Mercados reproductivos: crisis/deseo y desigualdade | Sara Lafuente-Funes

A ampliação das bioeconomias 1 e dos processos de globalização tem reconfigurado os mercados reprodutivos. Esses processos têm se colocado como estratégias cada vez mais disseminadas de criação de novos modelos de negócios envolvendo a articulação da economia e a capitalização da vida em si, mercantilizando o vivo. Em muitas economias, os mercados assumem um lugar de destaque na área da saúde, sendo crescente a participação de empresas privadas em diferentes segmentos.

Partindo da Sociologia da Ciência, dos Estudos de Ciência e Tecnologia ( Science and Tecnology Studies – STS) e embasado numa perspectiva feminista, o livro de Sara Lafuente Funes enfrenta o desafio de apresentar uma visão ampliada e complexa dos mercados reprodutivos partindo de um rico trabalho empírico, para além da análise do caso espanhol. Atenta ao movimento global, focaliza o local. E a Espanha configura um caso interessante de investigação, pois se tornou um importante eixo de tratamentos em reprodução assistida para a Europa e outros países do mundo. É o primeiro país na Europa e o terceiro no mundo em ciclos de reprodução assistida (desde 2016), e o primeiro no provimento de ovócitos da Europa (desde 2010) (Marre, San Román, Guerra, 2018).

A escrita do texto é cuidadosa, ancorada em rigor acadêmico, mas buscando alcançar parcelas mais amplas de público, não perdendo de vista a dimensão sociopolítica do tema. A pergunta disparadora da reflexão do livro é: que reprodução temos, que reprodução queremos? Não deixa, no entanto, de lado uma outra importante questão originalmente proposta por Sarah Franklin: além de bebês, o que se está reproduzindo com a reprodução assistida? Lafuente Funes problematiza como os corpos das mulheres são produzidos e pensados no âmbito das tecnologias de reprodução assistida. Especial destaque é dado para as transferências de capacidade reprodutiva, situação na qual terceiras partes são convocadas a participar do processo por meio do provimento de gametas e/ou útero de substituição. Enfocando as lógicas mercantis que atualmente governam os processos reprodutivos envolvendo a comercialização de ovócitos e a gestação substituta, busca captar as dinâmicas socioeconômicas e subjetivas.

Para a autora, o crescimento da bioeconomia reprodutiva deve ser compreendido não somente pelas mudanças demográficas com as baixas taxas de natalidade, principalmente, nos países do Norte Global, mas pelos processos de reprodução estarem ocorrendo num contexto de desigualdade, no âmbito de uma crise de cuidado. Lafuente Funes conecta nessa discussão reflexões que vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos com enfoque no caráter bioeconômico das biotecnologias reprodutivas e na constituição de mercados reprodutivos, conforme já assinalado por Waldby e Cooper (2010) e Vertommen, Pavone e Nahman (2021). A denominada crise reprodutiva, é pensada como uma crise multidimensional e sistêmica da própria gestão da vida em conflito com respostas mercantilizadas e individualizadas oferecidas pelos mercados para uma questão de âmbito coletivo. Nesse sentido, a reprodução da vida está relacionada a uma crise de cuidado.

Para Lafuentes Funes, estaríamos diante de uma crise entre desejo e realidade reprodutiva – em que a velha sacralização da maternidade se encontra com o novo mandato do mundo produtivo, da reprodução como uma decisão frente às incertezas e precariedades crescentes do mundo vivido, do mundo do trabalho, da ausência de políticas públicas voltadas para a maternidade e cuidados dos nascidos, da presença tímida dos homens na criação e educação dos filhos, na deficiência de vagas em escolas infantis, num mercado de trabalho que segue penalizando as mulheres por serem mães, do pouco compromisso de empresas privadas e públicas com a reprodução.

Dessa forma, falar de crise reprodutiva é mencionar seu sentido não como sinônimo de queda da natalidade 2 , mas como uma forma de expressar o quanto a reprodução da vida em si está cada vez mais colocada às margens do que é priorizado socioeconomicamente. E isso significa mencionar não unicamente a dimensão biológica da reprodução, mas sobretudo sua dimensão social.

Essa problematização nos remete para o contexto de uma categoria conceitual chave para analisar a reprodução como a estratificação reprodutiva ( Colen, 1995 ). No estudo clássico de Shellee Colen, a reprodução é tratada como um processo extremamente hierarquizado pelo qual algumas vidas são socialmente reconhecidas como merecedoras de serem vividas e reproduzidas e outras não têm seus direitos reprodutivos respeitados, encontram barreiras, pouco incentivo ou mesmo violência no exercício de seus direitos. Consequentemente, a carga do trabalho reprodutivo recai sobre certas categorias de mulheres, crianças e populações de forma desproporcional.

No contexto de reprodução da vida, a carga de cuidado visando manter a vida cotidiana, aquela que é vulnerável e necessita de cuidados, vincula-se com a produção e reprodução de profundas desigualdades, por envolver trabalho pago e não remunerado realizado, muitas vezes por mulheres de classes sociais mais baixas. São essas cadeias de cuidados que possibilitam que necessidades individuais de alguns grupos sociais possam ser resolvidas e outras precisem lutar para ter condições mínimas para assegurar suas vidas.

