Meninos de zinco | Svetlana Aleksiévitch

Svetlana Aleksievitch Meninos de Zinco
Svetlana Aleksiévitch | Imagem: Estadão

Svetlana Aleksiévitch é jornalista e escritora bielorrussa, nascida em 1948, quarta geração de uma família de professores rurais e vencedora do prêmio Nobel de literatura em 2015. Seus livros formam o projeto literário intitulado “As vozes da utopia”, um retrato desde o pós-guerra (Segunda Guerra Mundial) até a dissolução da União Soviética.

Em entrevista concedida durante a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2016, Aleksiévitch contou sobre o processo de criação dos seus livros. Os relatos são gravados pois, segundo ela, não seria possível expressar os sentimentos de uma pessoa no papel, “cada ser humano tem que gritar a sua verdade”. Para que essa verdade venha à tona, a autora diz que não realiza entrevistas, mas conversas com entonação de amizade sobre a vida. Leia Mais

Alteridades em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis | Miriam hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

Gabriel Amato e Miriam Hermeto Meninos de Zinco
Gabriel Amato e Miriam Hermeto | Imagem: UFMG

Sentados diante de um Outro, tentamos atribuir sentido a ele. Ou enquadrá-lo, nas palavras de Judith Butler (2018). No instante dessa “cena do reconhecimento”, as molduras que usamos vêm de relações de poder que extrapolam esse momento. Ao reconhecê-lo como outro, reconhecemos também a nós mesmos. Há semelhanças, mas também há diferenças.

Já nos vimos antes ou esse é o primeiro contato? É uma mulher, assim como eu? Ou talvez é um homem e ainda mais velho? Há confiança suficiente entre nós para que o que ela está para me dizer seja enunciado? Tais características constituem uma barreira ou um conector entre nós? Os pesquisadores que já estiveram em entrevistas de história oral sabem que as respostas a cada uma dessas perguntas – e a inúmeras outras – podem levar, a nós e a nossas pesquisas, para rumos diversos, muitas vezes inesperados. Leia Mais

Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo | Patrícia Rodrigues da Silva

Entre vozes femininas Meninos de Zinco
Entre vozes femininas | Detalhe de capa

Lançada em 2020, a obra Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo é organizada por Patrícia Rodrigues da Silva e faz parte da Coleção PPGH, que tem como objetivo divulgar pesquisas do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM).

Precedido por outros três títulos também lançados em 2020 pela Editora CRV, este volume 4 é o primeiro a se debruçar especificamente sobre o contexto amazonense, o fazendo, sobretudo, por meio dos relatos e das escritas femininas – dos oito artigos que compõem o livro, seis deles são escritos por mulheres. Leia Mais

Decoding “Despacito”: an Oral History of Latin Music | Leila Cobo

Em 2021, a jornalista colombiana Leila Cobo lançou sua nova obra na qual reúne depoimentos sobre a história da Latin1 Music baseados no uso de entrevistas com artistas, produtores musicais, empresários, comunicadores sociais e compositores. Intitulado Decoding “Despacito”: an Oral History of Latin Music/La fórmula “Despacito”: los hits de la música latina contados por sus artistas, o livro conta com uma versão em inglês e outra em espanhol, e é resultado dos anos da comunicadora social dedicados à cobertura da indústria fonográfica, em especial como colunista e jornalista da seção Latin da revista Billboard. Apesar da semelhança com coletâneas organizadas por jornalistas que atuaram na indústria fonográfica, a exemplo de Everyone loves you when you’re dead (2011), de Neil Strauss, que pretendem ser uma reunião de entrevistas, Cobo apresenta uma perspectiva distinta, concentrando-se na construção de um texto que usa os depoimentos para uma biografia das canções. Em linhas gerais, trata-se de obra que apesar de se intitular como trabalho de História Oral não se destina propriamente ao ambiente acadêmico, sendo seu principal público-alvo leitores e/ou curiosos sobre a história da música, o que não significa (como veremos nesta resenha) que suas metodologias e escolhas narrativas não possam fornecer contribuições valiosas para se pensar o campo historiográfico. Leia Mais

História Pública e História do Tempo Presente | Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges

Observou-se nas últimas décadas um crescimento em estudos que destacam a memória como objeto ou fonte de pesquisas históricas. Pautada principalmente a partir da década de 1980, sua interlocução com a história permitiu intensos debates sobre temáticas caras ao passado presente. A História Oral se estabeleceu como prática no campo, consolidou diferentes vertentes teórico-metodológicas e adensou as discussões entre memória e história. Conectada pela memória, a área se aproxima da História do Tempo Presente, e em consonância com a História Pública, busca amarrar esses pontos, com foco em produções realizadas com (e para) o público.

