Morrer para não sofrer: questões de gênero em Castro/PR (1890-1940) | Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski

Dulcelli Estacheski e Silvia Delong. As pesquisadoras participaram do Programa CBN Linha Aberta Imagem CBN Vale do Iguacu
Dulcelli Estacheski e Silvia Delong. As pesquisadoras participaram do Programa CBN Linha Aberta | Imagem: CBN Vale do Iguaçu

A obra Morrer para não sofrer, aborda uma temática por vezes silenciada em nossa sociedade, trata sobre o sofrimento que levou mulheres e homens a morte voluntária. Desse modo, sua relevância transpõe as fronteiras da História – área de produção – e pode servir de referência para Sociologia, Psicologia, Ciências Sociais, Filosofia e outras áreas correlatas. A pesquisa elaborada durante o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), nos anos de 2016-2019, vem conceituar a autora que está nos Estudos de Gênero há mais de uma década.

Usando inquéritos policiais de 1890-1940 sobre suicídio na cidade interiorana de Castro-PR, Dulceli discorre como padrões estereotipados de gênero foram influências importantes no sofrimento cotidiano e social dessas pessoas, que decidiram por cabo à suas vidas como forma de descanso emocional, físico e/ou psicológico. Decidida a tratar sobre mulheres, homens e casais, ela divide seu livro em quatro capítulos, sendo o primeiro destinado ao “tabu do suicídio”, o segundo à violência, feminilidade e a morte voluntária, o terceiro à apresentação dos homens e o suicídio e o quarto ao debate sobre os romances suicidas.

Ela inicia tocando na delicadeza do tema que criou um tabu social em torno de si. A sociedade cristã que condena tal prática baseada em preceitos bíblicos, criando pessoas que preferem estigmatizar como loucura do que buscar compreender quais motivos contribuíram para o adoecimento psíquico e o desejo e ação de pôr fim à própria vida voluntariamente. Seres desconsiderados, com dados omitidos nos inquéritos, testemunhas que pouco contribuíam ou temiam seus relatos, corpos relegados às margens dos cemitérios, memórias apagadas ou esquecidas, colocam uma áurea cinzenta sobre esse problema que além de pessoal é social e político.

Apesar de caminhar nesse cenário nebuloso de fontes sobre morte, Dulceli é conhecida por ser uma pessoa iluminada, “colorida”, como ressaltou sua orientadora Cristina Scheibe Wolff. Desse modo, durante todo o livro ela usa uma linguagem serena, desprendida, sóbria. O sofrimento das/os suicidas não nos afeta de forma negativa, deprimente, mas causa uma resistência política, nos faz enxergar com clareza como a reprodução de padrões e discursos estereotipados sobre gênero, afeta as vidas, a produção, a sociabilidade, o desempenho. Incompreendidas, ignoradas, essas pessoas foram descritas como sem motivos para um ato tão brutal, já que “elas não deviam se matar porque ninguém lhes fazia mal, eles não deviam se matar porque não agiam mal” (p.85).

No livro os sofrimentos das mulheres foram marcados pela violência doméstica ou pelo desprezo de suas profissões, como prostitutas, encaradas como vidas que não importavam. Moradoras de região interiorana, com estrutura rural, rodeadas pela comunidade católica, faziam parte de um sistema social conservador. Incentivadas desde moças a encontrarem no casamento e maternidade suas únicas satisfações, elas eram empurradas ao matrimônio logo cedo ou estigmatizadas socialmente por uma solteirice que poderia tornar-se sinônimo de prostituição, gravidez indesejada ou colocadas no papel de peso econômico para seus pais.

Vidas femininas escritas desde a infância, destinos que seriam aqueles traçados por suas ancestrais, enxergavam nas mães a projeção de seu futuro. Com casamentos arranjados ou obrigados à lei pelo crime de defloramento, a maioria delas ficariam encerradas no ambiente do lar sob o poder marital. A submissão era atitude esperada das esposas e àquelas que rompessem a ordem, podiam sofrer a violência corretiva dos maridos. Sem respaldo, inseridas em um ambiente patriarcal e conservador, viam-se sem melhores perspectivas de vida. “A legitimação da violência doméstica como prática comum, quase naturalizada, que fazia com que as pessoas ao redor silenciassem a respeito ou aconselhassem a permanecer na relação mesmo que sofressem, possivelmente provocou ainda mais angústias” (p. 157).

Aquelas mulheres que habitam a ambiguidade de figuras sexuais necessárias à ordem dos casamentos e encaradas como decaídas e desimportantes, foram retratadas na segunda parte do capítulo destinado às suicidas. Personagens desmoralizadas pela sociedade, detidas por embriaguez, instaladas em residências humildes contando apenas com a solidariedade de suas colegas de profissão, acabaram colocando fim a suas vidas. Desprezadas e inferiorizadas em vida, mortas foram ainda menos consideradas. Dulceli mostra como elas estavam envoltas em relações de poder com homens casados e militares, os termos pejorativos que a elas eram destinados e detalhes de suas subjetividades que foram ignorados pela comunidade local.

