e Rafael Lino Rosa, no texto Por que plangem os sinos? Ressonâncias biográficas e patrimoniais na paisagem sonora da cidade de Goiás, que apresenta a perspectiva do som como patrimônio e elemento identitário. Nesse mesmo exercício da percepção de vozes e identidades a partir de elementos não verbais, o texto Memórias de um tamborete de baiana: as muitas vozes em um objeto de museu, de Joseania Miranda Freitas e Lysie dos Reis Oliveira, provoca percepções e potencialidades dos discursos presentes em elementos da cultura material, exilados dos seus contextos originais de uso. Por fim, no artigo intitulado As memórias e narrativas benjaminianas como bens patrimoniais, Simioni Franca, em diálogo com Walter Benjamin, reflete sobre a memória como meio de produção de conhecimentos históricos e educacionais e ainda como um bem patrimonial.

No segundo eixo, Narrativas e memória a partir de identidades construídas em diálogos com religiosidades, pertencimento territorial e étnico, Maria Angelita Silva e Nerli Nonato Ribeiro Mori, no texto Quero os meus brincos: memória da infância, patrimônio e identidade na saga do povo Xetá, discutem e denunciam a problemática questão da apropriação de patrimônio cultural de povos originários, através do processo violento de colonização do território nacional e a necessidade atual de reflexão crítica sobre esses processos e seus impactos sobre esses grupos tradicionais. Também na perspectiva do processo colonial, no texto Identidade e relações de força no candombe argentino [Identite et rapports de force dans le candombe argentin], Jean-Arsène Yao discute a presença do Candomblé, herança da presença negra na Argentina, como elemento patrimonial relacionado a estratégias de sobrevivência, no passado e no presente. Em seu texto Palavra patrimônio: narrativas orais no assentamento Rose, Edil Costa aborda a narrativa memorialística e de costumes como ferramenta importante para a estruturação social e fortalecimento de vínculos territoriais de uma comunidade diaspórica em situação de assentamento. Por fim, Rita Dias, no texto Narrativas implicadas sobre memória, cultura e negritude no Recôncavo da Bahia, aborda experiências empreendidas como atividade de extensão universitária da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), nas cidades de Santo Amaro e Saubara, destacando a importância das narrativas de memórias negras e sua implicação com a questão étnico-racial.

O terceiro eixo consta de textos que dialogam sobre Experiências pessoais – narrativas (auto)biográficas, através de entrevistas e depoimentos em blog. Ari Lima, em seu texto Narrativas e memórias sobre a condição negra em Paris, apresenta depoimentos de negros e negras radicados em Paris e suas perspectivas sobre a condição negra, a partir de suas experiências. Encerrando esse eixo, o texto Narrativas: ferramentas do campo patrimonial e potências de vidas, de Raquel Alvarenga Sena Venera e Roberta Fernandes Buriti, evidencia a importância da construção de blogs para discutir sobre a vida humana, em situação de vulnerabilidade e necessária “reconfiguração” de identidades, através de duas histórias de vidas de jovens “diagnosticados com Esclerose Múltipla”. O artigo destaca a potencialidade “das riquezas humanas vivas, capazes de produzir identidades e experiências existenciais de escuta e alteridade, além de pô-las, elas mesmas, como Patrimônios da Humanidade.”

Concluindo este dossiê são apresentados os artigos do eixo Institucionalização de memórias biográficas e suas políticas. Em Culturas do passado-presente: um estudo sobre o discurso da novidade e as políticas patrimoniais em uma Recife de três tempos, Francisco Sá Barreto e Izabella Medeiros investigam a articulação entre cultura, discursos e identidade, a partir da história recente de Recife e suas interfaces com programas de intervenção político-urbanístico-patrimonial. No artigo Pistas biográficas de Henriqueta Martins Catharino e a coleção de arte popular do Instituto Feminino da Bahia, Suely Moraes Ceravolo busca compreender a imbricação biográfica de Henriqueta Catharino e a formação de um Museu de Arte Popular no início do século XX, na cidade de Salvador (BA). No artigo Narrativas expositivas na constituição de memórias identitárias: um estudo de caso, Camilo de Mello Vasconcellos e Otávio Pereira Balaguer abordam sobre a construção de identidades por meio de exposições, entendidas como narrativas, e tomam como estudo de caso o Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto, discutindo a (auto)biografia criada naquele contexto museal. Ainda na perspectiva de abordagens relativas a discursos expositivos, o artigo Uma biografia musealizada: a coleção de Hugo Simões Lagranha no Museu Municipal de Canoas (RS), de Julia Maciel Jaeger e Zita Rosane Possamai, a partir da reflexão relativa à escrita biográfica e coleções museológicas, entendidas como elementos de consagração de memórias, analisam a biografia oficial de uma liderança política da cidade de Canoas (RS) e a exposição de sua coleção no Museu Municipal. No artigo A Casa do Museu (1972-1980): uma comunidade de prática em chave feminina [La Casa del Museo (1972-1980): una comunidad de práctica en clave feminina], de  Leticia Pérez Castellanos, destaca-se a importância da participação feminina durante a realização do projeto A Casa do Museu, uma experiência museológica do Museu Nacional de Antropologia do México, nos anos 1970, em que foram deslocadas exposições e atividades do museu para bairros periféricos. Encerrando o dossiê, o artigo de Carolina Ruoso, Minimuseu Firmeza: arte/vida em defesa de uma história da arte no Ceará, que aborda o tema relativo a museus de artista, a partir de pesquisa realizada sobre o trabalho Minimuseu Firmeza, trabalho desenvolvido pelos artistas Nice e Estrigas, em Fortaleza, no Ceará.

A organização do dossiê inscreve-se no momento em que o planeta foi tomado pela crise da Covid-19, provocada pela disseminação do corona vírus, que colocou em evidência velhas e novas situações de desigualdade e vulnerabilidade, bem como a necessidade de revisão de nossas práticas sociais, com urgência de que sejam assumidas novas perspectivas e estratégias relacionadas ao estar no mundo. Essa situação se agrava em razão do avanço, no Brasil e no mundo, de posturas retrógradas marcadas pelo desrespeito às diferenças, ressaltadas pelo acirramento da violência racial e pelo recrudescimento de ideias e posturas inspiradas em regimes totalitários, autoritários e genocidas. Em momentos como esse, mais do que nunca, é de extrema importância que memórias e experiências pessoais e coletivas sejam registradas em publicações que podem configurar-se como documentos futuros sobre passados, possíveis e vividos.

Desejamos que o dossiê possa contribuir com pesquisas que têm, cada vez mais, ancoragens entre memórias e patrimônios, configurando-as como narrativas da vida, de suas diferentes materialidades e dos objetos que nos constituem individual e coletivamente. Narrar acontecimentos da vida e as formas como a memória e a narrativa vão tecendo sentidos e significados sobre suas múltiplas existências ganham outras expressões, a partir das reflexões e dos diálogos que articulam os textos, abrindo, assim, potências para estudos outros no domínio da pesquisa (auto)biográfica e dos campo do patrimônio.

Salvador, 15 de junho 2020

Notas

1 LORDE, Audre. Irmã outsider. Trad. Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

2 MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre o racismo e literatura. Trad. Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


Organizadores

Joseania Miranda Freitas – Universidade Federal da Bahia.

Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha -Universidade Federal da Bahia.


Referências desta apresentação

FREITAS, Joseania Miranda; CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 05, n. 14, p. 486-489, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

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