Essas questões estão no livro História Pública e História do Tempo Presente, lançado em 2020 pela editora Letra e Voz, com organização de Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges, docentes na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Seus escritos são marcados pelas interfaces de contato entre esses campos, e desenvolvem pesquisas que abordam a relação entre temporalidades, memória, estratos temporais e o caráter público da história. A obra possui dez capítulos, divididos em artigos e entrevistas, e busca contribuir com diferentes panoramas a partir de linhas teóricas e discussões que se cruzam. Reunindo 12 autores, o livro nos convoca a pensar sobre os usos do passado, a monumentalização e o fomento de um campo preocupado com as implicações públicas do fazer histórico. Leia Mais

Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogos com mulheres que nos transformam | Marta Gouveia de Oliveira Rovai

Lançado em 2021, pela Editora Cancioneiro, o livro Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogo com mulheres que nos transformam, organizado pela historiadora e professora da Universidade Federa de Alfenas (Unifal), Marta Gouveia de Oliveira Rovai, se propõe a apresentar o diálogo entre saberes de inúmeras e diversas histórias de mulheres através do encontro entre a história acadêmica e a história fora dos muros da universidade. A obra conta com vinte e duas mulheres que compartilharam sua história de vida com trinta e oito pesquisadore (a)s que fazem uso da história oral e dos debates sobre memórias, gêneros e identidades, em um processo de escuta dialógica sobre as demandas inclusivas do tempo presente.

A obra de Rovai (2021) traz uma importante contribuição sobre a importância da ação dos pesquisadores quanto ao ato de ouvir e a reflexão sobre uma ética da escuta, envolvendo o respeito às narradoras, às suas memórias e expectativas, por meio de uma postura que envolve olhos, ouvidos e alma. A autora evidencia que o livro não fala de mulheres subalternas, mas subalternizadas, e que as escritas registradas na obra só foram possíveis devido ao processo dialógico, em que as mulheres desejaram ver suas histórias compartilhadas por ouvintes que ampliaram suas vozes. Leia Mais

História oral e historiografia: Questões sensíveis | Angela de Castro Gomes

Em continuidade à coleção História Oral e dimensões do público,1 foi lançada, no ano de 2020, a obra História oral e historiografia: Questões sensíveis, organizado por Angela de Castro Gomes. O livro constitui um misto de experiências de pesquisas, análises de narrativas orais sobre diversas temáticas, levantamentos de produções historiográficas das últimas quatro décadas e debates pertinentes sobre as questões sensíveis que envolvem a utilização das fontes orais. O objetivo, como apontado na introdução, foi “fazer um mapeamento […] do impacto que o uso da metodologia da História Oral produziu no campo das pesquisas acadêmicas de História, no Brasil, em especial a partir dos anos de 1980” (Gomes, 2020, p. 7).

Angela de Castro Gomes tem reconhecimento no campo da historiografia oral, sendo uma das propulsoras do campo no Brasil. Iniciou, como lembra no último capítulo do livro, a utilizar a História Oral a partir da segunda metade dos anos de 1970. A autora também foi coordenadora de diversos projetos que tinham como objeto a história política do Brasil República, a história de intelectuais, a cidadania e os direitos do trabalho, a historiografia, a memória e o ensino de história. Além disso, dirigiu o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) dos anos de 1988 até 1994, onde, hoje, é professora emérita; centro este conhecido pelos acervos e pesquisas que se utilizaram da História Oral. Leia Mais

Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado | Angela de Castro Gomes e Regina Beatriz Guimaraes Neto

El trabajo, al igual que muchos, si no es que la mayoría, de los temas que tienen que ver con la actividad humana, no es un “hecho de la naturaleza” sino que se trata de un fenómeno que se ha visto modificado, tanto en su forma como en su contenido, a lo largo de las civilizaciones. En La condición humana (España, Paidós, 1993) dice la filósofa Hannah Arendt: “La Edad Moderna trajo consigo la glorificación teórica del trabajo, cuya consecuencia ha sido la transformación de toda la sociedad en una sociedad de trabajo” y, desde este mirador es que el libro Trabalho eslavo contemporaneo: tempo presente e usos do passados de Angela Castro Gomes y Regina Guimaraes Neto, nos ayuda a mirar mejor cómo una de las características del trabajo en la era moderna sigue siendo la superexplotación, concepto acuñado por Ruy Mauro Marini que refiere a una forma particular de operaración del sistema productivo.

