Mercados reproductivos: crisis/deseo y desigualdade | Sara Lafuente-Funes

A ampliação das bioeconomias 1 e dos processos de globalização tem reconfigurado os mercados reprodutivos. Esses processos têm se colocado como estratégias cada vez mais disseminadas de criação de novos modelos de negócios envolvendo a articulação da economia e a capitalização da vida em si, mercantilizando o vivo. Em muitas economias, os mercados assumem um lugar de destaque na área da saúde, sendo crescente a participação de empresas privadas em diferentes segmentos. Leia Mais

A letra, o corpo e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano – ALÓS (E-CHH)

ALÓS, Anselmo Peres. A letra, o corpo e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano. Florianópolis: Mulheres, 2013. 240p. Resenha de: ALÓS, Anselmo Peres. Uma leitura queer das obras de Manuel Puig, Caio Fernando Abreu e Jaime Bayly. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus,  v.16, n.27, p.215-219, jul./dez. 2015.

Anselmo Peres Alós é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e exerce, desde 2012, a função de Professor Adjunto na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Partindo do pressuposto que toda leitura é política e comprometida, a obra de Alós articula a temática da enunciação da homossexualidade no discurso literário. O autor relaciona as particularidades do campo textual e do campo de enunciação, a fim de construir um projeto poético que conteste a pretensa heterossexualidade normativa no cenário literário latino-americano.

Alós enfatiza as problemáticas da constituição performativa da identidade de gênero e a identidade da literatura entendida como instituição representativa da constituição simbólica da nacionalidade.

O entrelaçamento de seu projeto poético dá-se na análise de três romances escritos por autores de diferentes países da América Latina: El beso de la mujer araña (1976), do argentino Manuel Puig, Onde andará Dulce Veiga? (1990), do brasileiro Caio Fernando Abreu, e o primeiro romance do peruano Jaime Bayly: No se lo digas a nadie (1994).

Seu projeto poético consiste na utilização dos estudos de uma poética queer, que reivindicaria um status que ultrapassa os domínios autorais e auxiliaria na construção de um espaço intervalar revestido de um caráter trans-autoral. Esse espaço é trans-autoral no sentido de preocupar-se com uma poética trespassada pela subjetividade de um grupo social especifico. Há no texto do autor uma articulação de categorias, tais como a intertextualidade e a noção de ideologema, sendo que a última serviria na mediação e construção de uma cadeia intertextual. Assim, seguindo o modelo da poética queer, sua obra não se baseia apenas em descrições das narrativas, mas analisa minuciosamente os romances, bem como subverte e questiona o mundo social no qual eles estão envolvidos.

O livro subdivide-se em quatro capítulos, sendo que o primeiro apresenta o levantamento teórico utilizado na construção de sua argumentação, privilegiando os pressupostos feministas. Segundo Alós, muito além da materialidade corpórea de homens e mulheres, as questões de gênero e sexualidade podem ser pensadas como constructos sociais, pois é apenas nos interstícios da cultura que o corpo e o sexo produzem sentido e significado. Com base nas concepções de Jane Flax, o autor comenta que é nas inscrições do gênero que se declinam as primeiras variáveis identitárias dos sujeitos. Sendo toda construção de gênero relacional, em que o homem é associado ao sujeito universal e a mulher é associada ao “Outro” da cultura, as implicações de gênero não recaem sobre o homem. Dentro desse pressuposto, dá-se toda organização social da produção e divisão sexual do trabalho, bem como as práticas de educação de crianças e os processos de significação de linguagem.

Alós aprofunda-se nas proporções sociais que abarcam a ideia de gênero ao fundamentar-se nas teorias da filósofa estadunidense Judith Butler. O autor explica que a inteligibilidade da categoria sexo sempre é gendrada, ou seja, entendida em termos de gênero. Outra contribuição pertinente, embasada nas pesquisas da psicanalista Nancy Chodorow, é a tentativa de projeção, mesmo que utopicamente, ou como ficção política, de uma identidade para além do sistema de gêneros binários. É sabido que conceitos universais homogêneos tendem a apagar a singularidade dos sujeitos.

Ao problematizar a relação do sexo com o gênero, a própria categoria “pessoa” é desestabilizada. Uma forma de subverter a matriz heterossexual é parodiar algumas práticas embasadas na teoria performativa dos atos de gênero que rompem as categorias do corpo, sexo, gênero e sexualidade, ressignificando e subvertendo a estrutura binária dos gêneros. São enfatizadas as concepções de Butler, em que o performático e o performativo misturam-se para dar origem a uma teoria da intervenção política calcada na paródia e na ironia, partindo-se do pressuposto de que toda a identidade de gênero tem caráter performativo.

Para Alós, quem conhece a condição homossexual “do outro” detém o privilégio epistemológico de falar em nome dele. Assim, o autor articula a epistemologia que denomina “fora do armário”, que seria uma recusa em discutir os termos nos quais os discursos dominantes compreendem a homossexualidade. Ao entrelaçar as teorias de gênero e os estudos queer para leitura comparatista dos romances, destaca o intuito de desestabilizar o imaginário heterossexual através da literatura para, talvez, subverter e reorganizar o imaginário cultural de uma nação, já que a literatura é veículo de representações simbólicas e de valores sociais.

O segundo capítulo da obra dedica-se à análise comparatista das obras analisadas sob o ângulo de uma leitura queer. O autor privilegia uma leitura que valoriza o texto como potencialidade de intervenção política e social, por formular novos valores utilizando-se da negociação no campo cultural e privilegiar textos em que as representações das identidades de gênero se apresentam subvertidos.

Ainda no segundo capítulo, apresenta um levantamento da fortuna crítica do corpus escolhido.

A obra de Alós apresenta caráter inovador em três pontos: 1), discute um romance de Caio Fernando Abreu, que é mais estudado como contista; 2) aborda o primeiro romance de Bayly, o mais controverso dos três romancistas; 3) discute temáticas polêmicas, tais como sexualidade, gênero, homossexualidade, Aids e questões ligadas às políticas heteronormativas em uma sociedade que ainda está moldada ao pensamento patriarcal e conservador.

O terceiro capítulo inicia abordando a obra de Puig, El beso de la mujer araña, que conta a história dois companheiros de cela, Valentín, um preso político da ditadura argentina e Molina, acusado de corromper menores. Ambos têm um relacionamento durante a prisão e Molina, que insiste em declinar-se no feminino, relata a Valentín histórias de filmes aos quais assistiu. Alós comenta a focalização externa, em que o narrador surge nas notas de rodapé, bem como na utilização do recurso itálico para marcar o monólogo interior e o pensamento introspectivo das personagens. Molina é o primeiro focalizador e sua percepção, ao trazer os filmes para oralidade, permite que se compreenda como percebe a divisão social dos gêneros. Ele reivindica para si uma identidade feminina questionando, com isso, a identidade de gênero, de sexualidade e demonstrando a fragilidade das classificações.

O romance Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu, trata da procura pela cantora Dulce Veiga, desaparecida misteriosamente, feita por um jornalista anônimo, nos anos 1980. Porém, a procura real é a empreendida pelo protagonista, em busca de si mesmo, de sua identidade e de uma reconciliação com seu passado.

O romance é guiado por um narrador autodiegético, quase autobiográfico. Já a focalização é predominantemente interna. Alós aponta que, sob a “urbanidade paulistana”, Caio Fernando Abreu evidencia os marginais, os excluídos e os invisibilizados, fazendo emergir um Brasil de rejeitados. Assim, Abreu questiona a compreensão da categoria identidade como algo monolítico, oferecendo uma releitura mais flexível dessa noção.

Em No se lo digas a nadie, Jaime Bayly utiliza-se de uma narrativa heterodiegética, na qual os eventos são descritos por uma voz que se pretende impessoal. O protagonista da trama é Joaquín Camino, filho de pais que pertencem à alta burguesia peruana. A história narra a descoberta da homossexualidade da personagem, ainda na infância, até a idade adulta. O focalizador está associado ao protagonista no que concerne a ele “assumir-se” como homossexual diante dos pais e de uma sociedade conservadora. Dessa forma, a focalização auxilia na profundidade do impacto do discurso homofóbico no romance.

O quarto capítulo é dedicado à análise dos posicionamentos dos focalizadores apresentados no capítulo anterior, identificando os arranjos sociais sugeridos através dos três romances estudados.

Concluindo, Alós observa que, nos três romances, há uma denúncia sobre heteronormatividade, bem como um posicionamento contra esta. Ainda, o autor aponta No se lo digas a nadie como a mais enfática das três obras estudadas, ao apresentar outras posturas fóbicas e discriminatórias. Assim, ao construir seu livro sustentando uma poética queer, Alós traça três pontos fundamentais a partir da leitura dos três romances: o ideologema da letra, o ideologema do corpo e o ideologema do desejo.

Referências

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BAYLY, Jaime. No se lo digas a nadie. Barcelona: Planeta, 1994.

PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. Barcelona: Seix Barral, 1976.

Elenara Walter Quinhones – Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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Comer: necessidade, desejo, obsessão – ROSSI (S-RH)

ROSSI, Paolo. Comer: necessidade, desejo, obsessão. Tradução de Ivan Esperança Rocha. São Paulo: Editora da UNESP, 2014 [2011], 192 p. Resenha de: OLIVEIRA, Carla Mary S. Miríades do comer: por uma compreensão ampla do ato de se alimentar. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [32] jan./jun. 2015.

Paolo Rossi (1923-2012) foi um dos mais destacados historiadores italianos da segunda metade do século passado e começos deste século. Tendo se dedicado ao estudo da História das Ideias na Europa dos séculos XVI e XVII, especializouse no pensamento de Francis Bacon. No Brasil teve, infelizmente, poucos mas inegavelmente marcantes trabalhos publicados além do livro sobre o político e filósofo inglês2, como O passado, a memória, o esquecimento3 e O nascimento da Ciência moderna na Europa4.

Se pensarmos no boom editorial que ocorreu em relação aos livros dedicados à gastronomia nas duas últimas décadas, não causaria espécie que um historiador como Rossi também se voltasse ao campo que abarca o ato de comer. Dentro da História Cultural, por sinal, não se trata de objeto de pesquisa inédito5, tendo despertado o interesse inclusive de pesquisadores avant la lettre como Gilberto Freyre6, muito antes de que ficasse na moda se fazer de gourmet/ gourmand ou de os historiadores brasileiros se dedicarem com mais afinco ao tema – quadro que nos últimos anos vem se modificando significativamente, aliás7.

