Mulheres/ Violência e Justiça no século XIX | Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues

Mulheres, Violência e Justiça no século XIX (2016) tem como objetivo introduzir os leitores a uma temática histórica inovadora e complexa. Resultado da tese de doutorado da historiadora Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues, o livro trabalha com questões de violências e justiça no cotidiano imperial, numa província pouco explorada pela economia na época e também pela historiografia, o Mato Grosso (1830-1889). A historiadora aborda em sua tese as convivências sociais e os múltiplos fatores que levavam essas violências (físicas e simbólicas) aos gêneros femininos e masculinos na região do sul do Mato Grosso durante o segundo período imperial. Para isso, Rodrigues utilizou de fontes diversas, incluindo inventários, documentos jurídicos e de viajantes para tentar compreender a complexidade cultural e social que a região possuía na época.

Como metodologia de análise histórica, a historiadora recorre à interdisciplinaridade acerca do conhecimento empírico e noções teórico/metodológicas de outras ciências (medicina legal, legislação) para compreensão, por exemplo, de violências sexuais. Ademais, enfatiza as relações de gêneros enquanto relações de poder exercidas pelas dominações masculinas, resistências e das próprias instituições legais como produtoras de formas específicas de poder (2016, p. 26).

O livro possui uma breve apresentação e prefácio, nos quais são apontados os diferentes femininos trabalhados na pesquisa, como “mulheres pobres e ricas, livres e escravas, negras, brancas e indígenas” (2016, p. 11). A historiadora expõe também seu objetivo de estudo. Nele, ela visa compreender esses femininos, suas relações de poder e sobrevivências, envolvidas de múltiplos fatores que levavam às violências físicas e simbólicas nos espaços “públicos e privados” na sociedade mato-grossense. No prefácio redigido por Gildo Magalhães, são abordadas as recentes discussões e temas historiográficos, especialmente sobre a escrita da história das mulheres desde a década de 80 e 90. Ele também elogia e afirma a complexidade do tema e as fontes que Rodrigues explora.

Na introdução, a autora começa sua análise destacando dois tipos de justiça que permeavam o Brasil naquele período. A partir disso, ela insere como os códigos e leis criminais desenvolvidas pelo Estado ao longo do século XIX para a construção das estruturas nacionais serviram como ferramenta de poder para tentar normatizar e manipular a dominação masculina e dos “papéis” ditos femininos – domesticidade, maternidade – por meio da violência física e simbólica e das microrrelações de poder. Ademais, Rodrigues afirma que é preciso ver nas lutas da Justiça e pela Justiça que as mulheres não eram apenas passivas. Com essa afirmação, a historiadora propõe compreender como essas violências auxiliavam também nas sobrevivências, resistências, infortúnios e laços cotidianos de diversos femininos, numa região sertanista cheia de incertezas e criminalidades sociais, o que torna tal tema de profunda relevância contemporânea.

Assim, no primeiro capítulo, “Sociedade e violência: o caso do sul de Mato Grosso”, Rodrigues trabalha com três subcapítulos. No primeiro, “Aspectos históricos e formação social”, ela contextualiza a região que hoje corresponde ao Mato Grosso do Sul, sobre questões e dificuldades sociais, econômicas, políticas, de acesso e as resistências indígenas que se permeavam desde o século XVI. Ao longo do século XIX e com a Guerra do Paraguai (1865-1870), evidencia a busca de uma produção pecuária e de ferraria no Mato Grosso, junto ao uso da mão de obra indígena e escrava. A partir dessa discussão, são analisadas as problemáticas sobre posses de terras, desde as sesmarias a Lei de Terras em 1850. Com isso, a autora destaca as espécies de mandonismo e os conflitos decorrentes das demarcações de terras que envolviam proprietários, homens administrativos e juízes locais com homens livres, posseiros, imigrantes, escravos, indígenas tendo em vista os reflexos desses conflitos sobre mulheres indígenas, escravas e esposas.