El texto es un recorrido útil, bien documentado, de la historia de las actividades agrarias en la región norte de Brasil, entre cuyas características resalta precisamente el esclavismo, fenómeno que por cierto, al amparo de las formas de producción globalizadas, ha vuelto a ocupar “puestos” importantes bajo las firmas – y formas – de capital maquilador. Leia Mais

A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro | Carolina Dellamore, Gabriel Amato, Natália Batista

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O livro A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro (2017) é uma coletânea de artigos organizada por Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natália Batista. Os organizadores são pesquisadores com doutorados vinculados ao Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais (PPGH-UFMG) e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da mesma universidade (FAFICH-UFMG), coordenados pelos professores Rodrigo Patto Sá Motta e Miriam Hermeto. O grupo se concentra em pesquisas que têm como mote a história do estado de Minas Gerais, do tempo presente e do regime civil-militar brasileiro.

A obra foi lançada no XII Encontro Regional Sudeste de História Oral, ocorrido na UFMG entre 26 a 28 de setembro de 2017. Alguns conferencistas convidados para o evento escreveram capítulos, sendo a maioria dos pesquisadores que publicaram suas reflexões no livro ligados à instituições universitárias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro que encontram representação na seção sudeste da Associação Brasileira de História Oral (ABHO). A História Oral aparece em sua face múltipla: praticada a partir de inflexões teóricas e metodológicas diversas e tendo como eixo de preocupação a relação entre a memória social e a História. Leia Mais

Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais – SARAIVA (HO)

SARAIVA. Daniel Lopes. Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais. São Paulo: Letra e Voz, 2018. 200p. Resenha de: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Pereira de. “Operária da música brasileira”: Nara Leão e uma memória musical do Brasil. História Oral, v. 22, n. 2, p. 283-286, jul./dez. 2019.

Aqueles que cruzassem os corredores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) da Guanabara, em meados dos anos 1970, poderiam ter a sorte de avistar, mesmo que de relance, uma das maiores intérpretes da música brasileira. Para alguns, somente uma estudante de Psicologia que transitava pelo campus. Com os holofotes afastados, em um movimento próprio e consciente, Nara Leão sentava na sala de aula determinada a aprender o máximo possível. Essa sede por conhecimento vinha desde as reuniões de artistas em seu apartamento, na Zona Sul do Rio de Janeiro, sendo objeto de dedicação durante toda sua carreira e presente nas narrativas realizadas sobre ela. A musa da Bossa Nova, que circulou por inúmeros estilos, era uma profunda conhecedora da música brasileira, reconhecida por seus pares como de refinado gosto musical. Não à toa, foi responsável por lançar diversos artistas, além de dialogar com grandes movimentos musicais do país, como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália, e fazer parte da invenção e institucionalização da MPB.

A figura de Nara Leão perpassa por diversos momentos da música brasileira. Os choques e afastamentos da artista com os holofotes, a aproximação com jovens e talentosos músicos, o enobrecimento de movimentos marginalizados, são alguns dos inúmeros pontos que resultam de seu constante trânsito. De forma inquieta, inteligente e perspicaz, a trajetória de Nara se encontra com a de outros artistas brasileiros contemporâneos a ela, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Zé Keti, Roberto Carlos, Fagner, entre tantos outros, que a destacam nas suas próprias trajetórias.

A efervescente vida de Nara Leão é o ponto de partida da pesquisa de Daniel Lopes Saraiva, no livro “Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais”, publicado pela editora Letra e Voz, em 2018. Preocupado em dar densidade histórica para uma trajetória marcada por inúmeros trânsitos, o autor dialoga com as produções musicais da artista, passando por documentos oficiais do governo ditatorial brasileiro e entrevistas com colegas de trabalho, amigos e familiares. Assim, a trama tece diálogos entre uma sociedade que se transformava em diversas esferas e os trajetos da intérprete, sem perder de vista o desenvolvimento da música popular brasileira. Tendo como objetivo central compreender a figura de Nara Leão em perspectiva histórica, o livro se concentra no desenvolvimento da carreira da artista, através de reflexões sobre sua vida e obra, enquanto possibilidade para compreender um período complexo do país.

