Memórias revisitadas: o Instituto Aggeu Magalhães na vida de seus personagens | Antonio Torres Montenegro

Para uma antropóloga que nunca tomei como objeto de estudo as relações sociais ou a ‘cultura’ do campo da saúde no Brasil, entrar em contato com a memória de alguns profissionais ligados à criação e à sustentação de um importante instituto de pesquisa biomédica do país foi um exercício instigante e extremamente revelador. Não que já não tivesse, em relação a muitos atores e instituições dessa área, a impressão clara de um pioneirismo na formulação e implementação de políticas públicas relevantes para a sofrida população brasileira. Nem que não concordasse com diversos analistas da história de nossa ciência sobre a qualidade e o avanço de sua produção acadêmica.

O fato é que Memórias revisitadas: o Instituto Aggeu Magalhães na vida de seus personagens, trabalho de compilação e organização sensível de Antonio Montenegro e Tania Fernandes, acrescenta muito mais. Por um lado, acompanha, “por dentro”, trajetórias individuais de vários profissi-onais, mulheres e homens, enquanto misturam suas carreiras a suas vidas, em conjunturas e ao sabor de contradições que se sucedem na história recente do país. Por outro, retraça a trajetória coletiva de um grupo de atores sociais — que vai além dos entrevistados e alcança tantos outros por eles relembrados — em seu empenho de construir e preservar um projeto. Assim, além da rica contribuição à reconstituição da história de uma época, do campo da saúde no Brasil, de uma instituição pública, de uma geração de técnicos e pesquisadores, o livro levanta várias questões de ordem substantiva e metodológica que vale a pena tentar registrar aqui.

Já nas páginas introdutórias, os organizadores indicam eixos teóricos e metodológicos importantes, que servem de pano de fundo e recortam os 18 depoimentos registrados. Atentos à distinção feita por Halbwachs (1990) e Nora (1993) entre a história, operação intelectual que demanda análise e discurso crítico, e a memória (dos indivíduos ou coletiva), esta última sujeita às permanentes reelaborações das identidades sociais (Hobsbawm, 1995), defendem, no entanto, a necessidade de estabelecer entre esses campos um debate revelador de múltiplas possibilidades (De Decca, 1992). Com isso, revalorizam as formas de “visita ao passado” que convidam seus entrevistados a fazer, assumem abertamente (veja-se, por exemplo, o recurso do destaque, pela repetição, de trechos das entrevistas) seu papel de interlocutores no processo conjunto de reconstrução da memória institucional à luz do presente, e produzem uma história “nova”, densa e de qualidade.

O Instituto Aggeu Magalhães nasceu da vontade de um grupo de profissionais da saúde de criar, em Pernambuco, um centro de estudos sobre helmintoses no Nordeste do Brasil. Projeto idealizado na década de 1930, só se tornou realidade em 1950, sendo inaugurado pouco depois da morte do dr. Aggeu, um de seus principais mentores, num terreno cedido pelo estado ao lado do Hospital Centenário de Recife. Era subordinado ao Ministério da Educação e Saúde, e em 1956, com a criação do Departamento Nacional de Endemias Rurais, foi absorvido por este. Em 1970 foi incorporado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e em 1978, sob a direção de Aggeu Magalhães Filho, transferiu sua sede para o campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente compreende os departamentos de Imunologia, Parasitologia, Microbiologia, Entomologia, Patologia e Biologia Celular e Saúde Coletiva, e é um centro de referência internacional, em filariose, da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Os depoimentos tomados referem-se a experiências nem sempre concomitantes nesses quase quarenta anos de história do instituto. A disposição das entrevistas, entretanto, permite refazer o itinerário da instituição, ao mesmo tempo que o enriquece com percepções de diferentes aspectos. O processo não aparece linear nem tampouco isento de conflitos e choques de opiniões. Estes estão lá, expostos para nosso conhecimento e apreciação, tão reais quanto as convergências, o eventual consenso, a alegria das conquistas e o ritual das comemorações. A questão é que esse processo vivo, às vezes “quente”, envolvendo escolhas racionais e emoções contraditórias, tem um sentido último. Discute-se como fazer, que meios adotar, mas a importância do instituto, a sua preservação, o aprofundamento de sua competência específica, aparecem no fundo como objetivos compartilhados por todos.