Assim, no subcapítulo posterior “A produção das fontes e a violência institucionalizada”, Rodrigues discute sobre as fontes que utilizou e suas dificuldades em obtê-las e organizá-las. Para isso, fomenta a importância do ofício do historiador e da análise crítica ao discurso dos documentos. Apesar das adversidades, Rodrigues demonstra que por meio de ligações documentais e vozes femininas ocultas, conseguiu elaborar seu objetivo de pesquisa. Tal objetivo permeou a profunda pesquisa da autora com relação às vozes femininas esparsas em documentos jurídicos e na compreensão dos múltiplos fatores que provocavam essas violências sobre as mulheres mato-grossenses. Isto posto, a historiadora examina o que as levava ao júri e as relações de gêneros que desencadeavam as violências e processos. Rodrigues afirma também que visou dividir dois conjuntos de análise processual no decorrer do livro. Primeiramente estuda violências entre homens e mulheres e posteriormente violências entre mulheres e agentes de poder na província mato-grossense.

A autora mostra algumas mudanças com o Código de 1830 e 1832 no período imperial e ampliação e relevância de agentes de poder na construção da nação e da moralidade. E, para compreensão dessas disputas e conflitos vividos entre mulheres e seus valores morais e financeiros, insere o uso dos inventários post-mortem para estudar as diferentes motivações amorosas, econômicas, sociais e sexuais nessas violências.

No último subcapítulo, “As mulheres e o povoamento da região sul do Mato Grosso”, a historiadora apresenta as construções históricas sobre a imperfeição e desvalorização feminina desde o advento do mito de Pandora. No entanto, Rodrigues evidencia o contexto mato-grossense na idealização desse olhar negativo sobre as mulheres, mas também suas redes de sociabilidades e convivências diárias. Ela estuda sobre o desenvolvimento da família patriarcal e as diferentes classes sociais naquela província. Ao analisar os depoimentos femininos, Rodrigues aponta os recatos nas denúncias em casos de violência sexual, e o porquê da recorrência à Justiça, esclarecendo também o processo de construção da nação brasileira e os interesses na divulgação de direitos sociais e civis pelos agentes de poder. Assim, a autora examina as realidades desses femininos, os efeitos das violências ligadas ao cotidiano e os conflitos em que elas presenciavam e buscavam solucionar, o que leva à desconstrução da ideia dos “papéis” ditos femininos de domesticidade e passividade.

No capítulo 2, “As múltiplas faces da criminalidade”, a historiadora novamente divide o capítulo em três subcapítulos. Neles, ela apresenta discussões sobre a Justiça no Mato Grosso, os poderes envolvidos, incluindo o papel dos médicos experts. Em “Violência e poder: pontos e contrapontos”, Rodrigues constrói sua narrativa acerca do desenvolvimento do judiciário brasileiro no século XIX e os jogos de interesses articulados, que contribuíam para uma violência simbólica e manipulações dentro da própria legislação. Ela analisa os recentes magistrados e agentes da lei formados por faculdades de direito no Império ou de Coimbra, destacando suas condições, seus salários, relações e status para com a construção das peculiaridades do Estado “liberal” imperial e as elites locais. Assim, dentro da análise jurídica, a autora trabalha com diferentes concepções sobre violência, porém destaca as especificidades e racionalidades do conceito de violência (físicas e simbólicas) e comportamentos na região mato-grossense do período, que se ressalta a dominação patriarcal e a situação escravista.

No segundo subcapítulo, “Lei e justiça: a construção da ordem social”, a historiadora discute a gradual transformação, problemas e burocratização do judiciário brasileiro desde o período colonial às relações de mandonismo local e do “liberalismo” da Constituição de 1824. A autora estuda a Lei de Terras em 1850 e o processo de reformas do Código Criminal e Código de Processo Penal no período regencial junto aos diferentes projetos políticos conservadores e liberais que refletiam nas mudanças de funções de juízes de paz e delegados. Além disso, Rodrigues trabalha também com as transformações e mudanças econômicas, abolicionistas e hierárquicas na região mato-grossense na metade do século XIX, que ocasionava as diferentes formas de violência e criminalidades em conjunto aos aprimoramentos legislativos. No entanto, tais aperfeiçoamentos pelos quais o país passava, inclusive nas leis e códigos, buscavam a construção de uma nação moderna e consequentemente um poder mais disciplinar sobre homens e mulheres, mesmo alcançando as regiões em épocas diferentes, como no Mato Grosso.

