Migrações, pesquisa biográfica e (auto)biográfica | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2018

O tema das migrações humanas e os enfoques biográficos e (auto)biográficos revestem-se hoje à escala global de uma atualidade e pertinência incontestáveis. Vivemos no presente a era das migrações, caraterizada por deslocamentos maciços de migrantes econômicos e refugiados, escapando à miséria, conflitos armados, alterações climáticas, seca e seus impactos alimentares em várias zonas do globo. Simultaneamente, é notória uma generalização de presentificações biográficas por parte de pessoas comuns no espaço público, em função da acessibilidade a novos meios de comunicação, redes sociais, e a uma “condição biográfica” dos nossos tempos. Há também a democratização de expressões autobiográficas por parte de classes sociais e grupos diversificados que evidencia uma “tendência biográfica” (RENDERS, HAAN, HARMSMA, 2017)1 a requerer a atenção de leigos e analistas sociais.

O cruzamento da questão das migrações contemporâneas com os olhares e instrumentos da pesquisa biográfica e (auto)biográfica é, pois, pedra basilar dos cenários vivenciais criados pelo capitalismo avançado. Os impactos econômicos e tecnológicos deste último, nas mobilidades, nas comunicações, relações de trabalho e sociais, entre grupos e culturas diferentes, são claros. No entanto, esse cruzamento relembra questões mais antigas que podemos encontrar na origem dos próprios desenvolvimentos disciplinares e científicos das ciências sociais e das humanidades interessadas nos migrantes e nas sociedades complexas. Antes mesmo de publicar o famoso trabalho conjunto com Florian Znaniecki2, considerado o berço da sociologia qualitativa, William Thomas interessou-se por comunidades imigradas nos EUA estudando-as a partir da questão da marginalização e dos preconceitos de que eram objeto. O professor de Chicago estabeleceu um paralelo entre a situação dos imigrantes e a dos afro-americanos, na sociedade norte-americana, comparando o fim da servidão dos povos nos países germânicos e eslavos com o fim da escravatura nos EUA. Nos dois casos, concluiu, a libertação não levou à satisfação das expetativas de quem procurava justiça social3 (THOMAS, 1912; 1914), permanecendo aqueles imigrantes e afro-americanos nas margens das percepções e discursos dominantes.

Mas assim como este cenário societal evidencia os novos determinismos económicos formatando a sua maneira as vidas modernas, também dá mais visibilidade às potencialidades e competências criativas de um número crescente de indivíduos e grupos, no que diz respeito à reivindicação das suas identidades e identificações. Chegamos assim a um paradoxo histórico dos nossos dias que denuncia contradições entre valores e práticas (sociais e políticas) no seio de sistemas democráticos. Aqui o acesso ao espaço público, a democratização da educação e da informação capacitam as pessoas, ao mesmo tempo que as migrações forçadas, a criminalização das mobilidades, a violação de direitos humanos de migrantes e refugiados, fazem constatar o nivelamento desigual dos cidadãos do mundo em função dos seus países de origem, pertença étnica ou religiosa.

Por outro lado, se a capacidade de narração, e a capacidade de uma pessoa se contar são intrinsecamente humanas4 (ARENDT, 1958), as condições de possibilidade para a produção de uma narrativa, biográfica ou autobiográfica, não são iguais para todos. A representação de si ou os processos de biografização podem até encontrar-se generalizados nos costumes diários das nossas sociedades: através do uso de telemóveis com câmara e internet que chegam aos locais mais longínquos do planeta, às comunidades mais recônditas da Terra, mas o acesso à palavra articulada, à consciência de si, às competências linguísticas e simbólicas, às literacias, e à autoridade para se contar e narrar, não são recurso nem cultura de todos. A negação dessa possibilidade pode ser estrutural ou circunstancial, imposta ou mais ou menos voluntária, mas é sempre uma liberdade condicionada pelo poder de uns sobre as vidas e vozes de outros. É o caso de muitos migrantes e refugiados que se veem cerceados, material e simbolicamente, e que, de forma muito relevante, veem igualmente negados seus desígnios pessoais, direitos e dignidade.