Dos 18 entrevistados, nove são médicos, dos quais duas mulheres. Os demais são: biólogos (três, sendo dois homens, ambos egressos do curso de história natural); uma nutricionista; uma educadora sanitária; um guarda sanitário; uma bibliotecária; um contador/administrador; uma administradora de recursos humanos. A grande maioria desses profissionais teve sua carreira ligada fundamentalmente ao instituto, e pelo menos dois, já aposentados, continuam a trabalhar lá. Vários entre os médicos ouvidos — e um biólogo — dirigiram a instituição, sendo um seu primeiro diretor, o médico Frederico Adolfo Simões Barbosa, e outra a diretora no momento de conclusão da pesquisa, a também médica Eridan Coutinho.

Os entrevistados são todos nordestinos, do próprio estado de Pernam-buco e dos estados vizinhos. Alguns nasceram no interior, vieram estudar nas capitais. Sua origem social é bastante variada: entre os médicos, há muitos filhos de médicos, de classe média relativamente alta, mas há também pelo menos três deles de origem social mais baixa, que tiveram que trabalhar desde muito cedo para estudar. Para estes últimos, como para os demais profissionais de nível superior do conjunto observado, o capital cultural transmitido por mães professoras primárias, pais funcionários públicos, ou pela Igreja Católica, parece ter desempenhado papel importante, compensando os parcos recursos materiais disponíveis.

As narrativas das trajetórias recuperam, por um lado, a riqueza dessas experiências sociais diferenciadas, em momentos históricos diferentes. Há, por exemplo, sensíveis — às vezes dramáticas, às vezes espirituosas — reconstituições dos costumes das primeiras décadas deste século: as brincadeiras de infância, o funcionamento das casas, as práticas educacionais, as relações entre pais e filhos, a dinâmica de famílias extensas, as redes de sociabilidade e afetividade, os sonhos e referências de mobilidade e prestígio social.

Por outro lado, retoma-se também o movimento político, em vários níveis, subjacente a todo o processo. Figuras públicas brasileiras, como Agamenon Magalhães — irmão do dr. Aggeu — e Barbosa Lima Sobrinho, governadores de Pernambuco, são freqüentemente mencionadas nos relatos sobre os primeiros tempos do instituto e as necessárias alianças para sua implantação e continuidade. Recupera-se a importância da colaboração de organismos internacionais da área de saúde ou de fomento para o financiamento à pesquisa (como a OMS, a Japan International Cooperation Agency [JICA], a Fundação Rockefeller, esta doadora, já para as pesquisas do dr. Aggeu, dos macacos que um servente apelidou de Rock e Felis…). Destaca-se especialmente o papel da Fiocruz e de alguns setores do Ministério da Saúde e da UFPE, no apoio institucional indispensável.

Porém o que mais ressalta do livro e do conjunto de entrevistas, ao recompor a tessitura do processo social e nos permitir ver através dela, é o retrato de um país em desenvolvimento em sua relação com elites intelectuais estratégicas.

É, num certo sentido, emocionante acompanhar como profissionais de áreas diversas, partindo de experiências sociais distintas, são tomados pelo projeto de modernidade que o Instituto Aggeu Magalhães representa para a região e para o Brasil, e passam parte de suas vidas a defendê-lo. E é também estimulante tentar pensar sobre a relevância de certas experiên-cias históricas e culturais na configuração desse segmento geracional e de sua perspectiva transformadora.

