Missionaries of sciences: the Rockfeller Foundation and Latin America | Marcos Cueto

O livro organizado por Marcos Cueto é fruto de um seminário no Rockefeller Archive Center, em Nova York, em novembro de 1991, tendo como tema a ciência e a filantropia na América Latina. Os autores analisam os diferentes, e sucessivos, planos de intervenção da Fundação Rockefeller nesta parte do continente: saúde pública, ensino médico, capacitação técnica, financiamento de laboratórios de pesquisa e modernização da agricultura. Todos têm uma preocupação em comum: mostrar como o “lado receptor” percebeu as ações da fundação, e que motivações o fizeram acatar ou combater estas ações.

A principal virtude dos ensaios — que combinam história social e história das ciências — reside na preocupação de captar a interação dos dirigentes e funcionários da instituição com os atores e as realidades locais. Conseguem, assim, revelar a passagem das idéias à prática, das intenções aos resultados, a transfiguração de programas de ação por efeito de negociações e conflitos opondo, de um lado, os agentes incumbidos de implementá-los, e, de outro, as forças de inércia e reação exercidas pelas realidades que pretendiam transformar.

A introdução de Marcos Cueto e o seu primeiro artigo (‘Visions of science and development: the Rockefeller Foundation’s Latin American surveys of the 1920’s’) fornecem ao leitor o quadro geral: os domínios da atividade social, as regiões geográficas e os tempos históricos em que atuou a Rockefeller, pautando-se por inquéritos abrangentes sobre as condições econômicas, sociais e institucionais vigentes nos países em que intervinha.

Cueto não esgota o potencial de informação que esses inquéritos encerram para o estudo das estratégias da filantropia e das realidades documentadas, mas fornece ao leitor uma imagem clara dos parâmetros gerais que regeram a política da Rockefeller na saúde, na ciência e no ensino médico, assim como dos nós górdios que identificou e quis remover.

Brasil e México, países que receberam parcela majoritária de doações e investimentos, são os principais contemplados no livro. Dois artigos analisam a maneira como foi implementada em cada um a campanha internacional que a Fundação Rockefeller empreendeu da década de 1910 à de 1940 com o objetivo de erradicar a febre amarela.

Dois outros artigos analisam o programa de modernização da agricultura mexicana, executado entre 1943 e 1961, que deu origem à chamada Revolução Verde e serviu de modelo a programas similares em outros países do Terceiro Mundo.

Os dois últimos artigos analisam os resultados da política de apoio à pesquisa nas ciências da vida, em particular na genética e fisiologia — uma das diretrizes prioritárias de ação da Rockefeller na América Latina durante e após a Segunda Guerra Mundial.

O artigo de Steven C. Williams, ‘Nationalism and public health: the convergence of Rockefeller Foundation technique and Brazilian federal authority during the time of yellow fever, 1925-30′, é o mais conseqüente com a diretriz metodológica de equilibrar, na pesquisa de fontes, os lados “doador” e “receptor” da ação filantrópica, talvez por imposição do próprio objeto de estudo. Steven reconstitui os conflitos de valores e divergências de método entre a instituição norte-americana e os sanitaristas brasileiros, que se julgavam herdeiros de um legado intocável. Indica as complexas negociações que entretiveram os agentes da Rockefeller e Clementino Fraga, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública. Para os primeiros, era vital unificar sob sua direção a campanha em todo o país, sem expor a Rockefeller às violentas controvérsias que a reinfestação da capital da República detonara na imprensa, no Legislativo e em outros fóruns da sociedade civil. Fraga tinha de conciliar o orgulho nacionalista dos médicos brasileiros e a preservação de sua autoridade com a possibilidade de contornar o princípio constitucional da autonomia dos estados por intermédio daquela agência não-governamental.