Em Comer: necessidade, desejo, obsessão8 o que temos é justamente uma das últimas obras de um pesquisador arguto e criterioso, que mesmo partindo de uma proposta temática emersa de seu próprio círculo familiar, não se furta a exercitar com extrema perícia a crítica e o pensamento histórico acerca do objeto que se propôs a destrinchar9. Rossi se colocou a pensar o ato de comer a partir do convite para escrever o prefácio do primeiro livro de uma amiga muito próxima de sua filha, que também vira crescer, Laura Dalla Raggione, psiquiatra especialista no tratamento de distúrbios alimentares10. Dividido em dezenove curtos capítulos, o saboroso ensaio passeia por diferentes aspectos ligados ao ato de comer que, em síntese, pode ser visto como procedimento fundamental, indispensável e inteiramente necessário à manutenção da existência de todos os seres vivos.

Mas o que torna esse livro de Rossi interessante para os historiadores, já que em primeira instância ele não trata de um fato, evento ou processo histórico em particular, mas sim de uma prática que corta transversalmente todas as temporalidades e todas as sociedades, mesmo as mais “primitivas”? Talvez a própria forma escolhida por seu autor para abordar o tema. Nas últimas três décadas é inegável que assistimos à consolidação da História Cultural como campo hegemônico da produção historiográfica. Nesse processo emergiram objetos de pesquisa dos mais variados tipos, e entre eles a alimentação e suas peculiaridades, sem dúvida, alcançou uma posição de destaque e visibilidade extrema não apenas entre os profissionais de Clio, mas também entre o público não acadêmico – e no próprio mercado editorial, como já destaquei – interessado em devorar avidamente o universo pitoresco ligado ao comer e ao beber característicos de outros lugares, outros tempos e outros povos. No entanto, não são essas peculiaridades ou informações pitorescas ou mesmo exóticas o mote escolhido por Rossi para construir sua narrativa. Ele lança seu olhar sobre o comer por meio de seus aspectos mais arquetípicos, ligados não só ao ato cultural de alimentar-se, mas também à escolha religiosa ou ritual pela privação de alimento, às limitações de oferta de gêneros alimentícios em períodos de exceção, ao estabelecimento de interditos e tabus alimentares pelas mais variadas motivações, às transgressões abomináveis como o canibalismo, às maldições diabólicas imaginárias como o vampirismo e, característica grotesca da contemporaneidade, a escolha pseudoestética pela magreza anoréxica das top models ou a condenação moral dos indivíduos que trazem seus corpos acima do peso considerado “normal” ou “saudável”.

Antes de tudo, Rossi se propõe a escrever seu livro a partir da visada da História das Ideias, logo no curtíssimo primeiro capítulo, destacando o inusitado de sua escolha: “A História, ou melhor, as muitas histórias que procuro narrar aqui são repletas de coisas agradáveis, mas também de horrores, às vezes, inimagináveis” (p. 15).

Em seguida ele começa a servir ao leitor o percurso que definiu para pensar os diversos comeres que permeiam a existência humana. Como elemento fundador de qualquer ato do homem civilizado, Rossi destaca a força das ideias: para ele, elas “tornam-se formas de pensamento e geram comportamentos” (p. 17). São as humanas – é fácil pensar aqui no conceito bourdieniano de habitus, admito. Outro fator preponderante para a existência do gênero humano, sem dúvida, se trata da natureza, quaisquer que sejam as interpretações semânticas que lhe sejam dadas.

A natureza está ligada tanto ao estado natural, primeiro, primitivo das coisas, como também àquilo que está subjacente à própria vida, posto que é dela, da natureza, que advém o sustento diuturno dos seres vivos em todo o planeta: “Uma grande parte da noção comum ou corrente de natureza é ainda hoje, como era nas origens, resultado de projeções antropomórficas, entremeadas por mitos e ligadas a impulsos irracionais” (p. 21).

Na perspectiva analítica escolhida por Rossi fica claro que, para ele, a natureza se trata de algo pré-existente ao homem e, a partir do momento em que este passa a interferir nela a própria relação homem/ natureza atinge patamares cada vez mais complexos de interação, retroalimentando-se dessa própria relação e de suas consequências. Ora, neste processo o que se constrói na verdade é aquele algo disforme e de contornos indefinidos e fluidos a que chamamos de cultura.

Lembrando o antropólogo Marvin Harris, Rossi indaga:

[…] dado que todos os que pertencem à espécie humana são onívoros e dotados de um aparelho digestivo absolutamente idêntico, como é possível que em alguns lugares do mundo sejam consideradas iguarias coisas como formigas, gafanhotos ou ratos, que em outros lugares parecem ser imundícies repulsivas? (p. 23-24) Num entendimento de clara influência antropológica, ele tenta mostrar os relativismos intrínsecos a qualquer construto cultural e, obviamente, privilegia a apresentação da diversidade envolvida no ato de alimentar-se, pois para ele “Comer não envolve apenas a natureza e a cultura. Situa-se entre a natureza e a cultura. Participa de ambas” (p. 29).

Retornando ao pensamento de Lévi-Strauss, o historiador italiano destaca o quanto a alimentação traz, em suas práticas, muito do grupo que a reproduz cotidianamente:

As formas de alimentação podem dizer algo importante não apenas sobre as formas de vida, mas também sobre a estrutura de uma sociedade e sobre as regras que lhe permitem persistir e desafiar o tempo. (p. 30) Em outros termos: a alimentação, seja no que se refere àquilo que lhe serve como ingrediente, seja na forma como ela é preparada ou mesmo praticada, está permeada de elementos culturais profundamente relacionados aos aspectos identitários tanto do próprio indivíduo quanto, especialmente, do grupo ao qual ele pertence e com o qual se identifica enquanto ser social. Nesse sentido, comer deixa de ser algo natural, automático e instintivo quando o homem começa a interferir diretamente em todas as etapas envolvidas nesse processo. Ao selecionar determinadas espécies vegetais, primeiro para simples coleta na vegetação virgem, depois para cultivo; ao escolher determinado animal na caça, em detrimento de outros; ao começar a criar e domesticar certas espécies com o intuito de abatê-las mais tarde para seu próprio consumo; ao desenvolver apetrechos, ferramentas e técnicas variadas de cocção; tudo se relaciona a escolhas culturais motivadas pelos mais diversos fatores, alguns ligados às condições objetivas de existência, outros dirigidos por questões subjetivas, de fundo religioso, político ou social:

O alimento não é apenas ingerido. Antes de chegar à boca, ele é preparado e pensado detalhadamente. Adquire o que geralmente se chama de valor simbólico. O preparo do alimento marca um momento central da passagem da natureza à cultura. (p. 32) Do mesmo modo que o preparo da comida se constitui num ato de afirmação identitária e definição cultural, Rossi também salienta o quanto a privação voluntária de alimento por meio do jejum se trata de um dos mais antigos caminhos inventados para se alcançar a purificação espiritual e a transcendência:

O desejo constitui a origem do mal e o desejo da comida é um dos mais enraizados e profundos. Distanciar-se dos desejos faz parte do caminho da salvação. (p. 35) Nesse sentido, não espanta que o desejo e o consumo exagerado de alimentos, no Ocidente cristão, tenham sido associados, desde muito cedo, ao pecado, e que este pecado tenha sido nomeado – a gula – e que sobre ele tenham recaído condenações morais das mais diversas, justamente pelo fato de que não podemos viver sem alimento, mas entregar-se à lascívia gastronômica seria admitir de maneira veemente o lado animal de todo ser humano, diametralmente oposto àquele que busca a salvação divina:

A história da gula foi descrita muitas vezes como um pecado capital detestável, que, como a luxúria, está enraizado na corporeidade humana. Esse enraizamento, no caso da gula, parece indelével. Pode-se renunciar à sexualidade e levar uma vida casta, mas não se pode viver sem comer.

(p. 47) No entanto, à sociedade ocidental contemporânea, que já não exalta tanto assim o jejum ascético – embora ele continue a ser visto com bons olhos pela Igreja Romana – se impõe outra urgência: como aceitar que milhões passem fome, quando a produção atual de grãos, animais e derivados e hortifrutigranjeiros seria suficiente para garantir a segurança alimentar de uma dieta de 2000 calorias diárias a todos os seres humanos do globo terrestre? Para Rossi, as grandes fomes europeias da Idade Média ou mesmo do século XX tiveram motivações diversas, contudo expõem igualmente a vulnerabilidade da vida: a morte por inanição já dizimou exércitos como o de Napoleão na frente russa, prisioneiros de campos de concentração na Polônia ocupada pelos nazistas, mas hoje ela atinge principalmente as nações periféricas e mais pobres da África e da Ásia. E essa indiferença dos países ricos em resolver esta questão incomoda a Rossi de maneira contundente:

Destes horríveis e inaceitáveis massacres, em geral, permanece apenas uma lembrança que nos incomoda, e continuamos a viver (com uma espécie de remorso oculto, mas tolerável) […]. (p. 55) Se a fome “acompanha toda a história humana, desde a mais remota antiguidade até o presente” (p. 57), fica claro que no século XX e mesmo hoje essas situações de falta de alimentos, especialmente para as populações mais pobres, “foram muitas vezes provocadas por escolhas políticas erradas ou equivocadas” (p. 66).

Por outro lado, a recusa pela ingestão de alimentos pode também ter um caráter político, de protesto, como último recurso para se conseguir que uma reivindicação considerada justa seja atendida. A greve de fome como instrumento político já era utilizada, segundo Rossi, na antiga Índia e na Irlanda da Idade Média. Contudo, foi somente no século XX que, no Ocidente, ela se tornou uma tática comum de ação reivindicatória. Talvez a figura pública mais conhecida que a praticou diversas vezes, numa perspectiva mundial, tenha sido Mahatma Gandhi. Em síntese, fica claro que a greve de fome é sempre um ato extremo e que, muitas vezes, pode ter um desfecho fatal e não atingir seus propósitos quanto ao objetivo que a motivou.