É importante considerar que ao tempo em que os direitos sexuais e reprodutivos e os direitos das crianças foram reconhecidos como direitos humanos fundamentais, desenvolveram-se políticas neoliberais, conduzindo diversas economias em escala global ao aumento da precariedade do mercado de trabalho, ao rebaixamento de direitos dos trabalhadores à saúde, seguridade social e desmonte de serviços públicos com sua ampliação como oferta privada. Esse quadro provocou uma série de mudanças no âmbito das decisões reprodutivas relativas a ter filhos ou não, e o momento adequado de tê-los, especialmente para as mulheres que continuam tendo um papel central na reprodução.

Devem ser destacadas igualmente as profundas mudanças nos papéis e relações de gênero verificadas nas últimas décadas em várias regiões pelo mundo, com a diminuição das taxas de fecundidade e de natalidade, adiamento para ter filhos ou mesmo a decisão de não os ter, reconhecimento dos direitos de lésbicas e gays à reprodução. Ademais, a reprodução cada vez mais é considerada como um produto do desejo e/ou escolhas reprodutivas racionais (Krause, De Zordo, 2012). Contudo, a dimensão da liberdade de escolha e autonomia reprodutiva ocorre dentro de um conjunto limitado de possibilidades marcados por um contexto social de normas, crenças e ideologias.

O adiamento da maternidade por escolha reprodutiva, por incerteza laboral ou precariedade econômica vivida por muitas mulheres jovens pode transformá-las em candidatas potenciais ao uso futuro de tecnologias reprodutivas dependendo, muitas vezes, da capacidade reprodutiva de terceiras pessoas. Essa situação aliada ao desenvolvimento tecnológico que estabeleceu a criopreservação de ovócitos 3 alimenta o crescimento da bioeconomia reprodutiva. Se anteriormente era necessário a articulação no tempo e no espaço entre a provedora e a receptora de material genético 4 , os avanços nos processos de criopreservação de ovócitos permitiram o surgimento de outras lógicas ( Jociles, 2020 ), como a exportação de gametas e o estabelecimento de bancos de óvulos. O Brasil, por exemplo, desde 2017 importa ovócitos da Espanha para tratamentos reprodutivos ( Brasil, 2018 ; Machin, 2022 ), estabelecendo uma situação relativamente ambígua: ao mesmo tempo em que não permite que doadores no país recebam qualquer tipo de compensação pela prática, importa material genético de contextos em que houve algum tipo de pagamento.

As provedoras de ovócitos na Espanha nos remetem a um contexto de precariedade vivido por muitas mulheres. Essas “doações” de ovócitos na Espanha ocorrem por meio de um sistema regulado em que as provedoras podem receber 1.200 euros ou mais por um ciclo reprodutivo como compensação por riscos e desconfortos assumidos. Para se ter uma ideia, o salário mínimo na Espanha é de 950 euros. Muitas mulheres que participam do processo estão desempregadas ou têm trabalhos precários e chegam a realizá-lo algumas vezes. As desigualdades podem ser consideradas também sob o ponto de vista das hierarquias estabelecidas. Assim, o mercado valoriza mais alguns perfis fenotípicos, como o de mulheres brancas espanholas ou de ascendência europeia, do que de mulheres migrantes latinas, por exemplo, percebidas como sendo portadoras de muitas misturas culturais (Rivas, Álvarez, 2020).

O sistema vigora mediante anonimato (nenhuma das partes pode ter conhecimento da identidade da outra parte) e altruísmo. Ou seja, é valorizada a narrativa de que uma mulher está disposta a ‘doar’ seus ovócitos para ajudar uma outra, que não pode conceber. A questão do anonimato e do altruísmo envolvem um papel primordial na sustentação do mercado reprodutivo espanhol ( Jociles, 2020 ). Essa lógica permitiu o desenvolvimento de vários modelos de negócios, como bancos de óvulos, agências para captação de provedoras para atender demandas específicas (Álvarez, Rivas, Ayala 2020). Esse mercado estabelecido pela transferência de capacidade reprodutiva – seja pelo acesso ao material genético de terceiras, seja pela gestação por substituição – é analisado pela autora como trabalho reprodutivo.

Não se trata de realizar uma condenação da tecnologia, dos desejos reprodutivos ou da lógica de lucro que permeia o sistema, mas de nomear as desigualdades de gênero e intragênero, compreender a relação das cadeias reprodutivas com as cadeias de cuidados, problematizando a possibilidade de existirem modelos alternativos, que favoreçam respostas coletivas para questões consideradas particulares.

O trabalho empírico no qual o livro se baseia foi desenvolvido pela autora em sua tese doutoral, defendida em 2017, na Universidade Complutense de Madri. Nele, foram realizadas entrevistas com especialistas em reprodução assistida e embriologia, provedoras de ovócitos e observação em aulas de biologia e em laboratórios de reprodução assistida. A partir desse contexto, a autora analisa o presente dos mercados reprodutivos como parte da expansão de lógicas que o extrapolam, por meio de conexões com outros mercados e economias.