A obra é dividida em três capítulos. No primeiro, o autor procura, de forma audaciosa, traçar uma pequena biografia da artista, trazendo relatos de sujeitos que estiveram ao seu redor, principalmente entre sua infância e o início de carreira, sem perder de vista o contexto musical brasileiro. Já o segundo, se debruça nos seus diferentes engajamentos, como a aproximação com o Centro Popular de Cultura (CPC) e o teatro, e as vicissitudes enquanto mulher inserida nesses espaços. O terceiro, traz os 23 LPs gravados por Nara, além de uma discussão sobre a sua relação com diversos movimentos musicais, a busca por canções com temas caros à artista, e sua importância frente à indústria cultural nos anos 1970 e 1980.

O manancial de fontes de que o autor lança mão é ponto de destaque. Impressos, como Folha de São Paulo, Diário do Comércio, O Globo e O Pasquim; LPs, todos os de Nara Leão, entre 1964 e 1989, além de outros que marcaram a trajetória da intérprete. Filmes, como “Esse Mundo é Meu”, de Sérgio Ricardo, e “Quando o Carnaval Chegar”, de Cacá Diegues. Documentos de arquivos, como os da Força Aérea Brasileira (FAB), da Polícia Federal (PF), do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Além disso, 25 entrevistas, em sua maioria realizada pelo autor, com pessoas que circundavam a vida pessoal e profissional de Nara Leão, como Roberto Menescal, Cacá Diegues e Fagner. Elas são operacionalizadas em diálogo, buscando tatear os fragmentos do passado de Nara e da música brasileira.

Por conta disso, a escrita se destaca no tocante à memória. Daniel Saraiva transcorre pelas fontes para propor uma trama interessante, que nos convida a problematizar diferentes versões sobre a trajetória de Nara Leão. Construindo memórias sobre a intérprete, os entrevistados elaboram narrativas que se chocam em alguns momentos, denotando ruídos entre as várias verdades acionadas. A memória, conforme Jacy Alves de Seixas, é uma reelaboração do passado, em que ela é ativada visando um controle daquilo que já não existe mais (Seixas, 2001). A latência dessa lembrança é evidenciada nos depoimentos destacados na obra. Para os entrevistados, lembrar Nara Leão é lembrar-se de si mesmo, em uma compreensão afetiva de suas experiências.

As memórias evocadas pelos rastros de Nara Leão são intensamente perseguidas pelo autor, em diálogo constante com a construção de narrativas sobre a própria MPB. Com um passado fragmentado, suas dimensões nunca serão apreendidas em sua plenitude, sendo visões sobre ele. Entre as representações construídas por diferentes sujeitos e fontes, a narrativa opera como mediadora entre configurações de mundo, conforme Paul Ricoeur (2008). A “invenção da tradição” da MPB, segundo Paulo César de Araújo, perpassa um processo de construção narrativa daquilo que estaria inserido na sigla, assim como do que estaria alijado (Araújo, 2002). Diversos artistas foram relegados ao ostracismo, seja pelo mercado fonográfico seja pela construção narrativa da MPB que não os contempla. Do outro lado, encontra-se Nara Leão, que sobrevive a diferentes crises da sigla, seja pelo seu gosto musical refinado, por sua origem social de classe média, ou talvez pela proximidade com os altos escalões das gravadoras.

O autor indaga sobre a construção de uma memória oficial sobre Nara Leão, analisando de que forma ela se conforma nas diferentes narrativas. Ao longo da obra, vimos a preocupação em não perder de vista de onde e com quem a intérprete falava, deixando evidente que Nara estava em contato e dialogava com uma pequena parcela da população brasileira, composta pela elite econômica e uma classe média intelectualizada. Esse ponto é retomado em diversas passagens, principalmente quando aproximada com a institucionalização da MPB, em que o papel social engajado da artista é evidenciado. A carga política e estética que a sigla carrega também pode ser percebida na sua trajetória, se destacando ao cantar as mazelas do povo, mesmo não fazendo parte dessa camada social, e nem dialogando com ela.  As memórias construídas sobre a artista exaltam sua personalidade transgressora e engajada, e constroem uma Nara multifacetada. As negociações e disputas em torno dessa memória nos colocam a par de circuitos afetivos, que tecem narrativas sobre a artista. Entendê-las enquanto uma construção revela seu caráter instável, transitório e múltiplo. Assim como a própria Nara Leão.