Tem-se já como certo que um dos maiores estupores causados pelo advento do Novo Mundo no imaginário europeu do final do século XV foi a notícia de que os gentios selvagens recém contatados pelos navegadores praticavam o maior dos interditos já imaginados pelo homem, presente na mitologia grega e também na de diversos outros povos do Oriente e do continente africano: o canibalismo. No décimo capítulo de seu livro Rossi se dedica a buscar a compreensão dos arquétipos atávicos relacionados a tal prática, não sem antes destacar como a visão construída sobre o tema entre os povos europeus da Idade Moderna causava discussões profundas, de cunho não apenas religioso, mas também filosófico e ético:

[Montaigne, em seus ‘Ensaios’, de 1580,] faz referência a tribos do Brasil: para julgar os povos não europeus não é possível nem lícito adotar o ponto de vista europeu e cristão. A humanidade se expressa em uma variedade infinita de formas e ‘cada qual denomina barbárie aquilo que não faz parte de seus costumes’. (p. 77) Mais ainda, Rossi destaca o fato de que comer nacos de um defunto não era mais ou menos selvagem do que jogar concidadãos aos cães raivosos por motivos de fé, como ocorrera à época de Montaigne e que o próprio filósofo condenara, em meio às guerras religiosas que sacudiram a França sob os Valois.

As referências ao canibalismo, embora hoje pareçam inusitadas, são frequentes na cultura europeia desde há muito tempo: vão dos arquétipos psicanalíticos de Freud em Totem e Tabu, de 1912/1913; já marcavam presença no teatro de Shakespeare, como em A Tempestade, ou nos romances do irlandês Jonathan Swift no século XVIII. Mesmo de forma figurada, o ato de devorar seu semelhante, aniquilá-lo e sorver a sua essência, mantém sua força. Rossi destaca como exemplo desta força o Manifesto Antropofágico dos modernistas brasileiros, pleno de metáforas, no qual a redenção possível ao colonizado americano é aquela representada pelo ato de devorar a civilização europeia.

Mas Rossi vai além disso, ao tratar do – talvez – maior interdito que a civilização ocidental pode ter para si. Na verdade ele mostra diversos eventos, desde a Idade Média, onde os europeus, como que tomados por um frenesi catártico, praticaram o canibalismo, em praça pública ou em pocilgas infectas. Isso só para nos mostrar o quão pouco nós, ocidentais, sabemos pouco de nossa própria História sobre o tema.

Seguindo sua jornada pelo ato de alimentar-se, Rossi leva o leitor àquele mundo fantasioso dos vampiros, bruxas e feiticeiros. Tendo os bebedores de sangue como mote, ele descortina no 11º capítulo de seu livro a enorme constelação de crenças sobrenaturais que povoaram o imaginário europeu a partir da Idade Moderna e que incluíam a possibilidade de hábitos alimentares dos mais vis e ignominiáveis:

Acreditar na bruxaria, por exemplo, significava acreditar, em parte ou na totalidade, nas seguintes coisas: seres humanos que voam, que se acasalam durante a noite com o diabo, que se transformam em animais (geralmente gatos ou lobos), que causam doenças, tempestade, fome. (p. 92) Mais do que crer na bruxaria, acreditava-se que determinados indivíduos arrebatados pelas forças do mal, involuntária ou conscientemente, eram capazes de tanto praticar atos de canibalismo, como os licantropos, quanto de sobreviver alimentando-se apenas de sangue humano. A crença ferrenha de que realmente existiam vampiros povoou prodigamente os contos populares, a literatura das culturas hegemônicas e o imaginário do senso comum por toda a Europa. Basta lembrar-se da estúpida crueldade de alguns governantes que, com seus atos vis, levaram à criação de mitos e histórias dantescas influenciadas por personagens como Vlad Tepes, na Transilvânia, atual Eslováquia, que tinha o hábito de empalar vivos seus inimigos e inspirou a figura do Conde Drácula, ou da condessa Erzsébet Báthory, que viveu em antigos territórios do reino da Hungria, personagem real e de temperamento psicótico, que instada por crenças mágicas se tornou a primeira serial killer registrada nos tribunais do mundo moderno ao ser condenada por assassinar mais de 600 jovens entre 1585 e 1610, acreditando que ao beber o sangue dessas donzelas teria garantida a juventude eterna. Sua história, que ela mesma registrou num diário que serviu de prova material em seu julgamento, também inspirou, assim como Tepes, romances românticos sobre vampirismo no século XIX. Como lembra Rossi:

Desde os tempos antigos, nos mitos e rituais que envolvem o sangue está presente tanto a ideia de que existem pessoas que se alimentam de sangue humano, como a ideia de que uma oferta de sangue pode purificar uma pessoa ou uma comunidade e contribuir para a sua salvação. (p. 93) Inegavelmente, a estirpe dos bebedores de sangue sobrenaturais existe apenas no campo fictício. No entanto, se trata de um arquétipo de tanto apelo e força imagética que continua, até hoje, a fornecer personagens para os romances – atualmente pensados predominantemente para o público juvenil – e toda a indústria cultural que lhes segue, como os seriados de TV, blockbusters do cinema, histórias em quadrinhos e games eletrônicos.

Mas Rossi segue com seu ensaio nos apresentando, no capítulo seguinte e com certo desencanto, a grande obsessão que a comida se tornou para a sociedade ocidental contemporânea. Praticamente todas as áreas do conhecimento humano têm algo a dizer sobre o assunto. Fala-se sobre o que se deve ou não comer; sobre os nutrientes de cada produto alimentício; sobre possíveis contaminações químicas naquilo que se ingere; sobre animais de abate criados à base de hormônios; sobre a necessidade de se buscar hábitos e produtos alimentares saudáveis e naturais, cultivados/ criados de forma orgânica, como forma de garantir a longevidade e a qualidade de vida; sobre veganismo; sobre intolerâncias e restrições alimentares adquiridas ou impostas por questões terapêuticas… Tudo envolvendo a comida se tornou digno de nota na contemporaneidade, inundando a mídia e o cotidiano ocidental com relatórios, documentários, programas de TV, livros, revistas e, é claro, trabalhos acadêmicos:

O tema foi discutido por tuttologos [ – pessoas “especialistas” em tudo, neologismo irônico de Rossi – ], filósofos (os dois grupos tendem a se unir), jornalistas, sindicalistas, aspirantes a políticos, políticos, cronistas e publicitários, teólogos, médicos, defensores da medicina alternativa e da antiglobalização, romancistas e amadores. (p. 101) Num tom que flerta com o sarcasmo, o historiador italiano vai mostrando a pseudo-sofisticação presente na descrição de pratos, vinhos e produtos como o azeite, nas mais diversas mídias, como sites especializados, catálogos de venda ou mesmo num singelo cardápio de qualquer pequeno restaurante hipster. Incomoda a Rossi a onisciência arrogante dos chefs televisivos, a profusão de outdoors com temas alimentares e também a invasão de maîtres e connaisseurs na privacidade dos comensais, com suas entediantes explicações sobre a essência daquilo que, em última instância, nos serve apenas como combustível, mesmo que esperemos ou suponhamos algum prazer ao introduzi-lo em nosso organismo.

Concordando com a antropóloga italiana Alessandra Guigoni, Rossi vaticina que neste terceiro milênio em que vivemos a alimentação tende a tornar-se um dos grandes campos da Antropologia, justamente pelo fato de que em nosso planeta existe uma abundância de alimentos que, de modo estupefactamente paradoxal, parece constituir-se cada vez mais em uma obsessão. Como sinal dessa distorção, o experiente historiador destaca o surgimento de distúrbios alimentares como a ortorexia, uma preocupação patológica por alimentos saudáveis, em que os indivíduos passam a guiar suas vidas pela busca de uma inalcançável perfeição alimentar.

Por outro lado, Rossi também apresenta um tipo de atitude para com a comida que pode, à primeira vista, parecer positiva e salutar mas que, em seu entendimento, trata-se de algo tão propenso à distorção quanto a seu inverso: a crescente e ferrenha tendência de valorização de produtos e hábitos regionais em contraposição à globalização padronizante de sabores e paladares, resultado da lógica do capital e da busca insana por lucros também pelos grandes conglomerados alimentares, que podem ir da rede de fast food à agroindústria. Para ele, instalou-se na sociedade contemporânea um mal estar muito próximo àquele preconizado por Freud na primeira metade do século XX, embora de características diametralmente opostas:

enquanto o psicanalista vienense atribuía tal sensação à renúncia “civilizada” à satisfação dos instintos, hoje ela estaria ligada a um imperativo do gozo, calcado nas necessidades impostas pelo consumismo exacerbado estimulado pelo mercado.

Em meio a este mal estar pós-moderno, nossa sociedade se afunda em paradoxos alimentares, com uma multidão de obesos se contrapondo a um número praticamente equivalente de famintos, num mundo que há muito já produz muito mais além do que o suficiente para que o estigma da fome não existisse mais sobre a face da terra. A questão, nesse caso, extrapola os limites médicos ou nutricionais e se expande até o campo político-ideológico: que mundo desejamos deixar a nossos descendentes? Um onde exista uma insípida padronização de sabores e hábitos alimentares, fonte de altíssimos lucros para os grandes conglomerados multinacionais, movidos pelo apetite sem limites do capitalismo voraz? Ou num mundo onde sejamos conscientes de nosso consumo e privilegiemos o mercado local, os produtores familiares e a sustentabilidade? Rossi demonstra como essa questão, apesar de suscitar debates acalorados no mundo contemporâneo, ainda está muito longe de ser resolvida. Trata-se, sobretudo, de uma questão filosófica com profundos desdobramentos no mundo das coisas práticas e que, quando pende para o lado da exaltação de uma vida “natural” ou “primitiva”, organizada em moldes ancestrais, é vista por Paolo Rossi como algo ilusório, inalcançável e até risível. Talvez a idade avançada tenha feito o historiador italiano perder a esperança pelo advento de uma sociedade mais justa, e me pergunto mesmo se ele não estaria realmente correto em seu modo de ver a atual cena mundial.

Essa ideia da volta à natureza e a uma idílica ancestralidade, aliás, motiva outro importante questionamento no capítulo XV de Comer. Trata-se de nos indagarmos se realmente houve, ao longo da História, algum momento em que a comida ingerida pelas mais diversas classes sociais tenha sido realmente genuína, isto é:

que não estivesse sofrendo adulterações intencionais, motivadas pela sanha pelo lucro fácil ou pela escassez de alternativas de melhor qualidade para compor um cardápio nutritivo, saudável e saboroso. Essa falta de genuidade poderia ser causada tanto pela trapaça de um moleiro ou comerciante que alterasse a composição da farinha que vendia, acrescentando-lhe impurezas e outros grãos mais baratos para aumentar seu volume e peso, assim como pela introdução na dieta cotidiana de animais, insetos e plantas que, não houvesse a escassez causada por guerras ou intempéries, jamais teria ocorrido.