O livro é dividido em três partes. Na primeira, composta de três capítulos, intitulada “Que é a reprodução assistida?”, esta é analisada a partir de uma perspectiva sócio-histórica e pelo desenvolvimento dos mercados globais e suas realidades locais, com destaque para Reino Unido, Índia, Estados Unidos e Espanha e o crescimento da mercantilização e transferência de capacidades reprodutivas. Na segunda parte, intitulada “Expansão das bioeconomias e crise reprodutiva em num mundo heteronormativo”, ao longo de três capítulos, é analisada a expansão das bioeconomias e a crise reprodutiva a partir da sua configuração baseada num ideal heteronormativo da reprodução. A terceira parte, intitulada “Que aposta política em torno da reprodução (assistida)?”, é formada igualmente por três capítulos, nos quais Lafuentes Funes discorre sobre uma proposta política em torno da reprodução. Analisando, inicialmente, as respostas e reflexões feministas às ‘novas tecnologias reprodutivas’ e aos ‘vientres de alquiler’, a autora aborda os modelos possíveis para os processos de transferência de capacidade reprodutiva e, a partir da reprodução e do mercado existente, cria imaginários sobre a reprodução que podemos construir baseada em um modelo mais coletivo, comunitário, formado tanto por pessoas como por redes intergeracionais de sustentação. Trata-se de apresentar um “manifesto por outra reprodução possível” (Lafuentes-Funes, 2021:38).

É um livro escrito para favorecer um diálogo coletivo intrafeminista com o objetivo de romper posições polarizadas sobre o tema das tecnologias de reprodução assistida, como aquelas existentes entre aquelas que denominam gestação por substituição e outras barrigas de aluguel, entre quem identifica esses processos como trabalho reprodutivo e quem vê exploração e rompimento com uma maternidade sacralizada. É um convite para um diálogo não essencializado sobre que reprodução e mundo queremos.


Notas

1 Bioeconomias são compreendidas como economias baseadas no uso de tecnologias e biomateriais (tecidos, órgãos, células), em que estes são transformados em bio-objetos, que podem ser padronizados, acessados e comercializados pelo mundo. O mercado reprodutivo está inserido nesse processo. Bioeconomia reprodutiva é um termo utilizado para se referir a projetos biocapitalistas de acumulação estruturados pela mercantilização de tecidos reprodutivos (extração, produção, circulação), serviços e dados voltados para a produção de bebês ou tecnologias médicas, profundamente incorporadora de processos preexistentes de exploração dos corpos e trabalhos femininos (Waldby, Cooper, 2010; Vertommen, Pavone, Nahman, 2021).

2 A queda da natalidade é pensada como um problema pelos Estados, particularmente, quando diz respeito a determinados sujeitos concretos, como pessoas brancas, heterossexuais, de classe média ou alta. Ao tempo em que costuma se assinalar que outros sujeitos (pobres, imigrantes) se reproduzem muito.

3 O primeiro nascimento de bebê decorrente de ovócitos congelados ocorreu em 1986. Contudo, dificuldades técnicas para obter bons resultados com o congelamento retardaram o seu uso. Até 2012, era considerada como uma tecnologia experimental. Importante destacar a dimensão ética também envolvida, na medida em que, a captura e transferência de ovócitos (diferente do sêmen) requer uma intensa intervenção farmacológica para estimular a maturação de vários ovócitos ao mesmo tempo e posterior intervenção cirúrgica com sedação para sua extração. O domínio da técnica da criopreservação de ovócitos com melhoria de resultados ocorreu nos últimos dez anos, permitindo o estabelecimento de bancos de óvulos.

4 O tratamento com ovócitos doados (a fresco) envolvia a articulação do processo reprodutivo entre uma doadora e uma receptora determinada. A criopreservação altera essa situação permitindo a mobilidade do material genético em processos de importação e exportação, com o estabelecimento de estoques, de forma similar ao que ocorreu com a indústria de sêmen.


Referências

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BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. 2° Relatório de Importação de Amostras Seminais para uso em Reprodução Humana Assistida. Brasília, Anvisa, 2018 [https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/sangue-tecidos-celulas-e-orgaos/relatorios-de-importacao-reproducao-humana-assistida/2o-relatorio-de-importacao-reproducao-humana-assistida-2018.pdf – acesso em 20 abril 2022].
» https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/sangue-tecidos-celulas-e-orgaos/relatorios-de-importacao-reproducao-humana-assistida/2o-relatorio-de-importacao-reproducao-humana-assistida-2018.pdf

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Resenhista

Rosana Machin – Professora doutora na Faculdade de Medicina, no Departamento de Medicina Preventiva, Ciências Humanas e Sociais em Saúde, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0003-1306-4276


Referências desta Resenha

LAFUENTE-FUNES, Sara. Mercados reproductivos: crisis, deseo y desigualdad. Navarra: Editorial Katakrak Liburuak, 2021. Resenha de: MACHIN, Rosana. O mercado reprodutivo para além da reprodução assistida: bioeconomias em expansão, crise reprodutiva e crise de cuidados. Cadernos Pagu. Campinas, n.66, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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