Armando Solorzano, autor de The Rockefeller Foundation in revolutionary Mexico: yellow fever in Yucatan and Vera Cruz’, introduz uma variação metodológica na diretriz que unifica os outros textos. Para ele, não basta analisar os programas da fundação à luz das peculiaridades de uma nação, pois esta é um conjunto de unidades estruturadas diferentemente, que, portanto, interagem de maneira desigual com a ação filantrópica. Compara, então, as campanhas contra a febre amarela que a Rockefeller empreendeu em duas províncias mexicanas, Yucatán e Vera Cruz, antigos focos endêmicos no continente.

Em Vera Cruz, importante enclave econômico norte-americano (chegou a ser ocupada pelos marines em 1914), a campanha começou em 1921. Naquela província conflagrada pela revolta camponesa e por conflitos intra-oligárquicos, os funcionários da Rockefeller enfrentaram fortíssima rejeição. Apesar disso, com o apoio do governo central, montaram uma forte organização sanitária e conseguiram reverter a hostilidade aos norte-americanos no seio da população, graças ao cuidado com que conduziram o programa de visitas domiciliárias. Solorzano enfatiza a preocupação com o trabalho prévio de persuasão dos moradores e das organizações comunitárias, visando não só a adesão às metas da campanha, como a conquista de “corações e mentes” encharcados de ódio contra os ianques. Segundo o autor, os trabalhos da Rockefeller adquiriram tamanha legitimidade que, quando ela deu por encerrada a sua missão, em 1924, os trabalhadores de Vera Cruz se mobilizaram para manter a Comissão Especial contra a Febre Amarela. Solorzano afirma, mesmo, que foi por causa desta campanha que o povo começou a reivindicar programas de saúde pública do governo.

Em Yucatán, a revolução mexicana teve acentuada conotação socializante. Apesar do poderio das empresas agroexportadoras norte-americanas, e da hostilidade manifestada pelas elites contra as tendências bolcheviques do governo revolucionário local, os funcionários da Rockefeller encontraram, desde o início, condições ideais para executar a campanha: total adesão do governo, dos médicos e da população, a tal ponto que, falhando a inspeção dos reservatórios de água, os próprios moradores cobravam o serviço. A população de Merida, capital de Yucatán, foi a que chegou mais perto do ideal de educação sanitária propugnado pela Rockefeller.

A singularidade da campanha naquela província residiu, também, no emprego preventivo da vacina recém-descoberta por Hideyo Noguchi, bacteriologista da instituição, que atribuiu a febre amarela, equivocadamente, ao Leptospira icteroide.

Do estudo comparativo das campanhas, Solorzano infere que a Rockefeller cumpriu funções políticas estratégicas: além de minimizar o sentimento antiamericano reinante entre os mexicanos, contribuiu de maneira decisiva para consolidar o Estado pós-revolucionário, ao lhe fornecer as condições para que se apresentasse como promotor da melhoria das condições de saúde do povo.

Deborah Fitzgerald, em ‘Exporting American agriculture: the Rockefeller Foundation in Mexico, 1943-53’, ressalta as tensões decorrentes da transplantação de um modelo concebido para os Estados Unidos a urna realidade conformada por relações sociais e, sobretudo, padrões culturais diferentes. Segundo a autora, o programa foi um fracasso para a maioria dos agricultores mexicanos que produzia gêneros de subsistência com técnicas tradicionais; só funcionou para uma fração minoritária já engajada na agricultura comercial e tinha afinidades com os fazendeiros norte-americanos, ao menos quanto à valorização e busca de inovações técnicas.

Para Joseph Cotter (The Rockefeller Foundation’s Mexican agricultural project: a cross-cultural encounter, 1943-490, o programa da Fundação Rockefeller, examinado em sua fase inicial, encaixou-se como uma luva nas expectativas e necessidades de diversos atores: o Estado, os grupos vinculados à reforma agrária, a comunidade de praticantes das ciências agrícolas, numerosos proprietários rurais e grande parte da opinião pública.