Podemos observar diferentes graus de negação desses desejos, direitos e dignidade, mas objetivamente existe uma linha abissal5 (SANTOS, 2007) que divide o mundo em duas partes: os ditos países desenvolvidos e civilizados do norte-global, e o sul global das “criaturas incivilizadas” da Terra. Os primeiros beneficiam-se do respeito dos seus direitos humanos, sociais, do direito à vida, enquanto os demais os veem negados e violentados na pele. Assistimos a uma autêntica necropolítica6 (MBEMBE, 2003) internacional na governação política das migrações que segue o lema “deixar viver, fazer morrer”, facto que é comprovado pelos milhares de naufrágios e mortes no mar Mediterrâneo, no mar Egeu, na fronteira EUA/México, nas costas da Austrália, no Deserto do Sahara, ao longo de várias décadas de movimentos migratórios criminalizados.

Neste contexto, e adotando uma postura de defesa pública do valor da vida dos migrantes (à semelhança do movimento “Black Lives Matter”), reconhecemos a pesquisa biográfica e autobiográfica no estudo das migrações como uma oportunidade por excelência de praticar ideais de igualdade e de justiça social no trabalho académico. A diversidade de estatutos legais e sociais presentes na interação entre nacionais e estrangeiros, pesquisadores e participantes das pesquisas, por um lado, e as diferenças culturais e de valores entre os sujeitos concretos em interação, por outro, fazem com que este tipo de pesquisa só possa ser coerente e consequente do ponto de visa teórico-metodológico, se o/a investigador/a partir de uma perspectiva descolonizadora do saber e do pensamento: bottom up versus top down, e de dentro para fora (a própria experiência pessoal versus o entendimento do outro como sendo completamente independente de nós). Nesse sentido, fazer pesquisa biográfica junto de populações migrantes e refugiadas, na prática, é uma forma de desconstruir injustiças estruturais, se assim o quisermos. Se optarmos por ser coerentes entre a teoria e a prática, se escolhermos praticar justiça e igualdade situacional nos nossos trabalhos de campo e de gabinete, a pesquisa biográfica assume-se como sendo uma forma de intervenção cívica nos seus princípios, meios e fins.

Qual o contributo da pesquisa biográfica e (auto)biográfica no trabalho com migrantes e sobre migrações?

A pesquisa biográfica implica à partida todo e qualquer trabalho que lide com “objetos biográficos”, onde se incluem também, mas não só, as autobiografias ou suportes autobiográficos de análise, além de dialogar com contribuições de diferentes campos do conhecimento. A pesquisa (auto)biográfica, ao tomar como centralidade narrativas dos sujeitos sobre suas experiências singulares, busca revelar os modos próprios como vivem, narram e aprendem com suas histórias de vida-formação, articuladas aos contextos sociais, desvelando, em uma diáletica espaço-temporal, movimentos constitutivos das identidades e fatos biográficos que são inerentes às experiências humanas.

Destacamos três aspetos fundamentais deste tipo de trabalho assente em relatos e expressões biográficas e autobiográficas: o conhecimento aprofundado dos saberes de experiência veiculados pelos próprios sujeitos sociais em interação com um público próximo ou vasto; a capacitação autorreflexiva através da produção de narrativas biográficas e autobiográficas (de narradores e narratários); a evidenciação e a performatividade do biopoder (ou falta dele) em ação nessa mesma produção narrativa.

No primeiro caso, o conhecimento aprofundado passa a ser dos narradores sobre si próprios e sobre a sua história, dos narratários que aprendem outras formas de estar no mundo, outras vivências e experiências, outras culturas e referências simbólicas ao mesmo tempo que exercitam o respeito pela história e a narrativa do outro. No caso da capacitação autorreflexiva, esta contagia os diálogos possíveis entre quem se conta e quem ouve, criando novas possibilidades sociais e identitárias. E, por fim, na evidenciação e na performatividade do poder intrínseco à história de cada um, resgatamos o valor das experiências privadas, dando rosto à história coletiva, e voz a quem participou nela.