Para além do fato de alguns desses atores já serem, por nascimento, parte da elite intelectual local, está lá, em primeiro lugar, a universidade (pública) em seu papel de pólo científico e cultural e agente multiplicador. Como fica claro, a UFPE foi, para a maioria dos entrevistados, o lugar de uma formação que extrapolou a mera transmissão do conhecimento: ali tiveram contato com professores/pesquisadores importantes, acompa-nharam o debate acadêmico e iniciaram seu aprendizado na pesquisa, conheceram os desafios mais profundos da saúde no país e as disputas que a solução dos problemas envolvia.

Complementarmente a isso, foi recorrente na experiência desses profissionais a oportunidade de formação mais ou menos continuada — ao nível de especialização ou pós-graduação — junto a centros de pesquisa no exterior ou no próprio país. A passagem por instituições, principal-mente na França e nos Estados Unidos, por um lado, foi considerada decisiva para a própria formação e estímulo à pesquisa de médicos, biólogos, nutricionistas.

No Rio de Janeiro, a Fiocruz sempre funcionou como referência central do ponto de vista do pioneirismo na produção acadêmica e na formulação de políticas. Os deslocamentos até a Fiocruz ou as visitas de seus cientistas ao Recife aparecem sempre como oportunidades preciosas de troca de informações e de estreitamento da colaboração científica. O desempenho de funções no Ministério da Saúde, a aproximação com a Universidade de São Paulo (USP) e com a vasta rede de instituições de pesquisa aplicada na área da saúde, espalhada por todo país, também ajudaram a alimentar e animar o trabalho desenvolvido.

Finalmente, como os relatos são muito discretos no que diz respeito a filiações de ordem filosófica ou mesmo político-ideológica de cada ator — salvo algumas exceções isso não fica explicitado — pouco se pode explorar nesse plano. Alguns entrevistados se definem como liberais, outros, também poucos, revelam a simpatia por partidos e posições à esquerda do espectro político. Uma certa postura iluminista, onipotente, de quem persegue as descobertas, sabe o caminho, abre atalhos, busca mas eventualmente prescinde de adesões e concordâncias, parece predominar, e isso num contexto em que relações interpessoais limitadas a “atores principais” parecem dar o tom do processo decisório. De toda forma, orientados ou não por um projeto que transcende a instituição que os reúne, os profissionais que relembram sua história terminam por fazer confluir os sentidos de suas vidas e carreiras e os caminhos do sistema brasileiro de saúde pública em formação.

O livro Memórias revisitadas: o Instituto Aggeu Magalhães na vida de seus personagens tem a qualidade de mostrar, portanto, como parte de uma geração se encontra com seu país, como sua curta trajetória corta a história “longa” da nação, pensa seus problemas sociais mais imediatos e intervém neles, com competência, ousadia e uma vontade política que rompe barreiras. E que merece ser, como o foi, tão bem registrada como testemunho e exemplo da capacidade de projetar e construir um Brasil melhor.

Referências

HALBWACHS, Maurice 1990 A memória coletiva. São Paulo, Vértice.

NORA, Pierre 1993 ‘Entre memória e história (a problemática dos lugares).’ Projeto História 10 (revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP).

HOBSBAWM, Eric 1995 A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras.

DE DECCA, Edgar Salvadore 1992 ‘Memória e cidadania’. Em O direito à memória, patrimônio histórico e cidadania. São Paulo, DPH.


Resenhista

Elina G. da Fonte Pessanha – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Departamento de Antropologia.


Referências desta Resenha

MONTENEGRO, Antonio Torres; FERNANDES, Tania (Orgs.). Memórias revisitadas: o Instituto Aggeu Magalhães na vida de seus personagens. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. Resenha de: PESSANHA, Elina G. da Fonte. História renovada do Instituto Aggeu Magalhães: o encontro de uma geração com seu país. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.3, nov. 2000/fev. 2001. Acessar publicação original [DR]

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