Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais – SARAIVA (HO)

SARAIVA. Daniel Lopes. Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais. São Paulo: Letra e Voz, 2018. 200p. Resenha de: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Pereira de. “Operária da música brasileira”: Nara Leão e uma memória musical do Brasil. História Oral, v. 22, n. 2, p. 283-286, jul./dez. 2019.

Aqueles que cruzassem os corredores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) da Guanabara, em meados dos anos 1970, poderiam ter a sorte de avistar, mesmo que de relance, uma das maiores intérpretes da música brasileira. Para alguns, somente uma estudante de Psicologia que transitava pelo campus. Com os holofotes afastados, em um movimento próprio e consciente, Nara Leão sentava na sala de aula determinada a aprender o máximo possível. Essa sede por conhecimento vinha desde as reuniões de artistas em seu apartamento, na Zona Sul do Rio de Janeiro, sendo objeto de dedicação durante toda sua carreira e presente nas narrativas realizadas sobre ela. A musa da Bossa Nova, que circulou por inúmeros estilos, era uma profunda conhecedora da música brasileira, reconhecida por seus pares como de refinado gosto musical. Não à toa, foi responsável por lançar diversos artistas, além de dialogar com grandes movimentos musicais do país, como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália, e fazer parte da invenção e institucionalização da MPB.

A figura de Nara Leão perpassa por diversos momentos da música brasileira. Os choques e afastamentos da artista com os holofotes, a aproximação com jovens e talentosos músicos, o enobrecimento de movimentos marginalizados, são alguns dos inúmeros pontos que resultam de seu constante trânsito. De forma inquieta, inteligente e perspicaz, a trajetória de Nara se encontra com a de outros artistas brasileiros contemporâneos a ela, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Zé Keti, Roberto Carlos, Fagner, entre tantos outros, que a destacam nas suas próprias trajetórias.

A efervescente vida de Nara Leão é o ponto de partida da pesquisa de Daniel Lopes Saraiva, no livro “Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais”, publicado pela editora Letra e Voz, em 2018. Preocupado em dar densidade histórica para uma trajetória marcada por inúmeros trânsitos, o autor dialoga com as produções musicais da artista, passando por documentos oficiais do governo ditatorial brasileiro e entrevistas com colegas de trabalho, amigos e familiares. Assim, a trama tece diálogos entre uma sociedade que se transformava em diversas esferas e os trajetos da intérprete, sem perder de vista o desenvolvimento da música popular brasileira. Tendo como objetivo central compreender a figura de Nara Leão em perspectiva histórica, o livro se concentra no desenvolvimento da carreira da artista, através de reflexões sobre sua vida e obra, enquanto possibilidade para compreender um período complexo do país.

A obra é dividida em três capítulos. No primeiro, o autor procura, de forma audaciosa, traçar uma pequena biografia da artista, trazendo relatos de sujeitos que estiveram ao seu redor, principalmente entre sua infância e o início de carreira, sem perder de vista o contexto musical brasileiro. Já o segundo, se debruça nos seus diferentes engajamentos, como a aproximação com o Centro Popular de Cultura (CPC) e o teatro, e as vicissitudes enquanto mulher inserida nesses espaços. O terceiro, traz os 23 LPs gravados por Nara, além de uma discussão sobre a sua relação com diversos movimentos musicais, a busca por canções com temas caros à artista, e sua importância frente à indústria cultural nos anos 1970 e 1980.

O manancial de fontes de que o autor lança mão é ponto de destaque. Impressos, como Folha de São Paulo, Diário do Comércio, O Globo e O Pasquim; LPs, todos os de Nara Leão, entre 1964 e 1989, além de outros que marcaram a trajetória da intérprete. Filmes, como “Esse Mundo é Meu”, de Sérgio Ricardo, e “Quando o Carnaval Chegar”, de Cacá Diegues. Documentos de arquivos, como os da Força Aérea Brasileira (FAB), da Polícia Federal (PF), do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Além disso, 25 entrevistas, em sua maioria realizada pelo autor, com pessoas que circundavam a vida pessoal e profissional de Nara Leão, como Roberto Menescal, Cacá Diegues e Fagner. Elas são operacionalizadas em diálogo, buscando tatear os fragmentos do passado de Nara e da música brasileira.

Por conta disso, a escrita se destaca no tocante à memória. Daniel Saraiva transcorre pelas fontes para propor uma trama interessante, que nos convida a problematizar diferentes versões sobre a trajetória de Nara Leão. Construindo memórias sobre a intérprete, os entrevistados elaboram narrativas que se chocam em alguns momentos, denotando ruídos entre as várias verdades acionadas. A memória, conforme Jacy Alves de Seixas, é uma reelaboração do passado, em que ela é ativada visando um controle daquilo que já não existe mais (Seixas, 2001). A latência dessa lembrança é evidenciada nos depoimentos destacados na obra. Para os entrevistados, lembrar Nara Leão é lembrar-se de si mesmo, em uma compreensão afetiva de suas experiências.

As memórias evocadas pelos rastros de Nara Leão são intensamente perseguidas pelo autor, em diálogo constante com a construção de narrativas sobre a própria MPB. Com um passado fragmentado, suas dimensões nunca serão apreendidas em sua plenitude, sendo visões sobre ele. Entre as representações construídas por diferentes sujeitos e fontes, a narrativa opera como mediadora entre configurações de mundo, conforme Paul Ricoeur (2008). A “invenção da tradição” da MPB, segundo Paulo César de Araújo, perpassa um processo de construção narrativa daquilo que estaria inserido na sigla, assim como do que estaria alijado (Araújo, 2002). Diversos artistas foram relegados ao ostracismo, seja pelo mercado fonográfico seja pela construção narrativa da MPB que não os contempla. Do outro lado, encontra-se Nara Leão, que sobrevive a diferentes crises da sigla, seja pelo seu gosto musical refinado, por sua origem social de classe média, ou talvez pela proximidade com os altos escalões das gravadoras.

O autor indaga sobre a construção de uma memória oficial sobre Nara Leão, analisando de que forma ela se conforma nas diferentes narrativas. Ao longo da obra, vimos a preocupação em não perder de vista de onde e com quem a intérprete falava, deixando evidente que Nara estava em contato e dialogava com uma pequena parcela da população brasileira, composta pela elite econômica e uma classe média intelectualizada. Esse ponto é retomado em diversas passagens, principalmente quando aproximada com a institucionalização da MPB, em que o papel social engajado da artista é evidenciado. A carga política e estética que a sigla carrega também pode ser percebida na sua trajetória, se destacando ao cantar as mazelas do povo, mesmo não fazendo parte dessa camada social, e nem dialogando com ela.  As memórias construídas sobre a artista exaltam sua personalidade transgressora e engajada, e constroem uma Nara multifacetada. As negociações e disputas em torno dessa memória nos colocam a par de circuitos afetivos, que tecem narrativas sobre a artista. Entendê-las enquanto uma construção revela seu caráter instável, transitório e múltiplo. Assim como a própria Nara Leão.

Referências

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de História: Problemáticas Atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (Org.) Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 37-58.

Carlos Eduardo Pereira de Oliveira – Doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com área de concentração em História do Tempo Presente. Possui graduação e mestrado em História pela mesma instituição. Vinculado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS-UDESC), tem experiência no campo dos estudos sobre canção, consumo e meios de comunicação.

 

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