A consciência de si e do outro, a autoanálise e crítica no diálogo, associadas à atuação do poder de cada um no exercício da narrativa (auto)biográfica partilhada, fazem da pesquisa biográfica e (auto)biográfica uma investigação -ação, intervenção com alcance cívico e biopolítico. Tendo em conta os cenários das migrações contemporâneas, e o estado de exceção em que vivemos, no que diz respeito (não só, mas também) à sua governação internacional e por parte de muitos estados nacionais, é particularmente relevante este trabalho e aposta analítica. A investigação-ação levada a cabo em cada pesquisa (auto)biográfica recupera e dá sentido ao conceito de reconhecimento proposto por Axel Honneth7, mostrando como a teoria filosófica crítica está na ordem do dia nas necessidades sociais e desafios do tempo presente. O reconhecimento defendido e implícito nos processos de biografização é um reconhecimento prático, tangível, que sai do domínio da abstração para a vida quotidiana e pública. Com base nesse necessário reconhecimento, sedimenta-se, então, uma coerência teórico-prática da pesquisa biográfica, que acredita na possível passagem da hostilidade à hospitalidade através de uma “pedagogia de intercâmbios narrativos” (MARCELO 8).

O presente dossiê Migrações, pesquisa biográfica e (auto)biográfica reúne um conjunto de reflexões epistemológicas e teórico-metodológicas da pesquisa biográfica e autobiográfica em articulação com estudos no campo das migrações. Socializamos investimentos desenvolvidos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, cujos textos incidem sobre vidas de migrantes, exilados e refugiados, a partir de diferentes disciplinas, métodos e olhares que discutem criticamente o uso e a pertinência analítica e cívica das análises (auto)biográficas para o estudo das migrações.

Composto por quinze textos, o presente dossiê coordenado por Elsa Lechner (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) e Zeila de Brito Fabri Demartini (Centro de Estudos Rurais e Urbanos da Universidade de São Paulo), procura trazer luz sobre essas trocas narrativas e simbólicas, busca contribuir para ampliar discussões sobre migrações, biografias e (auto)biografiascomo temática contemporânea de grande relevo, face às questões vividas pela humanidade nos processos e fluxos migratórios gerados no cenário geopolítico dos nossos tempos, nas suas vertentespolíticas, religiosas, culturais e ambientais.

No primeiro texto do dossiê, La dimensión espacial en la investigación biográfica. El “aquí” y el “allá” en los relatos de vida de migración, Marta Amorós Torró dicute os modos como seis membros de uma família de origem marroquina, no Pireneu catalão, significam e interpretam as suas experiências de vida, integrando-as em suas narrações autobiográficas. O texto centra-se na análise dos relatos de vida, no que se refere às experiências relacionadas ao processo migratório, em interface com as dimensões biográficas e familiares da migração. Noções conceituais de espaço, memória geoespacial, lugares e pertencimento são mobilizadas na análise desenvolvida pela autora, no que se refere às construções e rupturas biográficas e espaciais vinculadas às experiências de migração dos seus interlocutores.

O texto Pesquisa biográfica no estudo de migrações: diálogos teórico-práticos no horizonte de uma utopia concreta, de Elsa Lechner, apresenta reflexões sobre dimensões teórico-práticas de questões relacionadas a pesquisa biográfica e das migrações, no campo das ciências sociais. Ao partir de experiências de pesquisas desenvolvidas pela autora em contextos diversos, notadamente, junto a portugueses da diáspora, imigrantes e refugiados de origens muito diferentes em Portugal, desenvolve-se fertéis argumentos sobre a pertinência analítica e social do trabalho com histórias de vida, relatos biográficos e autobiográficos de pessoas que viveram e vivem experiências com a migração. O argumento central apresentado no texto incide na defesa do trabalho de escuta e partilha de experiências de migração, através do trabalho de biografização construido pelos sujeitos migrantes e refugiados, inscrevendo num contexto de transformação social. Daí emerge a ideia e defesa da pesquisa biográfica com seu caráter público, cívico e como uma utopia concreta de possibilidade de diálogo na diferença.