Mostrando um diferencial em sua pesquisa, a historiadora coloca os prejuízos dos estereótipos de gênero nas vidas masculinas. Homens que normalmente são colocados no papel de manutenção da ordem patriarcal, agora são observados como vítimas desse sistema. Direcionados ao papel do mando, da proteção, de tutor, de provedor, forte e honrado, quando desviantes desses padrões, sofrem assim como as mulheres – pois as pessoas no geral sofrem em modelos autoritários de sociedade. Divididos na pesquisa entre aqueles que perderam capacidade de prover e se endividaram, e outros que perderam sua serventia seja pela doença ou velhice, foram assim retratados pela polícia local em casos de suicídio ou tentativas frustradas do ato.

Apegados ao ideal da força ou agressividade, usaram de formas brutais para se matar. Eles se enforcaram e usaram armas de fogo. Eles que um dia foram exemplos para jovens, figuras honradas e admiradas por sua integridade, agora tinham seus nomes no meio de bochichos e fofocas dos/as vizinhos/as. Dulceli verificou que arruinados em suas antigas aptidões, eles se isolavam socialmente e tinham a auto imagem reduzida a incapacidade. Endividados e tendo que contar com trabalho e ajuda financeira das mulheres – invertendo os papéis – eles se sentiam homens fracos ou efeminados no papel de dependentes. O meio empregado para sair desse cenário não era aceitável pela comunidade, contudo, “o suicídio podia não ser justificável por essas razões, mas era, em alguma medida, compreensível pelas pessoas que partilhavam dos mesmos ideais de masculinidade” (p. 199).

Naquele contexto sociocultural em que a cidade de Castro-PR estava inserida determinava-se que aqueles que precisavam de cuidados eram as crianças e as mulheres e o papel de provedor de ambos era o homem, seja ele pai, irmão ou marido. Às mulheres o papel de cuidadora não era ligado ao econômico, mas sim a educação, higiene, bom desenvolvimento e manutenção da vida. Desse modo, quando na família tinha alguém doente ou em idade avançada, eram sempre delas que vinham os zelos. Desinseridos do mundo do trabalho por incapacidade física, esses homens entraram na figura de infantilizados. Mais uma vez dentro da inversão de papéis, eles estariam subordinados à cautela feminina.

A frustração da impotência é analisada minuciosamente por Dulceli. Sustentada por vasto aporte teórico sobre as relações de gênero, ela traça com maestria os contrastes entre os papéis femininos e masculinos. Da juventude à velhice os homens aparecem. Solteiras ou casadas as mulheres assomam. Acomodados de formas dissemelhantes nos discursos policiais e comunitários, a diferença de gênero ora se acentua ora se equilibra nas discussões da autora. Alargando suas investigações, ela busca compreender como a hierarquia do poder trabalha dentro dos relacionamentos dos casais. Romances dissipados pelo suicídio. Pressões sociais que marcaram a tragédia dentro do amor.

Mulheres e homens que buscaram em algum momento adequar-se à lógica de relacionamentos heteronormativos, que vislumbraram um romance distante da realidade possível na Castro de 1890-1940, que idealizaram um tipo de amor e família, acabaram frustrados e colocaram fim em suas vidas de forma voluntária. Moças que percebiam não ter saída, que seriam sempre tuteladas e a independência não seria alcançada, pelo contrário, saíram do mando do pátrio poder para o poder marital. Rapazes que em cartas deixadas aos familiares e esposas acabavam demonstrando seus sentimentos e inquietações, que de certo modo deixaram-se fragilizar pelas agruras da vida, que perceberam ser difícil carregar o peso da rejeição ou traição feminina, decidiram morrer para não sofrer.

Seja em suas existências individuais ou como casal, homens e mulheres sentiram o peso de padrões socialmente exigidos para cada um deles, sobreviveram de forma dolorida tentando adequar-se às normas e regras, mas que em algum momento perceberam que uma vida que estaria em desajuste social, que seria alvo de fofocas e olhares, que não seria digna de ser vivida, merecia ser dissipada e que essa seria a única saída para existências periféricas, mal vistas e apontadas. Na obra dedicada ao sofrimento de vidas que sem perspectivas decidiram voluntariamente morrer, Dulceli nos mostra como problemas ainda atuais são problemas antigos, revela também como desde sempre as questões relativas ao gênero e suas normas ou adequações, causaram e causam sofrimento.

Além de contribuir para um enriquecimento teórico e científico especializado, o trabalho da autora colabora e incentiva-nos a buscar tornar as existências mais tranquilas, a olharmos em volta e tomar atitudes para mudança de determinados preconceitos, restrições, enclausuramentos em modelos de feminilidade e masculinidade inalcançáveis e desumanos. A historiadora nos impacta, comove, indigna e revolta, mas também nos traz sensações como compaixão, empatia, humildade e esperança. Entregar-se na leitura de Morrer para não sofrer é estar aberto a entrar em uma obra que causará mudanças sociais, culturais e sentimentais, que nos desloca do lugar do leitor passivo para o leitor humanizado atuante, que compreenderá que vidas importam, independentemente de suas formas de existir e atuar no mundo. Podemos contribuir para que vidas valham a pena ser vividas.


Resenhista

Emili Sabrina Ribeiro Silva – Mestranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), orientada pela Profª. Drª. Ana Maria Colling. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6424990767106986 E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet. Morrer para não sofrer: questões de gênero em Castro/PR (1890-1940). Curitiba: Brazil Publishing, 2020. Resenha de: SILVA, Emili Sabrina Ribeiro. Pessoas suicidas: questões de gênero na sociedade paranaense do século XIX e XX. Revista Historiar, v.13, n.25, p. 343-348, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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