Iguarias como as trufas, por exemplo, fungos subterrâneos comestíveis que os europeus começaram a consumir há mais de 3 mil anos em momentos de penúria alimentar, devido a seu alto grau proteico e sabor soberbamente agradável, eram algo que apenas cães de caça, javalis e porcos selvagens se interessavam em degustar na mais remota Antiguidade. Mas as coisas mudaram muito e hoje apenas um quilograma da raríssima trufa branca da região de Alba, no Piemonte italiano, pode alcançar estratosféricos € 10 mil se não se tratar de uma peça única, pois essas, mais raras ainda, quando porventura são encontradas, verdadeiras gigantes de 750g ou mais, já ocorreu de serem leiloadas por mais de € 100 mil no mercado da alta gastronomia europeia.

Peculiaridades à parte, estranhezas deixadas de lado, Rossi não crê que esse interesse crescente por uma “volta aos bons tempos de outrora” tenha, realmente, algo a contribuir ou que torne a vida em si melhor. Por trás do discurso do ecologicamente correto e da sustentabilidade alimentar ele enxerga interesses tão escusos como os do agronegócio transgênico ou do fast food: ali também há multinacionais interessadas em aumentar lucros, atingindo nichos de mercado cada vez mais específicos e delimitados, não nos enganemos com as aparências ou com o discurso cheio de pompa e circunstância. De forma irônica, o experiente intelectual italiano assevera:

O mundo seria mais bonito, mais natural, mais rico e com maior biodiversidade – é este e não outro o significado de tais mensagens – se os equilíbrios não tivessem sido alterados, se a natureza ainda estivesse intacta e se o homem tivesse se mantido, como no início, apenas como uma espécie de símio, ou melhor (na sábia definição de Vico, que não era primitivista), ‘como uma besta toda espanto e ferocidade’. (p. 128) No XVI capítulo de seu livro Rossi aborda as questões ligadas ao comer em excesso e sua principal consequência, a obesidade. O texto parte de uma aproximação muito interessante com o universo da neurociência e das descobertas fisiológicas sobre o olfato e, consequentemente, o paladar. Ainda dirigindo sua crítica ácida ao universo de sommeliers e/ ou experts que entopem a atenção dos simples mortais com sua verborragia “literária” inócua sobre as qualidades de vinhos, azeites, vinagres e até mesmo água mineral11, Rossi deixa bem claro que tudo isso pouco importa para os mecanismos corpóreos e biológicos ligados à identificação do gosto e sua associação, no nível cerebral, ao prazer:

O que denominamos gosto é uma forma de sensibilidade elaborada por um sistema sensorial específico que está na origem dos sabores, tais como o doce, o salgado, o azedo e o amargo […]. As relações entre motivação, prazer dos sentidos e ingestão alimentar dão lugar a uma intrincada teia: necessidade, desejo e prazer surgem em redes neurais que se sobrepõem. (p. 134-135)

É justamente a partir desta teia intrincada citada por Rossi que surge a obesidade, individualmente. Mas o excesso de peso de grande parte da população mundial também é consequência da vida moderna, da má qualidade nutricional dos alimentos e de tantas outras vicissitudes contemporâneas. O problema é complexo e merece uma urgente e comprometida abordagem multidisciplinar, é o que fica evidente: impossível não passar a enxergar com outros olhos um naco de carne gordurosa depois de ler estas ponderações.

Daí vem o mote para o capítulo seguinte, onde o historiador italiano aborda de forma sucinta as diversas doenças relacionadas ao ato de comer. Enquanto alguns males como a gota12 eram associados àqueles que comiam bem, outros certamente afligiam aqueles que não tinham a mesma sorte e padeciam de uma debilitante carência alimentar.

Nos dois últimos capítulos de seu ensaio Rossi se debruça, de fato, sobre o comportamento ligado à alimentação que forneceu o mote primeiro para iniciarse sua escrita: a anorexia, distúrbio estudado pela psiquiatra Laura Ragione, a amiga de infância de sua filha. O círculo se fecha, mas permanece certo estupor com o fato de que jovens cultuem e troquem entre si, pela web, formas de evitar a absorção de nutrientes pelo organismo e atingir o ideal de magreza endeusado pela moda e pela grande mídia. Percebe-se que o historiador italiano não atina de completo qual o sentido de tanta insensatez. Enquanto multidões ainda fenecem pela falta de alimento mundo afora, teenagers que jamais terão a mesma privação por questões econômicas ou geopolíticas escolhem não se alimentar simplesmente por não estarem satisfeitos com o próprio corpo, por desejarem atingir um corpo ideal improvável e inalcançável, posto que é invenção pura, idealização estética, imposição midiática. Fica a indignação.

Notas

2 ROSSI, Paolo. Francis Bacon: da magia à ciência. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini.

Londrina: EDUEL; Curitiba: Editora da UFPR, 2006 [1957].

3 ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da História das Ideias. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora da UNESP, 2007 [1991].

4 ROSSI, Paolo. O nascimento da Ciência moderna na Europa. Tradução de Antonio Agonese.

Bauru: EDUSC, 2001 [1997].

5 Observe-se, por exemplo, a profusão de obras historiográficas publicadas, não só no Brasil mas também no exterior, nos últimos anos. Ver: ADAMOLI, Vida. La bella vita: life, love and food in Southern Italy. Chichester: Summersdale Publishers, 2002; ALBALA, Ken. Food in Early Modern Europe. Stockton, EUA: Greenwood Press, 2003; BARNES, Donna R. & ROSE, Peter G. Matters of taste: food and drink in Seventeenth-Century Dutch art and life. Albany: Albany Institute of History & Art; Syracuse: Syracuse University Press, 2002; BENDINER, Kenneth. Food in painting: from the Renaissance to the present. Londres: Reaktion Books, 2004; DE JEAN, Joan. A essência do estilo: como os franceses inventaram a alta-costura, a gastronomia, os cafés chiques, o estilo, a sofisticação e o glamour. Tradução de Mônica Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 [2005]; FLANDRIN, Jean-Louis & MONTANARI, Massimo (orgs.). História da alimentação. Tradução de Luciano Vieira Machado & Guilherme João de Freitas Teixeira. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2009 [1996]; FREEDMAN, Paul (org.). Food: the History of taste. Berkeley: University of California Press, 2007; GRIMM, Veronika E. From feasting to fasting – the evolution of a sin: attitudes to food in late Antiquity. Londres: Routledge, 1996; HELSTOSKY, Carol. Garlic & oil:politics and food in Italy. Oxford: Berg, 2004; KELLY, Ian. Carême: cozinheiro dos reis. Tradução de Marina Slade Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 [2003]; MacDONALD, Nathan. Not bread alone: the uses of food in the Old Testament. Oxford: Oxford University Press, 2008; MARTIN, A. Lynn. Alcohol, sex, and gender in Late Medieval and Early Modern Europe. Basingstoke: Palgrave, 2001; McWILIAMS, James E. A revolution in eating: how the quest for food shaped America. Nova York: Columbia University Press, 2005; MONTANARI, Massimo (org.). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. Tradução de Valéria Pereira da Silva. São Paulo: Editora SENAC-SP; Estação Liberdade, 2009 [2006]; __________. Comida como cultura. Tradução de Letícia Martins de Andrade. 2. ed. São Paulo: Editora SENAC-SP, 2013 [2004]; PANCORBO, Luis. El banquete humano: una historia cultural del canibalismo. Madri: Siglo XXI, 2008; PARASECOLI, Fabio. Bite me: food in popular culture. Oxford: Berg, 2008; PILCHER, Jeffrey M. Food in World History. Nova York: Routledge, 2006; QUELIER, Florent. Gula: história de um pecado capital. Tradução de Gian Bruno Grosso. São Paulo: Editora Senac SP, 2011; RAMOS, Anabela & CLARO, Sara. Alimentar o corpo, saciar a alma: ritmos alimentares dos monges de Tibães, século XVIII. Porto: Edições Afrontamento, 2013; SARTI, Raffaella. Casa e família: habitar, comer e vestir na Europa moderna. Tradução de Isabel Teresa Santos. Lisboa: Editorial Estampa, 2001 [1999]; SPANG, Rebecca L.A invenção do restaurante: Paris e a moderna cultura gastronômica. Tradução de Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2003 [2000]; STRONG, Roy. Banquete: uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa. Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 [2002]; TALLET, Pierre. História da cozinha faraônica: a alimentação no Antigo Egito. Tradução de Olga Cafalcchio. São Paulo: Editora SENAC-SP, 2005 [2002]; THIS, Hervé & GAGNAIRE, Pierre. Cooking: the essential art. Tradução de M. B. DeBevoise. Berkeley:University of California Press, 2008; WILKINS, John M. & HILL, Shaun. Food in the Ancient World. Malden, EUA: Blackwell, 2006.

6 FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. 5. ed. revista. São Paulo: Global, 2007 [1939].

7 Exemplos do incremento do interesse de historiadores brasileiros sobre o tema não faltam. Entre as publicações mais recentes, ver: CANDIDO, Maria Regina (org.). Práticas alimentares no Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2012; COUTO, Cristiana. Arte de cozinha: alimentação e dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora SENAC-SP, 2007; DÓRIA, Carlos Alberto. A formação da culinária brasileira. São Paulo: Publifolha, 2009; FERNANDES, João Azevedo. A espuma divina: sobriedade e embriaguez na Europa Antiga e Medieval. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2010. __________. Selvagens bebedeiras: álcool, embriaguez e contatos culturais no Brasil colonial (séculos XVI-XVII). São Paulo: Alameda, 2011; HUE, Sheila Moura. Delícias do Descobrimento: a gastronomia brasileira no século XVI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009; LELLIS, Francisco & BOCCATO, André. Os banquetes do imperador. São Paulo: Editora SENAC-SP; Boccato, 2013; LODY, Raul (org.). Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia. São Paulo: Editora SENAC-SP, 2013; MAGALHÃES, Sônia Maria de. A mesa de Mariana: produção e consumo de alimentos em Minas Gerais (1750- 1850). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2004; PANEGASSI, Rubens Leonardo. O pão e o vinho da terra: alimentação e mediação cultural nas crônicas quinhentista sobre o Novo Mundo. São Paulo:Alameda, 2013; SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no Brasil colonial. São Paulo: Editora SENAC-SP, 2005; VARELLA, Alexandre C. A embriaguez na conquista da América: medicina, idolatria e vício no México e Peru, séculos XVI e XVII. São Paulo: Alameda, 2013.