No seguinte subcapítulo, “Experts e expertises: práticas e saberes”, a historiadora pesquisa a inserção e inovação de novos agentes de poder e controle criminal, como os médicos legais, reconhecidos como experts. Ela salienta, assim, o processo do empenho político central na interferência da região e o status de homens da lei que se esforçavam para o reconhecimento populacional sobre seus direitos sociais e civis. Rodrigues discute também as distinções de exercícios entre magistrados, juízes de paz e delegados, para posteriormente inserir as práticas dos experts nas peculiaridades mato-grossenses e o uso do Dicionário de Medicina Popular. Em decorrência disto, são analisados o desencadeamento moderno e o desenvolvimento de diferentes áreas científicas, como a antropologia criminal que consequentemente contribui na construção da segregação do corpo feminino nos processos investigativos, além da naturalização e culpabilização biológica do criminoso ou da vítima.

No último capítulo do livro, o item um “Espaço público e privado: categorias políticas e reflexos sociais”, Rodrigues trabalha o mito da construção política do ambiente privado que a mulher deveria se restringir durante o século XIX e dos papéis sociais masculinos nas relações de poder e de controle. Entretanto, a historiadora contextualiza o ambiente matogrossense, destacando algumas características que fogem do ideal passivo feminino, pois havia mulheres ricas e pobres, como administradoras de bens e escravos e aquelas com seus ofícios cotidianos. Isso permite a compreensão dos múltiplos femininos que uma localidade e temporalidade histórica podem apresentar. Rodrigues pesquisa também o desenvolvimento da identidade e incapacidade feminina apresentadas em perspectivas masculinas, pelas cantigas locais e o discurso judiciário.

Com isso, a historiadora apresenta a relevância do matrimônio na região e suas ocorrências, desde agressões sexuais e físicas, além de discutir a ideia de família naquela conjuntura histórica. Ademais, a autora situa outros espaços, públicos (praças) e privados dessas violências, que englobavam assassinatos, estupros e suicídios maritais, extraconjugais e com escravas, utilizando de relatos de viajantes e processos criminais.

No penúltimo subcapitulo do livro, “Honra e costumes: os pecados do corpo e da alma”, Rodrigues aborda o Mato Grosso, pós Guerra do Paraguai e as mudanças decorrentes de tal conflito sobre a província. Perante isso, ela analisa as transformações nos esforços jurídicos e leis imperiais na região, a urbanização e as melhorias econômicas. Todas essas modificações acabavam por implicar a busca de mulheres acerca de seus direitos civis, o que levava aos questionamentos e modificações sobre costumes morais, religiosos e sexuais. Entretanto, a autora adverte que tais alterações sobre os costumes vinham não só como inovação, mas como reforço e aperfeiçoamento às ferramentas de poder para relações de dominação masculina e a permanência de discursos tradicionalistas sobre os “papéis” femininos. Com isso, são citados casos de violências domésticas e estupros, tanto no ambiente privado e público que abrangiam mulheres ricas ou pobres, seja em casamentos não oficializados, ou por outros relacionamentos. Diante disso, Rodrigues examina o julgamento de médicos peritos na questão da virgindade, além da investigação sobre as definições jurídicas de estupro e defloramento desde as Ordenações Filipinas e Códigos Imperiais. Assim, a historiadora finaliza discutindo sobre a prostituição dentro das violências sexuais e as motivações destas mulheres para com essa prática e, como também, as conclusões de processos de estupros na província de Mato Grosso.