Para Fitzgerald, o saldo daquela experiência foi um grande desencontro cultural. Para Cotter foi, até certo ponto, uma vasta e proveitosa convergência de interesses. As diferenças de avaliação devem-se, em parte, aos alvos visados pelos autores. Fitzgerald polemiza com economistas que fazem avaliações distorcidas, a seu ver, das políticas de desenvolvimento agrícola que o Primeiro Mundo implementa no Terceiro. Procura retificar a ausência de historicidade e a reificação da tecnologia, que não é um valor neutro, mas um dispositivo talhado segundo as peculiaridades econômicas e sociais do ‘mercado’ a que se destina.

Fitzgerald faz uma avaliação tecnicamente mais bem informada do programa, e traz uma análise muito interessante da gênese, nos Estados Unidos, do modelo que a Rockefeller transplantou para o México. A análise de Cotter é mais consistente do ponto de vista historiográfico e está fundamentada em sólida pesquisa de fontes locais. Com o auxílio delas define melhor o estado em que se achava a questão agrícola no momento em que a Rockefeller iniciou seu programa, e discerne com mais precisão as respostas diferenciadas dos diversos interlocutores nativos com que interagiu. Mas não esclarece qual foi o desdobramento e o resultado do programa para além da conjuntura demarcada no artigo. A política de fomento agrícola da Rockefeller, então, ‘involuntariamente’ alcançou só os grupos que tinham perfil semelhante ao dos fazendeiros norte-americanos.

Em seu texto sobre a política de fomento à pesquisa (The Rockefeller Foundation’s medical policy and scientific research in Latin America: the case of physiology’), Marcos Cueto mostra que estes programas, Voluntariamente’, privilegiaram os investimentos em cientistas e instituições identificados com a cultura das universidades e laboratórios da América do Norte. A Rockefeller começou a financiar pesquisas em fisiologia num período (1913-40) em que sua linha de ação ainda estava voltada para a criação ou reforma de serviços de saúde e a erradicação de doenças, como a ancilostomose, febre amarela e malária. Na década de 1940, durante e após a Segunda Guerra Mundial, no contexto da industrialização por substituição de importações e da política de boa vizinhança, a ênfase da ação filantrópica deslocou-se para a educação e a pesquisa científicas em proveito de cientistas e instituições que já gozavam de algum reconhecimento.

A preferência pela fisiologia deveu-se, em parte, à excelência dos trabalhos de alguns pesquisadores, como o argentino Bernardo A. Houssay, prêmio Nobel em 1947. Deveu-se, também, à importância que a disciplina adquiriu nos próprios Estados Unidos para a resolução de problemas ligados às pressões excepcionais a que o organismo humano era submetido no contexto da guerra mundial.

Isso não significava que as ações em saúde pública fossem desativadas. Segundo seus estrategistas, para garantir resultados duradouros nessa área era preciso formar quadros de alto nível. À luz deste princípio, a Rockefeller direcionou sua atenção para as escolas médicas latino-americanas. Um inquérito abrangente identificou suas principais mazelas: excesso de estudantes em instalações precárias, inexistência de dedicação em tempo integral dos professores, estiolamento das ciências básicas e carência de laboratórios.

Tendo em mira a replicação da reforma que se fizera nos Estados Unidos segundo as diretrizes fixadas no relatório de Abraham Flexner (1910), a Rockefeller adotou três linhas de ação: concessão de bolsas de estudo nos Estados Unidos para adestrar estudantes de medicina e neutralizar a influência ainda preponderante do sistema médico francês; promoção de novos centros de educação e pesquisa independentes daquelas escolas médicas irremediavelmente carcomidas; doação de equipamentos de primeira ordem às instituições dispostas a assegurar a dedicação integral de seus pesquisadores e o custeio dos trabalhos desenvolvidos por aqueles de maior projeção.