Referências

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de História: Problemáticas Atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (Org.) Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 37-58.

Carlos Eduardo Pereira de Oliveira – Doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com área de concentração em História do Tempo Presente. Possui graduação e mestrado em História pela mesma instituição. Vinculado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS-UDESC), tem experiência no campo dos estudos sobre canção, consumo e meios de comunicação.

 

Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil | Thiago Nunes Soares

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Lançado em 2018, pela Editora Appris, o livro Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil, do historiador Thiago Nunes Soares, se propõe a apresentar as pichações produzidas nesse período como um dos instrumentos de resistência utilizados pelos militantes das esquerdas no país. Temática ainda pouco discutida dentro da militância nos anos de chumbo, as pichações surgiram como um canal de mobilização e arregimentação política, sendo uma das formas de atuação da esquerda jovem do país na luta pela democracia e direito ao voto.  A obra de Soares (2018) traz uma importante contribuição às historiografias local e nacional sobre o tema e o período.

O autor utilizou uma vasta documentação para desenvolver sua análise. Trabalhou com dossiês dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS- PE), com periódicos, tanto da grande imprensa quanto dos veículos alternativos, além de entrevistas de história oral. Nesse sentido, as memórias foram analisadas como um mosaico para a composição da sua pesquisa, cruzando-as com outras fontes, problematizando-as e levando em consideração as suas especificidades. Assim, foi possível tecer um panorama elucidativo acerca das experiências políticas dos autores e autoras de pichações e dos embates em torno das lutas em prol das liberdades democráticas.  Dessa forma, Soares (2018) analisa vestígios produzidos de forma clandestina nos muros da cidade, de 1979 a 1985, em um momento em que os seus autores eram alvo de intensa vigilância e repressão policial. Leia Mais

História oral e práticas educacionais – RODEGHERO (HO)

RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Org.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. 226 p. Resenha de: SANTHIAGO, Ricardo. A história oral e suas possibilidades educacionais. História Oral, v. 20, n. 1, p. 237-240, jan./jun. 2017.

O livro História oral e práticas educacionais, organizado por Carla Simone Rodeghero, Lúcia Grinberg e Méri Frotscher, consolida e amplia discussões motivadas pelo 13º Encontro Nacional de História Oral, realizado em 2016 na cidade de Porto Alegre, em torno do mesmo tema. A diversidade dos artigos que compõem a obra mostra-se não a despeito do tema unificador do evento, mas, ao menos em parte, em função dele. No Brasil, afinal, a história oral desenvolveu-se predominantemente enquanto uma especialidade acadêmica, perseguida no seio da universidade e favorecida pela expansão do sistema de pós-graduação.

Diferentemente do que ocorreu em contextos onde a história oral floresceu em arquivos, bibliotecas e institutos eminentemente investigativos, aqui a pujança do campo esteve atrelada às universidades; deve-se ao entusiasmo de estudantes que, com inúmeras teses, dissertações e trabalhos de graduação, tiveram e têm um papel fundamental em dimensionar a prática da história oral e garantir que ela seja considerada como um recurso de pesquisa valioso e como um empreendimento coletivo capaz de oferecer interpretações sólidas e muitas vezes desafiadoras sobre o passado e o presente.

A principal novidade da coletânea reside no esforço de sistematização de reflexões e experiências sobre o uso da história oral no ensino – em universidades, escolas e espaços de educação não formal –, aliando-se a outras publicações recentes que tratam do assunto. A busca por essa sistematização dá o tom da primeira parte da obra, História oral e práticas educacionais.

O capítulo De volta ao futuro: o poder político da história oral na educação, da canadense Kristina R. Llewellyn, provém de um contexto que tem a história oral como recurso frequente na escola básica, em variadas disciplinas e em projetos interdisciplinares. Llewellyn argumenta que a história oral “proporciona aos jovens a capacidade de transformar narrativas históricas sobre suas nações e empoderaos para moldar seu futuro político” (p. 17), mas defende que isso passa por uma reorientação da “cultura do testemunho” em que os jovens estão inseridos e das ferramentas tecnológicas em que essa cultura está encarnada. A autora entende o uso do método na escola como um caminho para a democratização e para a consciência crítica, e oferece exemplos de como isso tem sido perseguido, inclusive no projeto que integra, que combina história oral, realidade virtual e realidade aumentada.