8 Devo destacar que cheguei a este livro de Rossi por puro acaso, graças a meu interesse gastronômico, pois o encontrei perdido na seção de livros de receitas culinárias de uma grande livraria no Recife, certamente por desinformação ou descuido de um funcionário ou estagiário desavisado, o que não deixou de ser uma forma peculiar de descobrir um livro e tomar posse dele.

9 Desde já me desculpo por este e outros trocadilhos afeitos às preparações culinárias, mas confesso que me foi inteiramente irresistível usá-los nesta resenha.

10 RAGIONE, Laura Dalla. La casa delle bambine che non mangiano: identità e nuovi disturbi del comportamento alimentare. Apresentação de Massimo Cuzzolaro. Prefácio de Paolo Rossi. Roma:Il Pensiero Scientifico Editore, 2005.

11 Apenas alguns dos epítetos utilizados por estes especialistas, enumerados de forma bem sarcástica por Rossi: “[…] aéreo, côncavo, convexo, curto, extrativo, denso, feminino, denso, fugaz, espesso, impreciso, tênue, longo, fino, maciço, mastigável, macio, suave, mudo, olivoso, passado, perturbado, salgado, grave, apagado, esvaecido, tenso, louco, vibrante, volátil, envolvente…” (p. 133).

Carla Mary S. Oliveira – Historiadora. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Realizou estágio pósdoutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais em 2009, com o financiamento de uma bolsa Capes/ PROCAD-NF. Professora Associada do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Sítio eletrônico: <http://www.carlamaryoliveira.pro.br/>. E-Mail: <[email protected]>.

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[MLPDB]

Breve Tratado – ESPINOZA (AF)

ESPINOSA, B. Breve Tratado. Resenha de: ROCHA, André Menezes. Sobre a primeira tradução do Breve Tratado de Espinosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

As translucidas mãos do judeu

Lavoram na penumbra os cristais

E a tarde que morre é medo e frio.

(…)

Trabalha em um árduo cristal: o infinito.

Mapa de todas as estrelas.

Espinosa.

Poema de Jorge Luís Borges.

Borges gostava de nos lançar no universo dos livros mágicos. Como um bom bibliotecário, nos conduzia por estantes infindas como quem tem em mãos os fios que atravessam entradas e saídas de um imenso labirinto. Lembro-me deum destes livros, o infinito.

O livro infinito é aquele cuja leitura jamais se esgota, que sempre exprime um novo sentido desde que o leitor abra suas páginas. Este Breve Tratado de Espinosa, inédito em língua portuguesa, consiste no mais novo exemplar destes livros com que os leitores de Borges tanto se encantam. Um livro infinito sobre o amor infinito, em síntese, eis do que se trata. Este Breve Tratado de Espinosa é uma obra juvenil, escrita bem antes da Ética e, para alguns intérpretes, antes mesmo do Tratado da Emenda do Intelecto. Talvez por isso seja a melhor maneira de introduzir-se no pensar com os conceitos de Espinosa. Inicia-se com a intuição da essência absolutamente infinita de Deus e, após passar pelo conhecimento da essência das paixões e ações do s homens, trata dos bons desejos que nascem do uso da razão, do amor intelectual que é imanente à intuição e culmina com a demonstração do que é eterno na essência humana. Mas todas estas demonstrações só fazem sentido, no texto de Espinosa, se não se distingue a inteligência do afeto. Uma leitura tecnocrata dos textos filosóficos e, em especial, do texto de Espinosa, não passaria de um mísero avatar daquela velha vã filosofia de que falava Shakespeare. Como o olho da medusa, o entendimento do tecnocrata petrifica o sentido dos textos. Borges é quem nos diz o que perdeu o aprendiz impaciente do conto A Rosa de Paracelso.

A curiosidade, o prazer da leitura e o amor da inteligência são os guias mais seguros para os leitores e leitor a s que desejam iniciar-se na leitura dos clássicos e na reflexão filosófica. E no caminho da leitura surgirão muitas questões que em vez de barreiras constituir-se-ão como trampolins a elevação da reflexão.

Gostaria aqui de apresentar algumas questões que me ajudaram a prosseguir na leitura do Breve Tratado. Literatura e arte na composição do Breve Tratado. Os dois diálogos da primeira parte do Breve Tratado tratam de temas candentes da ontologia de Espinosa, mas também caros à tradição neoplatônica do Renascimento, seja na vertente de Marsilio Ficino que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela criação de mágicas obras de arte, seja na vertente de Leão Hebreu que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela sabedoria ética na conduta cotidiana e nas ações da vida. A questão da diferença entre amor concupiscente e amor intelectual, que é o mote da erotiké no primeiro diálogo, tinha sido intensamente tratada pelos artistas e pensadores do Renascimento. A partir de Panofsky, podemos acompanhar como a questão da diferença entre amor divinus e amor profanus foi tratada sob a forma artística, por exemplo, nas telas de Botticelli e nos diálogos do próprio Marsilio Ficino. Como sabemos, o jovem Espinosa viveu em Amsterdã na casa-escola do tutor Francisco van den Ende, um franciscano que, como Petrarca, abraçou o humanismo. Ele ensinava literatura latina e filosofia através de leituras coletivas encenadas que muitas vezes se transformavam em peças teatrais. Espinosa, que obteve uma bolsa de estudos como ajudante do mestre-escola, interpretou no Teatro Municipal de Amsterdã peças de Terêncio, o dramaturgo comediante que participou do círculo estoico de Cipião com o historiador Políbio no século II a.C em Roma. Na Escola de Van den Ende, Espinosa conheceu seus melhores amigos, entre os quais o próprio Jarig Jelles, a quem dedicou a versão holandesa do Breve Tratado. Seria demais imaginar que Espinosa tenha elaborado os diálogos a partir da experiência artística com o círculo de amigos na trupe de teatro de Amsterdã? No segundo diálogo, por exemplo, Erasmo e Teófilo encetam animada conversa sobre a diferença entre a causalidade eficiente imanente através das relações internas entre todo-partes e causa-efeitos. Conversações agradáveis podem se tornar profundas tanto na vida cotidiana como nas ações dramáticas. Os dois diálogos da primeira parte são redigidos com engenho retórico e arte dialética para significar que os conceitos filosóficos do Breve Tratado não precisam ser pensados no solipsismo, à maneira cartesiana, mas podem ser pensados em agradáveis conversas em que todos nutrem amizade pela inteligência e gosto pelas arte s ? Razão e Intuição. Espinosa escreve, na segunda parte do Breve Tratado [II, 4], que a razão é a crença verdadeira, pois é o modo de conhecimento que nos leva a ver claramente o que convém que a s coisa s seja m fora de nós, porém não o que são verdadeiramente. E, no entanto, o conhecimento racional desperta os bons desejos que nos conduzem à intuição e ao verdadeiro amor. Podemos dizer que o Breve Tratado foi escrito antes da descoberta das noções comuns como conhecimento racional das propriedades comuns necessárias dos modos in finitos e finitos? Ora, após distinguir a Natureza Naturante da Natureza Naturada [I,8], Espinosa deduz os modos infinitos, quais sejam, o movimento-repouso na matéria e o intelecto infinito na coisa pensante [II,9]. Se os modos infinitos são os fundamentos das propriedades comuns na Ética, isto é, se são o todo de que os modos finitos são as partes, não é preciso convir que são demonstrados por sua gênese no Breve Tratado ? Em que sentido se pode dizer que não há teoria das noções comuns do Breve Tratado ? Sabemos, pela nota complementar 5 redigida por Marilena Chauí em A Nervura do Real, que há diferenças entre a concepção de intuição no Breve Tratado e a concepção de ciência intuitiva na Ética. Afinal, que significa a afirmação, no Breve Tratado, de que o conhecimento intuitivo e o amor intelectual de Deus são paixões do intelecto humano? Nesta obra juvenil, Espinosa pensava o amor intelectual como uma revelação religiosa, ou seja, como a palavra silenciosa que a inteligência de Deus pronuncia sob a forma de intuições no intelecto humano? Quais as diferenças entre a concepção do amor intelectual no Breve Tratado e a concepção do amor intelectual na Ética ? A demonstração de que o diabo não existe. Em várias cartas, Espinosa conversa com amigos sobre o tema da superstição, da crença em fantasmas, espectros e, pior que tudo, da crença no capiroto, coisa ruim ou tranqueira que, como diz Guimarães Rosa, para o prascóvio encontra-se no olho esgueirado de bezerro doente, gato preto, sombração ou redemoinho n o meio da rua.

Nas cartas trocadas com o amigo Boxel, podemos perceber como Espinosa achava graça nestes assuntos. E talvez o espírito de graça destas cartas encontre-se neste Breve Tratado com a demonstração matemática da impossibilidade da existência do diabo. A demonstração segue como consequência da prova ontológica da existência de Deus, desde que esta existência seja pensada a partir da essência como realização da onipotência. Vale lembrar que esta demonstração para nós é engraçada, mas para o contexto das guerras de religião era grave.

Espinosa demonstra, por A + B, como quem demonstra que 2+2=4, que o diabo é uma impossibilidade ontológica: dado que a essência de Deus é absolutamente infinita e que é idêntica à sua potência, um diabo, um gênio maligno ou outro ser malfadado qualquer que tivesse poder para contrariar a essência de Deus só pode ser uma ficção literária ou lógica. O que contraria a onipotência de Deus pode até existir, como existem peixes que nadam contra a corrente do rio, mas não pode influenciar em nada a potência absolutamente infinita de Deus, assim como um peixe não pode mudar o curso do rio ainda que nade contra a corrente. O diabo não pode existir na realidade, não pode ser um ente real, só pode existir como ficção, só pode ser um ente de razão ou ente de imaginação. E como Ferreira Gullar que diz saber como 2 e 2 são 4 que a vida vale a pena, Espinosa demonstra, como 2 e 2 são 4, que o amor intelectual de Deus é o sumo da vida humana e que por ele se encontra tanto a virtude para agir nesta vida como a eternidade de que podemos participar desde que experimentemos um verdadeiro amor.

Ode à leitura. Esta novíssima edição do Breve Tratado de Espinosa tem muitos méritos e o menor deles talvez seja o fato de ser a primeira tradução em português. Os méritos encontram-se mais no uso da língua portuguesa que os tradutores e a revisora fizeram para apresentar este inédito de Espinosa.