Zeila de Brito Fabri Demartini, no texto Narrativas de imigrantes do passado e do presente: questões para pesquisa, analisa processos imigratórios no Brasil em diferentes momentos históricos, ao ancorar-se em princípios da pesquisa biográfica, utilizando relatos autobiográficos, cartas, histórias de vida e depoimentos por meio de narrativas orais, com o objetivo de compreender contextos e processos migratórios, através das experiências narradas pelos próprios imigrantes. O texto situa contribuições da abordagem biográfica para os estudos no campo da migração, possibilitando ampliar debates sobre os “outros” que foram chegando em território brasileiro, mas, sobretudo, compreendendo-os como sujeitos de suas próprias histórias e vivências migratórias.

O texto Silences and voices of mediterranean crossings: (inter)subjectivity and empathy as research practice (Silêncios e vozes do mediterrâneo: (inter)subjetividade e empatia como prática de pesquisa), de Gabriele Proglio, centra-se na análise de processos intersubjetivos de pessoas migrantes, homens e mulheres de idades diferentes, que se aproximam culturalmente do nordeste da África. Através da realização de entrevistas, na vertente da história oral, com migrantes oriundos de Somália, Etiópia e Eritreia para a Europa, o autor discute aspectos relacionados à memória pós-colonial e da diáspora, evidenciando marcas pessoais dos migrantes com amigos e familiares em outras partes do mundo.

Mike Gadras – em De l’expérience de vie à la mise en discours du vécu: que peut nous apprendre une herméneutique de la parole? (Da experiência de vida ao discurso do vivido: o que podemos aprender com uma hermenêutica da palavra?) – tematiza dimensões sobre a palavra enquanto fenômeno heurístico que possibilita estudar as formas pelas quais se revelam as dinâmicas vitais e as dinâmicas vividas pelos indivíduos enquanto formas de significar o ser em sua presença no aqui e agora. Diálogos entre antropologia e filosofia hermenêutica permitem ao autor refletir e analisar processos de construção dos saberes, através de discursos dos sujeitos e da interpretação empreendida, ao evidenciar o poder da palavra e as possíveis redes de relações que os indivíduos, na condição de sujeitos de fala, se constroem em relação consigo e com os outros.

A importância da abordagem biográfica para a compreensão de migrações transnacionais atuais é tratada no artigo A Abordagem biográfica das migrações transnacionais: os casos haitiano e senegalês no Brasil, de Maria do Carmo dos Santos Gonçalves e Lucas Cé Sangalli. Os autores analisam aspectos do fenômeno da transnacionalização dos fluxos migratórios para o Brasil, a partir de duas biografias de migrantes vindos um do Haiti, que hoje mora no Canadá, e outro do Senegal, e são discutidas as opções realizadas na pesquisa, com base em estudiosos que consideram que toda biografia deve ser compreendida como um construto social. É observado que a constituição de mobilidades transnacionais não ocorre a um só tempo, e que, com as reconstruções biográficas, é possível apreender um processo configurado ao longo das histórias de vida de cada indivíduo e em relação aos seus grupos e sociedades de pertença ou origem O texto propõe a necessidade de compreender essas histórias em dois diferentes níveis de análise, o da história de vida como experiência vivenciada, e o da história de vida como narração.

O texto Refúgio no Brasil do pós-Segunda Guerra: a Ilha das Flores como representação do Paraíso, de autoria de Lená Medeiros de Menezes, ao utilizar fontes orais através de entrevistas e textos oficiais do estatuto do refúgio e dos refugiados, objetiva discutir questões voltadas para a participação do Brasil na recepção de deslocados de guerra e refugiados no pós 1945.

O texto La Retirada (1939) e o exílio republicano no Camp d’Argelès-sur-Mer (França) na narrativa autobiográfica de um exilado espanhol, de Geny Brillas Tomanik, trata da trajetória e experiências de um ex-combatente da Guerra Civil Espanhola, Pedro Brillas, em seu exílio na década de 1930. Por meio de narrativa autobiográfica (memórias, diários e cartas, entre outros), que reflete as vivências pessoais e coletivas desse período do êxodo republicano espanhol rumo à França, a autora estabelece um diálogo com a historiografia contemporânea, espanhola e francesa, ao trazer à tona e evidenciar a importância da produção de narrativas de imigrantes populares que permanece muitas vezes invisível.