Os dois textos seguintes harmonizam o entusiasmo de Llewellyn com reflexões que descortinam a complexidade do uso pedagógico da história oral.

Em Dois temas sensíveis no ensino de história e as possibilidades da história oral: a questão racial e a ditadura no Brasil, Verena Alberti vai além das dimensões sinalizadas por seu título e evidencia como “a própria História já pode ser vista como uma matéria sensível e controversa” (p. 38). Com exemplos instrutivos e propostas pedagógicas práticas, Alberti demonstra de que formas as histórias pessoais podem ser utilizadas como aliadas para desafiar noções do senso comum e estimular o pensamento crítico. Em História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino, Carla Simone Rodeghero reforça a ideia de que as histórias orais servem não somente para sensibilizar, mas também para favorecer a compreensão crítica: recuperando dois de seus temas de estudo, o anticomunismo e a anistia, a autora evidencia a capacidade que os relatos orais têm de tensionar leituras e interpretações estabelecidas sobre o passado.

A segunda parte do livro, História oral: experiências e possibilidades na educação formal e não formal, é aberta por Isabel Cristina Martins Guillen, que em História oral e ensino de história: experiências e debates nutre-se de várias experiências de uso da história oral no âmbito da graduação em História para dissertar acerca do valor pedagógico da história oral e da história local enquanto abordagens capazes de enfrentar questões globais nos estudos sobre o presente. Suas ideias encontram ressonância no ensaio História do tempo presente, história oral e ensino de história, em que Marieta de Moraes Ferreira entrelaça as dimensões de seu título, objetos de reflexão persistentes em sua trajetória, reconhecendo que “as novas metas do ofício de historiador” são balizadas pela “tensão entre seu papel social e seu compromisso com a produção científica” (p. 132) e sugerindo que a história oral é um caminho possível para que o profissional persiga essas metas.

Os outros artigos relatam percursos nos quais os procedimentos estabelecidos encontram-se com a criatividade e integram-se a dinâmicas interdisciplinares e práticas multiprofissionais. Em História, memória e performance em narrativas orais de crianças, Luciana Hartmann recapitula três experiências de investigação distintas em termos de tema e abordagem; da perspectiva de uma antropóloga que estuda performance e as múltiplas manifestações da oralidade, ela chama atenção para esses narradores raramente convocados a relatar suas experiências, valorizando o aproveitamento pedagógico do impulso narrativo das crianças. Em Memória, cultura e educação não formal: experiências de pesquisa, a socióloga Olga Rodrigues de Moraes von Simson revisita seu próprio itinerário, demonstrando como, a partir de seu estudo pioneiro sobre o carnaval paulista, outros territórios temáticos e geográficos puderam ser explorados, em uma perspectiva que configura o diálogo entre estudiosos e sujeitos de pesquisa como propulsor do desenvolvimento de uma consciência identitária e de um senso de pertencimento cultural. Em O amor entre a voz e a coisa: a construção de uma exposição sobre o amor a partir do depoimento dos doadores de objetos, Kênia Sousa Rios relata como, partindo do inventivo deslocamento semântico da expressão “prova de amor”, ela propôs aos seus alunos uma reflexão histórica sobre o amor romântico e os temas que ele vivifica, como as relações familiares e os papéis de gênero; essa discussão culminou na criação de uma exposição que, valendo-se de histórias orais, retratos e objetos, encarnou as expectativas, os sonhos, os delírios e as frustrações que enlaçam histórias de amor.

A parte final da obra, intitulada História oral, pesquisa, ensino e acervos, é aberta por Luciane Sgarbi S. Grazziottin, que em História da educação e história oral: possibilidades de pesquisa em acervos de memória reflete sobre os problemas envolvidos nas pesquisas que se valem de entrevistas arquivadas, mencionando três acervos utilizados em seus próprios estudos. Em História oral e educação matemática: perspectivas e um projeto coletivo, Antonio Vicente Marafioti Garnica e Maria Ednéia Martins Salandim relatam a trajetória do Grupo História Oral e Educação Matemática (GHOEM), no qual a história oral acopla duas funções de igual importância: estabelecer novas fontes para o estudo da formação e do ensino de matemática e dinamizar, junto com os educadores, um processo de reflexão que constitui e revela uma identidade profissional específica. Em Garimpando memórias: esporte, lazer e educação física, Silvana Vilodre Goellner recupera a trajetória do Centro de Memória do Esporte (CEME) da UFGRS, dedicado à guarda e à investigação de acervos esportivos e também à produção cultural, já que os depoimentos são base para exposições, programas educativos e para um acervo digital. O artigo explicita o compromisso em oferecer visibilidade pública às histórias colhidas, em coerência com o impulso de reconhecer o papel das experiências de outros sujeitos que não os vencedores (em se tratando de esportes competitivos, no sentido literal).