Cueto examina cuidadosamente as limitações do modelo elitista exportado pela Rockefeller e a condição ambivalente de seus beneficiários. Mostra como foi profundo o impacto sobre a organização das comunidades científicas latino-americanas, e como sedimentou a influência norte-americana na pesquisa biomédica, na mesma medida em que se removiam os resíduos da européia. Apesar de favorecer a inserção de investigadores na rede científica internacional, o efeito multiplicador das estruturas e personalidades favorecidas não se realizou, nem se expandiram na medida desejada as inter-relações entre cientistas e instituições latino-americanos. Amplificada, esta distorção apresenta-se, hoje, sob a forma de uma absurda oposição entre raros centros de excelência e o grosso das instituições de ensino que, em bases ainda essencialmente retóricas, formam grandes massas de profissionais mal qualificados.

Como os demais autores, Cueto enfatiza a inadequação da transferência de um modelo de trabalho científico de uma cultura para outra, mas não reduz esse processo a uma via automática de mão única. Postos no limiar das duas culturas, os cientistas em que a Rockefeller investiu americanizaram-se, mas não deixaram de reproduzir as relações e os valores de seu meio de origem. Embora personificassem o sucesso do modelo, aceitaram compromissos com as forças que dominavam as universidades e academias, fosse na relação com os pares, no recrutamento de discípulos, na transmissão do saber ou no manejo das próprias carreiras profissionais. Atuando como intermediários entre as políticas modernizadoras induzidas de fora e os valores de suas comunidades, conservaram alguma autonomia, o suficiente para influir na marcha e no alcance das mudanças.

O tema abordado por Thomas F. Glick (The Rockefeller Foundation and the emergence of genetics in Brazil, 1943-60′) é um dos fios da trama descrita por Marcos Cueto. Este focalizou a fisiologia, disciplina em que os latino-americanos já haviam acumulado extensa bagagem de estudos e certo grau de excelência científica. Glick examina a emergência de uma disciplina, a genética, que, além de ser nova no Brasil, estava na fronteira científica do século XX. Cueto privilegia a arquitetura político-institucional em que operavam as comunidades científicas; Glick rastreia a formação de um novo segmento dela, a partir da trajetória de seus componentes e da maturação de seus objetos de estudo.

O desenho abstrato da condição ambivalente do cientista contemplado pela Rockefeller ganha carne e vida no texto de Glick, onde se vêem as estratégias e artimanhas que empregaram para fazer avançar seus interesses por entre as vantagens e exigências vindas de fora e as coações e facilidades presentes no meio local.

Marcos Cueto, o organizador, manifesta a esperança de que estes estudos de caso — e os que vierem a se inspirar neles — produzam os elementos necessários para que, um dia, se faça uma interpretação geral do trabalho da Fundação Rockefeller. A leitura mostra, porém, que algumas vigas mestras desta interpretação já foram assentadas. A principal é uma mudança radical de valoração da filantropia, que distoa do tipo de análise feita nos trabalhos de medicina social produzidos por latino e norte-americanos nas décadas de 1970-80. A rejeição programática à interferência destas agências insidiosas do imperialismo ianque cedeu lugar a uma avaliação essencialmente positiva de sua prática e de suas metas. A negatividade reside, sobretudo, nos equívocos de percepção ou na prepotência cultural que prejudicaram o rendimento dos programas de modernização das sociedades latino-americanas.

A coletânea de alguma maneira reflete o sopro social-democrata que ventila as ciências sociais desde a queda do muro de Berlim. Os dados mostram que a filantropia, na escala corporativa e internacional em que se exerceu, foi componente importante da evolução de algumas esferas de nossa estrutura social, e uma das alavancas mais eficientes da expansão da influência dos Estados Unidos no mundo. O que perdeu em agressividade e crítica, a nova abordagem ganhou em acuidade histórica; a reconstituição da arquitetura e dinâmica destes processos tornou-se mais profissional e permite enxergar melhor como se fez, e se faz, a modernização.


Resenhista

Jaime Benchimol – Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.


Referências desta Resenha

CUETO, Marcos (Org.). Missionaries of sciences: the Rockfeller Foundation and Latin America. Bloomington: Indiana University Press, 1994.  Resenha de: BENCHIMOL, Jaime. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.2, n.1, mar./jun. 1995. Acessar publicação original [DR]

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