Ao analisar relatos de refugiados norte-coreanos, no artigo Relatos de refugiados norte-coreanos: história oral e narrativas autobiográficas, Valéria Barbosa de Magalhães coloca em discussão uma questão fundamental: como os pesquisadores de história oral lidam com as inconsistências com as quais trabalham? Abordando os relatos de fontes midiáticas e livros (fontes secundárias), este texto toma a história de Yeonmi Park como ponto de partida, sob o pano de fundo de outros casos de diferentes imigrantes. A autora apresenta uma importante discussão sobre a questão da precisão e da confiabilidade em história oral, revisitando posições teóricas que foram se configurando ao longo do tempo. Na cuidadosa análise apresentada, a autora concluiu que as narrativas, mesmo com inconsistências, parecem ter papel relevante na construção de identidade no deslocamento de norte-coreanos e em importante iniciativa de história pública germinada e realizada pelos próprios sujeitos.

No artigo “Escola Modelo de Língua Japonesa” em Dourados-MS: imigração, história e educação feminina, Joice Kochi, Magda Sarat e Miria Izabel Campos, por meio de histórias de vida, trajetórias docentes e memórias autobiográficas, procuram compreender como imigrantes japonesas se organizaram para manter valores tradicionais da cultura japonesa idealizada. Ao tratar dessa atuação, são desvendadas as relações de gênero vigentes entre os imigrantes desse grupo, o alijamento das mulheres do espaço público e a concepção de educação para meninas, segundo os padrões da cultura japonesa. Este é um contributo importante para a compreensão da diversidade presente no campo da educação, em contextos de imigrantes de culturas diferentes no Brasil.

O texto Maria Prestes Maia: trajetória de vida e lutas, de Maria Izilda Santos de Matos, aborda a presença da mulher imigrante na constituição da vida pública, no contexto paulistano: trata da trajetória de Maria Prestes Maia, portuguesa, que, sendo casada com o famoso urbanista e prefeito de São Paulo, Prestes Maia, se destacou por suas atividades políticas, além de exercitar atividades também como atriz e professora de teatro. A autora procurou buscar fontes de outros tempos e pesquisar documentos diversos, tendo recorrido aos dossiês do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), aos arquivos de registros de entrevistas de imigrantes do Memorial da imigração/SP e à imprensa paulista do período em causa. A análise realizada contribui para dar visibilidade à presença e à atuação de mulheres imigrantes em segundo plano em estudos migratórios e na própria historiografia.

Débora Mazza e Nima I. Spigolon apresentam, no artigo Educação, exílio e revolução: o camarada Paulo Freire, uma valiosa contribuição para o campo educacional, ao analisarem o percurso político-pedagógico de Paulo Freire durante o período de 1964-1980, em que, na condição de exilado político, teria aliado sua experiência em educação com a problemática enfrentada por situações revolucionárias, em contextos diversos. Para tanto, as autoras pautaram-se em narrativas (auto)biográficas e também em entrevista jornalística coletada em África, acompanhando os tempos vivenciados pelo educador, em seu exílio, bem como o processo através do qual Paulo Freire se foi constituindo como um “camarada revolucionário”.

Em Imagens e sons de movimentos migratórios no cinema e nas escolas, Nilda Alves, Virgínia Louzada, Alessandra Caldas, Rebeca Brandão Rosa, Noale Toja, Nilton Almeida e Izadora Águeda Ovelha situam experiências de pesquisa no que concerne aos múltiplos significados dos movimentos migratórios humanos a partir de filmes ‘vistosouvidos’. Objetivando apreender as migrações como uma questão social grave e que atinge milhões de seres humanos não sem violência, o texto adentra os processos e práticas curriculares cotidianos de escolas a partir da articulação de inúmeras redes educativas. As discussões sobre imagens e sons, bem como sobre redes educativas cotidianas são tomadas como noções conceituais centrais, que têm possibilitado ao grupo de pesquisa ampliar reflexões diversas e sobre movimentos de deslocamento por múltiplos ‘espaçostempos’. Estes são gerados por diversas crises – guerras, catástrofes ecológicas, crises econômicas, políticas e culturais, e mobilizados no contexto de pesquisa analisado, através da produção de vídeos sobre processos migratórios.