A tradução de Luís César Oliva e Emanuel Rocha Fragoso é clara e elegante, o que torna o texto muito agradável para os leitores da língua portuguesa. A revisão técnica de Ericka Itokazu, como sabemos todos os que acompanhamos o processo, lapidou o texto com muito carinho, cuidado e generosidade, para assegurar a precisão dos conceitos e dos argumentos que constituem a arquitetônica do Breve Tratado ; deu polimento, como no ofício de fazer lentes, para que permitissem ver a luz com a máxima nitidez. Certa vez uma amiga me disse, diante do Memorial da América Latina, que as curvas do desenho concreto de Niemeyer impressionavam sua imaginação de tal maneira que ela se punha a pensar, com Einstein e Espinosa, se aquela arte arquitetônica não exprimiria à sua maneira as curvas concretas de um universo infinito e densamente invisível que se reflete na luz das estrelas.

Este Breve Tratado, brilhante qual um crista l e denso como um diamante, ergue-se no tempo como o memorial de Niemeyer ergue-se no espaço. Um livro mágico como aqueles que encantavam Borges, mágico como um mapa não de espaços, mas de tempos que se escandem de uma fonte eterna. Que as frases deste exemplar de livro infinito, semelhantes a curvas geométricas, façam o seu glorioso mister e conduzam leitores e leitoras às veredas concretas do infinito.

André Menezes Rocha-Doutor em filosofia pela FFLCH/USP. Leciona da Facamp/Campinas. Atualmente, realiza seu pós-doutorado sobre Espinosa na FFLCH/USP.

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Desejo e prazer na Idade Moderna – MONZANI (RFA)

MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e prazer na Idade Moderna. 2. ed. Curitiba: Champagnat, 2011. Resenha de: VIEIRA, Fabiano de Mello. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.23, n.32, p.223-230, jan./jun, 2011.

Em Desejo e prazer na Idade Moderna, publicado primeiramente pela Editora da Unicamp e que recebeu agora da Editora Champagnat sua segunda edição, Luiz Roberto Monzani aponta os resultados parciais de uma pesquisa de fôlego realizada em seu estágio de livre docência em meados dos anos 1990. Motivado pela experiência em ler Sade de forma mais específica, Monzani encontra nos textos do Marquês a expressão mais nua e crua de algumas premissas que nortearam a Idade Moderna no que diz respeito à concepção de natureza humana. Com o cuidado em deixar seu campo teórico bem delimitado, o autor faz um recorte preciso nas teorias modernas, que, assim como Sade, apontam uma natureza humana passional, contrária à concepção clássica. Nessa trajetória, Monzani dialoga principalmente com Malebranche, Hobbes e Condillac, mostrando os movimentos realizados por cada um destes na elaboração de uma lógica própria das paixões.

O trabalho de Monzani é minucioso, valorizando sua forma muito particular de escrita e deixando claro, a cada linha, que, se a ideia de escrever sobre as paixões da modernidade do ponto de vista de uma seleção criteriosa de autores é uma tarefa um tanto quanto árdua, ele não a faz de outra maneira senão por meio de uma brilhante contextualização que se inicia na análise da chamada “querela do luxo”, o primeiro capítulo de um total de quatro.

O autor justifica a escolha feita para o começo da discussão da seguinte maneira:

de fato, o exame da chamada querela do luxo mostra-se exemplar para tentar compreender o conjunto das transformações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o século XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das novas concepções (sobre o desejo e o prazer) (p. 21).

Partindo daí, Monzani mostra que os textos de Voltaire escritos a partir de 1736 geraram muita polêmica ao apontar uma apologia aos tempos modernos, em que o luxo é produto dos avanços científicos e tecnológicos, e principal responsável pelo desenvolvimento do comércio nas sociedades. Ou seja, haveria, portanto, uma “vantagem” dos tempos modernos diante dos antigos e o luxo seria um dos responsáveis por tal consequência.

Quando o luxo começa a fazer parte do cotidiano das pessoas, iniciam-se, de forma mais maciça, os ataques a ele. A primeira a atacar foi a Igreja, tomando como exemplo Fénelon (arcebispo de Cambray, exemplo de ordem rígida e norma do bem comum). Para Fénelon, “o luxo é um dos maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como de deter a inconstância das modas” (p. 29). A razão deve predominar e o luxo adquire status de desvio, patologia. Monzani dá ainda algum destaque para La Bruyère e Bayle, que a partir de suas críticas contrárias à Fénelon – mas cada qual com sua maneira muito particular de abordagem – incrementaram a discussão. O primeiro, aproximando-se mais de Fénelon, exalta algumas virtudes, como coragem e honra, e as coloca em oposição às exigências de uma vida luxuosa, enquanto Bayle critica o saudosismo das posições anteriores e coloca a renúncia ao luxo no campo de uma necessidade das sociedades desfavorecidas da época. Ou seja, para Bayle, a ordem moral não teria tanta força diante da necessidade.

Todo esse percurso na história do luxo ao longo do tempo se justifica no final do capítulo, com a explanação sobre a “Fábula das Abelhas” de Mandeville, que narra a história de uma colmeia (como espelho da sociedade humana) marcada pela desonestidade e pelo egoísmo, mas que vive em plena prosperidade. A abordagem feita por Mandeville denuncia a essência naturalmente egoísta do homem, porém, necessária para o desenvolvimento de uma sociedade próspera e feliz. Necessária, pois obedece a um critério utilitarista que visa à produção de benefícios individuais e consequentemente coletivos. O fato é que, após alguns desdobramentos teóricos, a questão do luxo para nosso autor resume-se da seguinte forma:

o problema do luxo faz o primeiro rompimento com a cadeia tradicional: necessidade – desejo – satisfação e remete a outra: desejo – necessidade indeterminada – elaboração imaginária – concretização do objeto – satisfação fugaz – desejo (p. 69).

É sobre o desejo que Monzani trata no segundo capítulo. Ele parte do desejo que tem como par de oposição a aversão e que se junta com outros dois pares: amor/ódio e prazer/desprazer, formando assim a lógica que perdura desde a antiguidade e que é assim apresentada por Santo Tomás. O amor a um bem supremo (summum bonum) guiará todas as paixões do homem. Para Santo Tomás, por exemplo, Deus representa esse bem e, assim, segue-se a lógica nas palavras de Monzani:

o objeto apreendido é, em primeiro1ugar, amado (ou odiado) e, em virtude desse ato passional primordial primário, passa a ser desejado (ou não) e sua posse levará à delectação (ou não) (p. 76).

Thomas Hobbes é o primeiro a fazer uma importante inversão dessa montagem, no século XVII, porém, é fato que a atenção hobbesiana mostrou-se mais inclinada ao “produto” advindo da natureza do homem do que ela propriamente. Para Hobbes, as experiências são vivenciadas enquanto movimento em um primeiro momento e atendem também à exigência de um movimento – o vital – até chegarem ao coração e alcançarem o estatuto de paixões. Nesse retorno são qualificadas como “boas” ou “ruins”, provocando prazer ou aversão, respectivamente. Essa qualificação se dá em relação à sua participação junto ao movimento vital. Ou seja, há uma tendência a ser “bom”, o movimento que vai em direção à autopreservação – primeira lei natural do homem. A necessidade de se autopreservar leva o homem ao egoísmo em seu grau máximo e, dessa forma, aproxima-se da ideia lançada por Mandeville e sua “Fábula das abelhas”.

Contudo, essa idéia, segundo Monzani, fez com que alguns autores, como Gadave, Malherbe e Magri, reconhecessem o par prazer/ dor como fenômeno primeiro na lógica das paixões, porém, não é essa a ideia que nosso autor expõe. Sua leitura a respeito da lógica passional em Hobbes supõe o desejo como item primeiro da tríade, atuando em parceria com o conatus – movimento vital. Ou seja, o que vem primeiro é o conatus, que de certa forma é desejo de conservação de si.

Assim diz Monzani:

não há nenhum dualismo original em Hobbes, como se poderia ser levado a pensar: existe uma única tendência, que nos inclina a certas coisas, e nos leva a repudiar outras. É o mesmo desejo que se especifica em aproximação ou distanciamento, conforme o caso. Desejo de autoconservação (p. 93).

O prazer para Hobbes, segundo Monzani, seria “o efeito benéfico do movimento vital” (p. 97) e o amor se dá quando o objeto de desejo está presente. Como é possível perceber, os elementos da lógica passional continuam os mesmos e o que muda é a ordem em que se encontram.

Considerando o desejo em Hobbes como algo que mantém a sua essência inquieta, Monzani, em seu terceiro capítulo, aprofunda essa noção a partir do ponto de vista de alguns outros autores, dentre eles Malebranche e Locke.

Malebranche era um padre que, sobre influência direta de autores cristãos, como Santo Agostinho e São Tomás, conceituou a vontade como uma inclinação irresistível ao bem – à felicidade. “Aos olhos de Malebranche só há um motivo de amor: a felicidade, que nada mais é que o estado de prazer” (p. 149). A inquietude para esse autor encontra fundamento na característica finita do bem em satisfazer o desejo de felicidade, visto que o homem não tem Deus como a única causa dos prazeres. Ou seja, a busca contínua de felicidade elege objetos finitos como estatutos do bem enquanto tal, em uma sucessão também contínua. A conclusão é que nenhum objeto traz a felicidade completa e, pensando assim, Malebranche se mantém fiel à tradição agostiniana de que a inquietude nada mais é do que

o movimento incessante em direção a Deus que nos criou para ele, para amá-lo, que obedece à estrita definição de vontade entendida como movimento para o bem em geral e que nos ilumina, a cada repouso, no sentido de apontar para a insuficiência dos bens particulares, não invencíveis, reconduzindo essa própria vontade no ultrapassamento progressivo dessas mesmas coisas finitas (p. 155).

Malebranche ainda nos possibilita outra leitura da inquietude, agora em um plano horizontal, da experiência da consciência, mostrando que a característica indefinida do desejo é inerente à natureza humana. Segundo Monzani, essas duas leituras representam “a estrita consequência da dupla concepção de vontade que analisamos antes: como movimento em direção ao bem e como desejo de felicidade” (p. 158). Esse polo antropocêntrico da teoria malebranchista muito se assemelha à noção de desejo em Hobbes, porém, é preciso destacar uma diferença fundamental. Malebranche contesta o caráter originário do desejo, pois se é renovado incessantemente é porque existe algo anterior, impulsionando-o.