O último capítulo da obra, Memórias em movimento: a experiência com fontes orais e visuais do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, de Ana Maria Mauad, ultrapassa a proposta da autora e pode ser interpretado como um encapsulamento de questões que permeiam todo o livro, cujo enfrentamento é crucial na abordagem da história oral como prática educacional.

Em primeiro lugar, é crucial por chamar atenção para os desafios de tomar a memória como um objeto de estudo a ser inquirido criticamente, para além de seu papel celebrativo e reiterativo ou de sua capacidade de sensibilização.

Em segundo, por fazer notar a intertextualidade constitutiva dos textos culturais, cuja leitura é condicionada pelos textos (escritos, orais, imagéticos etc.) que os precedem e sucedem, numa trama histórica complexa. Por fim, não menos importante, por acionar as noções de “prática historiadora” e “prática social”. A justaposição de ambas – “na produção de um conhecimento intersubjetivo e reconhecido como válido pelos sujeitos históricos” (p. 210) – é uma característica que explica, ao menos em parte, a disposição de um número crescente de educadores em incorporar a história oral como ferramenta pedagógica em espaços variados de educação formal e não formal.

Ricardo Santhiago – Doutor em História Social pela Universidade São Paulo (USP), com pós-doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI-UFF), do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (GEPHOM/EACH-USP) e do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid). E-mail: rsanthiagoc@ gmail.com.

Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985) – CHOTIL (HO)

CHOTIL, Mazé Torquato. Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985). Curitiba: Prismas, 2016. 346 p. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. A história dos/as trabalhadores/as exilados/as durante a ditadura. História Oral, v. 19, n. 2, p. 207-211, jul./dez. 2016.

Muito já foi falado a respeito do exílio de brasileiros durante a ditadura (1964-1979), como se pode ver nas pesquisas realizadas por Denise Rollemberg publicadas no livro Exílio: entre raízes e radares, em que a autora busca contar o exílio a partir dos ângulos político, histórico, pessoal e emocional percorrendo os mais variados temas, como as vivências, as lutas, os conflitos, o trabalho, os estudos etc. (Rollemberg, 1999). Do mesmo modo, o livro Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX, organizado por Samantha V. Quadrat, apresenta discussões importantes a respeito das categorias e aspectos gerais dos/as exilados/as das ditaduras latino-americanas (Quadrat, 2011). Há também as pesquisas que se preocuparam em explicitar o contato das mulheres exiladas com o feminismo, os ambientes de debates feministas (círculos) que emergiram no exterior e a reformulação da esquerda (Abreu, 2010; Back; 2013; Pedro; Wolff, 2007).

Mas uma questão que merecia uma adequada atenção e ainda se encontrava um tanto escondida era a partida, a inserção e o retorno de exilados/as das camadas populares. Como pode ser visto nas obras supracitadas, a grande maioria dos/as exilados/as políticos/as da ditadura eram provenientes das camadas médias que viviam em grandes centros urbanos do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. No entanto, ao se concentrar somente nos sujeitos das camadas médias, a escrita da história exilar sempre negligenciou as experiências daqueles que não tinham tais condições.

Mazé Torquato Chotil, ao realizar a sua pesquisa de pós-doutorado e publicar a sua produção, com o título Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), tirou da invisibilidade as situações dos sujeitos trabalhadores provenientes das camadas populares que deixaram o Brasil durante o período, muitas vezes em condições muito mais precárias do que os sujeitos estudados até o momento dessa publicação. A autora esclarece que, entre os/as exilados/as, os/as trabalhadores/as estavam em muito menor número que intelectuais e estudantes de classe média; no entanto, mesmo se tratando de uma pequena parte, a análise das trajetórias e o levantamento das vivências dos/as exilados/as trabalhadores/as são de suma importância para uma escrita da história dos sujeitos com esse perfil e dos movimentos sindicais aos quais estavam vinculados.