Abordando a imigração de alemães para o Brasil, em períodos mais remotos, Jorge Luiz da Cunha contribui, em seu artigo Escrever histórias para convencer os outros: memórias, diários e cartas de imigrantes, com uma reflexão importante sobre as narrativas de imigrantes como forma de conhecimento de familiares, amigos e outros, ao empreenderem o processo migratório, como o que haviam realizado (nos séculos XIX e XX). O autor apresenta uma discussão desde a antiguidade até o presente, sobre a narrativa biográfica e autobiográfica como prática social e existencial, abordando o papel de memórias, diários e cartas de imigrantes. Focaliza sua análise na produção narrativa de imigrantes do Rio Grande do Sul, observando que, com base em interpretação hermenêutica, é possível verificar como há uma complexa relação das narrativas com os contextos de origem e o Brasil, e que as histórias contadas são influenciadas pelos interesses particulares e seus encontros com a realidade existencial. O autor chama a atenção para a abordagem metodológica que pode levar a novas interpretações da realidade objetiva e a um novo campo investigativo.

Encerra o dossiê o texto A experiência de ser estudante internacional: discursos, práticas narrativas e aprendizagens em diálogo, de Lilian Ucker Perotto, situando questões concernentes à experiência de ser estudante internacional, em Barcelona, ao contexto de internacionalização do ensino superior. A narrativa da autora, através de cartas e relatos biográficos, entrecruza-se com disposições sobre o papel da universidade no contexto econômico mundial e com ideias forjadas sobre a internacionalização como meta para o sistema educativo.

A diversidade de abordagens no domínio da pesquisa biográfica e (auto)biográfica e o modo singular e implicado como cada autor deste dossiê se dedicou ao tema das migrações revelam férteis e potentes discussões das análises centradas em experiencias de vida e narrativas biográficas para os estudos migratórios. Estas revelam-se especialmente relevantes hoje, tendo em conta o momento histórico atual, caraterizado por fluxos migratórios e marcas geopolíticas que moldam e determinam as histórias e experiências de um número crescente de sujeitos no mundo.

Coimbra, São Paulo, abril de 2018.

Notas

1 RENDERS, Hans; HAAN, Binne de; HARMSMA, Jonne. The Biographical Turn: Lives in History. London: Routledge, 2017.

2 THOMAS, William; ZNANIECKI, Florian. The Polish Peasant in Europe and America. Boston: Gorham Press, 1918-25.

3 THOMAS, W. I. Race Psychology: standpoint and questionnaire, with particular reference to the immigrant and the negro. In: The American Journal of Sociology, v. XVII, p. 725-775; (1912/1914) ‘The Prussian-Polish situation: an experiment in assimilation’. The American Journal of Sociology, v. XIX, p. 624-639.

4 ARENDT, Hanna. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1958.

5 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 78, p. 3-46, 2007.

6 MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture, Duke University Press, 15(1), p. 11-40, 2003.

7 HONNETH, Axel. The Struggle for Recognition: the moral grammar of social conflicts. Cambridge: MIT Press, 1996.

8 MARCELO, Gonçalo. Narrative and recognition in the flesh. An interview with Richard Kearney. Philosophy & Social Criticism Journal, v. 43(8), p. 777-792, 2017.


Organizadores

Elsa Lechner – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Zeila de Brito Fabri Demartini – Centro de Estudos Rurais e Urbanos da Universidade de São Paulo.


Referências desta apresentação

LECHNER, Elsa; DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 03, n. 07, p. 14-20, jan./abr. 2018. Acessar publicação original [DR]

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