Ainda trabalhando o capítulo sobre a inquietude, Monzani acrescenta à discussão a teoria de Locke, que, a partir de uma laicização da teoria malebranchista, inaugura a tendência que prevaleceu no final do século XVII e boa parte do século XVIII. A partir da ideia de um uneasiness – termo que mais tarde encontrou em “inquietude” sua melhor tradução – diz que o homem busca a felicidade, porém, uma felicidade palpável, resultante de um estado de deleite/prazer. Ele chama de bem aquilo que proporciona o prazer ou diminui o desprazer, o contrário chama de mal. Todas as ações do homem buscam, então, eliminar o uneasiness e, consequentemente, produzir prazer que constitui a felicidade. Sendo assim, uneasiness pode ser definido como uma insatisfação que coloca em movimento.

Monzani, mesmo após uma verdadeira “dissecação” da uneasiness lockeana, em alguns momentos ainda não é capaz de torná-lo livre de comparações com a teoria malebranchista e a hobbesiana. Ora se aproxima da noção de inquietude de Malebranche, ora assemelha-se com a noção de desejo em Hobbes, mas tal complexidade não passou despercebida por Monzani. Assim ele diz:

de qualquer maneira, de Hobbes a Locke, via Malebranche, a análise enriqueceu-se e aprofundou-se. O mesmo fenômeno aparece dotado de significações inéditas. Mas isso foi conseguido à custa de ambiguidades, de deslizes conceituais e lexicais (p. 185).

O certo é que essa passagem por Locke possibilita o encontro com a teoria de Condillac, seu seguidor e responsável pela operação da última inversão na lógica das paixões e que é tratada no quarto capítulo do livro. Monzani observa que na obra chamada O tratado das sensações, de 1754, Condillac utiliza-se da metáfora da estátua de mármore como ficção metodológica para embasar sua hipótese de que nunca se conhece a natureza mais íntima das coisas, apenas aquilo que nos é sensível. Para ele, “há duas coisas a serem consideradas: o dado inicial, a percepção, e o conjunto das diferenciações progressivas, a que esse dado se submeterá até atingir seu grau pleno, que é o que se denomina o conhecimento” (p. 193). Dessa forma, pensar uma estátua de mármore como apenas uma estrutura receptiva, livre de qualquer conhecimento prévio, possibilita o entendimento do caminho proposto por Condillac na constituição de um sujeito.

Monzani aponta que Condillac examina individualmente cada um dos sentidos, fazendo uma espécie de montagem (desmontagem) da máquina sensível, de modo a entendê-la posteriormente na relação entre os diversos sentidos. As sensações trariam então contentamento ou descontentamento a partir de experiências de prazer ou desprazer, respectivamente. Para Condillac, o prazer, bem como a dor (desprazer), pode ser corporal ou espiritual, sendo apenas os corporais sensíveis, enquanto os espirituais acontecem em um nível intelectual. As experiências de prazer e desprazer vividas pelo sujeito provocam o movimento de aproximação do que lhe causou prazer ou afastamento daquilo que lhe causou desprazer, iniciando assim o ciclo formado pela seguinte ordem estabelecida: “prazer/dor – inquietude – necessidade – desejo – satisfação” (p. 246). Condillac resume a nova ordem da seguinte maneira

mudemos a cena, e suponhamos que a estátua tenha obstáculos a ultrapassar para obter a posse daquilo que deseja. Agora as necessidades subsistem por muito tempo antes de serem satisfeitas. O mal-estar, fraco em sua origem, torna-se insensivelmente mais vivo; ele se transforma em inquietude, por vezes termina em dor. Enquanto a inquietude é leve, o desejo tem pouca força, a estátua sente-se pouco pressionada a gozar: uma sensação viva pode distraí-la e suspender sua dor. Mas com a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em que ele age com tanta violência, que só se encontra remédio no gozo: ele se transforma em paixão (CONDILLAC 1947-1950 apud MONZANI, 2011, p.241)

A diferença entre Locke e Condillac, nesse ponto, está na distinção que Condillac faz entre inquietude e desejo, caracterizando o primeiro como algo que “despertaria” o desejo a partir de sentimentos desagradáveis intensos, enquanto em Locke a inquietude pode ser entendida como derivada do próprio desejo. Essa nova lógica sugerida por Condillac – em que se encontra a primazia do prazer – rompe com o ciclo da necessidade e possibilita o aparecimento do supérfluo. Nesse ponto, é possível perceber a intenção de Monzani ao justificar a importância de trabalhar minuciosamente no primeiro capítulo o conceito de luxo e suas variações ao longo da história. A inversão total da escala que se inicia com a primazia do amor perante as outras paixões coloca ainda o desejo nessa posição, em Hobbes, até alcançar a ordem estabelecida por Condillac, em que o prazer inicia a cadeia.

Na conclusão, Monzani reforça a ideia de que se trata de uma pesquisa em andamento e, portanto, o que se tem são resultados de um percurso que, ao chegar nesse ponto, se desdobra ainda em algumas outras possibilidades, dentre elas duas em especial. A primeira trata- -se de uma possível articulação entre a ideia de estátua em Condillac e a de sujeito em Rousseau como tendo um mesmo ponto de partida; e a segunda na inclusão da discussão sobre o “sexo” – resultante dessa revalorização do princípio do prazer – no discurso filosófico.

Por fim, pode-se dizer que a obra Desejo e prazer na Idade Moderna, de Luiz Roberto Monzani, possui elementos que a caracteriza como um criterioso exemplar de história da filosofia, cheio de contextualizações, e uma excelente amarração entre os diversos autores escolhidos, porém, não se limita a isso, pois o rigor com que trata os conceitos “cirurgicamente” delimitados demonstra também a veia epistemológica do autor.

Fabiano de Mello Vieira – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo – ROLNIK (HU)

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. [São Paulo: Estação Liberdade], 2007. Resenha de: ATHAYDE, Maria Cristina de O. O cartógrafo e as noivinhas. História Unisinos 13(3):314-317, Setembro/Dezembro 2009.

Suely Rolnik, em seu livro Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo, contempla-nos, nesse ensaio, com uma inusitada viagem pelo mundo da psicanálise e da subjetividade. O que poderia parecer, em um primeiro instante, uma mistura um tanto quanto difícil de ser assimilada por leitores(as) desavisados(as), é uma deliciosa aventura que nos leva a acompanhar a trajetória de um cartógrafo, um alter ego da autora? A autora é psicanalista, crítica de arte e de cultura e curadora. É professora titular da PUC-SP, onde coordena o Núcleo de Estudos da Subjetividade, no Pós-Graduação de Psicologia Clínica. Seu principal campo de pesquisa são as políticas de subjetivação na atualidade, tratadas de uma perspectiva transdisciplinar.

Seu trabalho privilegiou, desde os anos 1990, a arte contemporânea em sua interface com a política e a clínica. Com o advento dos estudos culturais, ou melhor, da História Cultural, temas como os abordados pela autora, uma psicanalista, passaram a ser antropofagicamente devorados e, posteriormente, assimilados e inseridos na escrita de historiadores e pesquisadores das ciências humanas em geral. Um lugar de destaque para esses estudos sobre a subjetividade deve ser reservado para Michel Foucault e suas pesquisas sobre a constituição do sujeito.

A subjetividade é um tema abordado não somente pelas diversas psicologias, mas também por outras disciplinas como a filosofia. Foucault (1985), que tinha formação em ambas as disciplinas, mostrou-nos como os sujeitos são constituídos. Scott (1995), uma das teóricas do gênero, afirma que as mulheres e os homens se constituem e se constroem na relação.

E Simone de Beauvoir (1967, p. 9) apregoava que “não se nasce mulher: Então, como Suely Rolnik nos mostra a mudança na política de subjetivação? Utilizando-se de vocábulos e conceitos reservados a um círculo restrito de leitores(as), a autora nos conduz a uma viagem cartográfica em companhia das noivinhas. Estas são vinte e quatro figurastipo que funcionam como personagens conceituais na resistência à sociedade disciplinar própria do capitalismo industrial.

A autora, ao servir-se de uma linguagem cinematográfica e do olhar subjetivo de uma câmera explícita, na parte inicial do livro, realiza o caminho que o cartógrafo percorrerá para mapear as trajetórias das noivinhas e os três movimentos do desejo. Com esta leitura, conhecemos o corpo vibrátil que nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam, as quais se fazem presentes em nosso corpo, sob a forma de sensações.

O cartógrafo de Rolnik (2007) acompanha as possíveis trajetórias da nossa noivinha que vivia em um regime fordista e disciplinar, em seu ápice nos anos de 1950. São apresentadas algumas cenas, takes que acompanham o encontro da noivinha com o seu homem. A autora, utilizando-se de uma nomenclatura criativa, nomeia as figuras-tipo como, por exemplo, a “aspirante-a-noivinha” que se transforma em “aspirante-a-noivinha-que-vinga”; enquanto isso, dando uma olhadinha numa outra tela, vemos uma outra “aspirante-a-noivinha” que se transforma em “aspirante-anoivinha- que-gora”. Esta pode ter dois destinos: “noivinhaque- gora-e-gruda” ou “noivinha-que-gora-e-descola”.

As personagens apresentadas são a chave explicativa das cenas seguintes, pois se apresentam por intermédio do olhar vibrátil do cartógrafo que as acompanha na sua expedição até os anos de 1980. Mas, de fato, o que Suely Rolnik e o cartógrafo desejam mostrar, ao nos conduzirem em uma expedição em companhia das novinhas? A resposta talvez resida na identificação da procura do desejo, pensado como um processo de produção de universos psicossociais. Esta resposta também é a chave para entender como se dá o processo de produção de novos modos de subjetividade que foram afetados sobremaneira pela emergência do neoliberalismo.

Na explicitação necessária do método de abordagem da autora e da sua antropofagia, percebemos que a autora se utilizou de diversas fontes, ao compor seu corpus documental. Mesclando letras de músicas, trechos de filmes e obras de vários autores, a autora criou um estilo próprio de referenciar essas fontes. A referência é apenas parcial, como a própria autora explicita na introdução.

Frequentemente, não é à presença do próprio estrangeiro [autor] que o leitor terá acesso, mas à sua presença já metabolizada. Isso se percebe pelas citações, nem sempre literais, muitas vezes consubstanciadas numa evocação de ideias alheias que sofreram transformações, ao se incorporarem à elaboração e ao estilo desse texto cartográfico.