Deste modo, no último subcapítulo do livro, “Teoria e práticas: ditos e contraditos”, Rodrigues discute, a partir de processos-crimes e inventários post-mortem, os rompimentos e contradições no discurso legislativo e judiciário sobre criminalidades ocorridas. A autora cita também como a lei moral e a medicina legal (experts) vêm reforçar muitos ideais e teorias modernas de embranquecimento e a segregação feminina. Considerando isso, a historiadora examina a construção do ideal de raça e “darwinismo social” frente aos experts, e a posterior noção de etnia, crimes e criminosos e as violências decorrentes do consumo de álcool.

Por fim, Rodrigues insere uma breve consideração final sobre o livro, no qual frisa novamente seu objetivo de estudo e quais as conclusões gerais e específicas de seus questionamentos acerca das ocorrências e fatores sobre mulheres sofrendo violências e praticando-as no Mato Grosso. Além disso, a autora retoma suas afirmações sobre as ações jurídicas e legislativas no Brasil do período, as injustiças e as articulações de diferentes femininos. Ela cita sobre os estudos das relações de gênero, sexualidade e feminismo desde a década de 60 e 80, e como estes contribuíram para as modificações na historiografia e da própria autora, repensando o papel de passividade e das violências frentes aos diferentes contextos sócio-históricos do século XIX.

O livro, enquanto resultado de doutorado da historiadora Marinete Rodrigues, enfatizou novas pesquisas sobre a História das mulheres e as relações de gênero. Muitos estudos acadêmicos, desde a década de 1980, vêm contribuindo para novos olhares à escrita histórica das mulheres, vendo-as em diferentes ambientes e particularidades históricas. Ou seja, compreenderam-se, no decorrer do livro, as variadas formas de violências e relações de micropoderes entre os gêneros femininos e masculinos na província mato-grossense e suas recorrências pela e com a Justiça, desconstruindo a ideia de ser este um tema de mera “curiosidade” histórica.

Posto isto, esclarece-se a relevância contemporânea da tese de Rodrigues, uma vez que discute a construção sócio-histórica da violência feminina, do alcoolismo, da prostituição, e especialmente as leis e crimes penais desde o período colonial e imperial. Comumente a influência da História Nova e dos novos questionamentos históricos a partir da atualidade, como as relações de gêneros e a Lei Maria da Penha, a linha de pesquisa da historiadora sobre violências femininas de negras, indígenas e mulheres pobres fazem com se retome o desenvolvimento da ideia de culpabilização feminina em casos de estupro e aborto. Ou seja, muitas criminalidades sexuais são antes de tudo estudadas sobre o viés da culpa da mulher e vitimização masculina, pois se questiona a roupa e circunstância em que a mulher se encontrava, além da influência de exames de corpo de delito e da medicina legal. Além disso, é de senso comum a atribuição da ideia de negras como mulheres “de vida”, sem que se olhe como esse discurso é uma construção histórica estigmatizante que Rodrigues problematiza em sua obra. Nota-se, diante disso, como as relações de gênero implicam nas relações de poder.

Assim, com uma linguagem acessível, o livro apresenta um panorama novo para se pensar o Brasil durante o Império. A província mato-grossense, apesar de exclusa geograficamente, experimentava constantes interferências políticas centrais e leis que administravam e subjugavam violências cotidianas e femininas abordadas no livro. É, portanto, construir a História do Brasil que foge de olhares somente políticos, mas que articulam o político manifestado no cotidiano, nas violências e principalmente nas microrrelações de poder no Mato Grosso do século XIX que, conforme apresentado, refletem-se até os dias atuais.


Resenhista

Laís Prestes Redondo – Graduanda em História pela Universidade Sagrado Coração (USC). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

RODRIGUES, Marinete Aparecida Zacharias. Mulheres, Violência e Justiça no século XIX. Jundiaí, SP: Paço Editorial, 2016. Resenha de: REDONDO, Laís Prestes. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 192 – 198, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

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