Essa presença pode ser reconhecida, visualmente, pela utilização do recurso do itálico na sua escrita. A presença metabolizada constitui seu método antropofágico, mediante o qual a autora, como os modernistas de 1922, devora os estrangeiros e, depois de devidamente assimilados, utiliza-os em seus escritos e demais manifestações artísticas. Há uma declarada admiração a Oswald de Andrade e ao Movimento Antropofágico, ambos referenciados no livro, como revela o trecho a seguir.

É que a antropofagia em si mesma é apenas uma forma de subjetivação, em tudo distinta da política identitária. Ela se caracteriza pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura para incorporar novos universos, a liberdade da hibridação, a fl exibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias (Rolnik, 2007, p. 19).

Por exemplo, ao falar de desejo, Rolnik (2007) utiliza-se dos escritos de Deleuze e Guattari, que, por sua vez, já haviam deglutido, ou melhor, tinham se referenciado nos estudos de Spinoza. Outro conceito fundamental para a compreensão do texto de Rolnik (2007, p. 11) é o da micropolítica. Questões que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o político, o social e o cultural, por meio dos quais se configuram os contornos da realidade em seu movimento contínuo de criação coletiva integram esse conceito.

Além das noivinhas, como figuras centrais do livro, temos a temática do desejo e os modos de produção de subjetividade. O desejo, abordado ao longo de toda a trama, assim como as noivinhas e a subjetividade, é apresentado pela autora e desenhado em três movimentos, delineados no encontro entre a noivinha e o seu pretendente. Como diz Rolnik (2007, p. 31):

O 1.º movimento do desejo: no encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se atraem ou se repelem. Dos movimentos de atração e repulsa geramse efeitos: os corpos são tomados por uma mistura de afetos. Eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos, cognitivos… E seu corpo vibrátil vai mais longe: tais intensidades, no próprio movimento em que surgem, já traçam um segundo movimento do desejo, tão imperceptível quanto o primeiro. Ficam ensaiando, mesmo que desajeitadamente jeitos e trejeitos, gestos, expressões de rosto, palavras… É que, você sabe, intensidades buscam formar máscaras para se apresentarem, torna-se”. se “simularem”; sua exteriorização depende de elas tomarem corpo em matérias de expressão. Afetos só ganham espessura de real quando se efetuam.

O terceiro movimento do desejo é o processo de simulação que se põe a funcionar, assim como se fazem os movimentos de territorialização e desterritorialização. Essas ações correspondem, respectivamente, ao nascimento de mundos e aos mundos que se acabam.

O cartógrafo de Rolnik (2007) nos leva para uma viagem histórica e geográfica que mapeia cartografias nas quais as noivinhas se territorializam como raízes ou rizomas, mas poucas se aventuram numa viagem que as desterritorializem. A autora, contudo, afirma que a máscara que a figura feminina veste tem o seu deadline, ainda mais nos tempos que correm, quando a vida dos territórios e de suas respectivas máscaras anda cada vez mais curta. As máscaras ou os artifícios são consequências do segundo movimento do desejo e, por conseguinte, de todo o movimento do desejo.

A autora tipifica, perfeitamente, em seu texto, todo o movimento de transformações que aconteceram com as figuras femininas, ou, simplesmente, com as mulheres a partir da segunda década do século 20.

Além de ser um livro escrito por uma psicanalista que se propunha a testemunhar a tortuosa luta pela criação de outra política de produção de subjetividade e de cultura e sua consolidação nos final dos anos de 1970 e constituir um balanço inicial dos anos de 1960 e 1970, focaliza o início dos anos de 1980. Desse modo, faz uma imersão na memória das sensações vividas naquele período e não das representações estabelecidas no imaginário da época, que ainda hoje perdura.

Podemos pensar este livro como altamente ligado ao feminismo e ao estudo das relações de gênero. Explico: a autora aborda muitas questões que são trabalhadas e estudadas por feministas ou pesquisadores das relações de gênero.

Na primeira parte do texto, podemos fazer ilações com os escritos de Betty Friedan e os dilemas enfrentados por várias mulheres das décadas de 1950 e 1960, que não tinham outra opção que não fosse o casamento. De igual maneira, é possível estabelecermos, como a autora fala, uma “empresa doméstico-matrimonial” (Rolnik, 2007), retratada mais detalhadamente na parte dois do livro. O cartógrafo, por meio de seu olhar criterioso, percebe a mulher se ocupando do espaço doméstico e gastando seu tempo entre compras, cuidados com o corpo e com o bem-estar do marido e dos filhos; enfim, a “noivinha-que-vinga” gerenciando uma pequena empresa do lar. Enquanto isso, o marido lida com as ações da bolsa e tudo o mais que se liga ao mundo dos negócios. É o retrato daquela antiga divisão: espaço privado versus espaço público. Às mulheres, estavam reservadas a esfera do lar e as tarefas a ele pertinentes; aos homens, o espaço público, com todas as suas sutilezas, as negociações e o poder.

Na segunda parte do livro, Rolnik (2007) nos mostra como essas noivinhas vivenciaram as transformações que ocorreram na parte ocidental do globo terrestre. A autora nos relata que, nesse processo de desterritorialização da subjetividade, as mulheres foram as mais atingidas.

Tal processo foi acentuado pela instalação da mídia, pela informatização do planeta e pela entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho e na vida pública, portanto. A autora aponta que as mulheres desconheciam essa condição de trabalhadoras fora de casa, embora alguns estudos apontem que, em várias épocas, exerciam trabalho fora de seu domicílio, confirmando que esta não é uma condição da modernidade. Podemos destacar os estudos de Catherine Hall (1991) e de Michelle Perrot (1998).

Acompanhando, no texto de Rolnick (2007), o cartógrafo em sua viagem linear pela nossa história contemporânea, chegamos à era da mídia e dos “anos dourados”. Segui-lo-emos na sua expedição, presencianado os destinos das três noivinhas: “a-que-vingava”, a “quegorava- e-grudava” e a “que-gorava-e-descolava”. Elas se transmutam em militantes, feministas, hippies, liberadas e alternativas dentre outras. A formação dessas novas subjetividades é interessante de ser apreendida nas figuras das feministas, das militantes e das liberadas.

O desejo, em psicanálise, é sentido e pensado como falta: somos o sujeito da falta. Estamos sempre em busca de algo que nos complete, remetendo a uma sensação de que um dia fomos seres completos. Assim, Rolnik (2007) trabalha com a noção de carência. Na primeira parte do livro, as noivinhas buscam essa completude em um casamento, quiçá, em um homem que possa suprir todas as suas carências e expectativas. É um formar de subjetividade que orbita em torno dessa relação com o outro, ou seja, uma mulher dos anos de 1950, que almeja realizar o sonho de ser dona de casa, uma noivinha que gira em torno da figura masculina, de onde extrai sua dignidade e toda sua possibilidade de estruturar-se psíquica e socialmente.

Enquanto isso, na segunda parte do livro, dentre todas as formas possíveis de produção de subjetividade abordadas pela autora, podemos pensar no modo como a militante forja a sua nova subjetividade. A autora aponta que essa subjetividade, nas militantes, é formada por dois mitos: o da identidade cultural nacional-popular e o da revolução.

A temática da subjetividade foi abordada por Foucault (1984) em algumas de suas obras como em sua História da Sexualidade. Em O uso dos prazeres, o autor nos mostra como se dá o processo de subjetivação do indivíduo grego. Foucault (1984), utilizando-se do método genealógico, realiza um trabalho histórico da formação durante a Antiguidade, de uma hermenêutica de si, de como o ser humano se reconheceu como homem do desejo. Por meio de quais jogos de verdade o homem se percebe como o objeto e “através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser pensado?” (Foucault, 1984, p. 12).

Não podemos esquecer que as técnicas do cuidado de si diziam respeito ao homem grego que viveu entre os séculos V e IV a.C. Este homem deveria ser um homem livre e, por conseguinte, um cidadão grego. Foucault relata como o cuidar de si se tornou uma moral sexual, diferentemente do que se estabeleceu nos primeiros séculos nas quais o cuidado de si implicava em uma nova experiência de si.

Diversamente de Foucault (1984), que, em seus estudos, utilizava um aporte referendado em material empírico, Rolnik (2007) nos apresenta, em seu ensaio, o resultado de sua tese de doutoramento. Este é mais um suporte para os estudos dos modos de produção de subjetividade do que um livro que seja escrito com base em uma pesquisa empírica. Por exemplo, os trechos de música e ou de filmes citados servem como suporte para uma análise teórica que coadunam com aquilo que a autora quer retratar.

Retomamos o questionamento inicial quanto à possibilidade de o cartógrafo ser um alterego da autora, entendendo alterego como uma expressão da personalidade do próprio autor de forma geralmente não declarada. A resposta evoca a experiência da autora como exilada que morou em Paris por dez anos. Como ela mesma salienta, este livro é o seu primeiro trabalho após a escrita de Micropolítica: cartografias do desejo, com Felix Guattari (Guattari e Rolnik, 1986). De alguma forma, e bem presente, além, é claro, em vista do fato de ter escrito o livro, podemos entrever Suely em suas noivinhas.

Referências

BEAUVOIR, S. 1967. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro, Difusão Europeia do Livro, 499 p.

FOUCAULT, M. 1984. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal, 232 p.

FOUCAULT, M. 1985. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal, p. 246 p.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. 1986. Micropolítica: cartografias do desejo.

Petrópolis, Vozes, 327 p.

HALL, C. 1991. Sweet Home. In: M. PERROT (org.), História da vida privada: da revolução francesa à primeira guerra mundial. São Paulo, Companhia das Letras, vol. 4, p. 53-87.

PERROT, M. 1998. Mulheres Públicas. São Paulo, Fundação Editora UNESP, 159 p.

SCOTT, J. 1995. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 20:71-99.

Maria Cristina de O. Athayde – Mestranda do Programa de Pós- Graduação em História da UFSC. Participante do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/ UFSC). E-mail: [email protected].

La agonia del deseo: Antropología del lupanar – PAGÉS LARRAYA (RCA)

PAGÉS LARRAYA, Fernando. La agonia del deseo: Antropología del lupanar. Publicaciones del Seminario de Investigaciones sobre Antropología Psiquiátrica, Nueva Serie, Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, publicación n.25, Año VII, Buenos Aires, 1996. Resenha de: CÁRDENAS, Eduardo Medina. Revista Chilena de Antropologia, n.14, p.165-169, 1997/1998.

Eduardo Medina Cárdenas Acesso apenas pelo link original

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