Ao longo dos três capítulos, Trabalhadores exilados apresenta as várias facetas (com seus aspectos negativos e positivos) vivenciadas por aqueles sujeitos que não possuíam certo capital cultural e econômico. Para a análise, a autora utilizou-se de um vasto levantamento de fontes; entre as principais, entrevistas, livros de memórias (como aqueles do projeto Memórias do exílio1) e listas de banidos. Com esse inventário, foi possível verificar o perfil desses indivíduos, os tipos de exílio que tiveram e as principais características de suas experiências.

Juntamente com a obra resenhada aqui, as pesquisas citadas no início deste texto são devedoras de uma explosão de memórias, escritas no período de exílio ou ao longo dos anos 1980 e 1990. Autobiografias, livros de memórias e entrevistas construídas com base nas teorias e metodologias da história oral se tornaram as principais fontes para as pesquisas acerca do exílio, sobretudo porque possibilitaram perceber como as pessoas que o viveram registraram seu cotidiano, exteriorizaram suas experiências sobre o período e inventaram/construíram a si mesmas.

A partir dessas fontes, Mazé T. Chotil leva em consideração, para a estrutura de sua análise, o antes, o durante e o depois do exílio. Assim, ela pensou de maneira completa o fenômeno social do exílio e as trajetórias dos sujeitos. Dessa forma, no primeiro capítulo a autora caracteriza o perfil dos grupos de exilados/as antes da partida. No segundo capítulo, apresenta o exílio, com os lugares de destino, as inserções, as militâncias, as formações (linguísticas e universitárias), as experiências afetivas etc. O último capítulo se dedica ao retorno e à reintegração desses sujeitos no Brasil, bem como às suas contribuições aos movimentos sindicais.

Ao realizar a sua pesquisa, Mazé T. Chotil produziu um quadro comparativo entre a condição socioeconômica que cada exilado/a tinha ao deixar o Brasil e a que alcançou ao se estabelecer no país de acolhida. Essa dimensão, muito bem levantada pela autora, foi relacionada às dificuldades da viagem, aos lugares de destino, ao trabalho (antes, durante e depois do exílio), à militância política no exterior, ao aprendizado e à formação acadêmica, entre outras questões. Além disso, com o livro é possível visualizar a importância do capital cultural, principalmente no que diz respeito ao conhecimento de uma língua estrangeira, de que os setores médios dispunham e as camadas populares não. Esse último aspecto foi muito relevante para a inserção inicial desses sujeitos nos lugares de destino.

No entanto, o grande mérito do livro encontra-se na análise da articulação e da influência que os exilados tiveram no convívio com organizações sindicais no exterior. Ao levantar essa questão, a autora apresenta o importante papel que teve, para a história do sindicalismo brasileiro, a circulação de ideias e o contato com organizações sindicais de outros países. Ela também aborda a militância que vários desses sujeitos exerceram e suas articulações com as organizações brasileiras desempenhadas durante no exílio. Por isso, além de tirar da invisibilidade os trabalhadores exilados, a autora amplia as discussões sobre o exílio, dando uma nova (e importante) dimensão às experiências vividas no período.

O único demérito que pode ser encontrado nessa pesquisa está ligado a algumas ausências: a primeira delas é a de uma lista completa – como anexo, talvez – dos nomes dos sujeitos que pertenciam ao grupo dos/as exilados/as.

A segunda está relacionada a informações mais detalhadas acerca das fontes das quais foram retiradas certas informações. Muitas vezes, a autora acaba não citando suas fontes, o que deixa lacunas ao/à leitor/a especializado/a que busque extrair de sua pesquisa as informações necessárias para uma investigação futura. Uma dessas situações se dá já no início da obra, quando deixa de explicitar as fontes relacionadas ao projeto Memórias do exílio às quais teve acesso.

Uma ausência pertinente também diz respeito às análises ligadas ao gênero. No segundo capítulo, ao desenhar o perfil dos/as exilados/as, Mazé T. Chotil apresenta uma importante referência: 23% dos “seus” analisados eram mulheres. No entanto, nos capítulos restantes, nos quais analisa principalmente as inserções e as militâncias, a autora esquece-se de relacionar de maneira interseccional o gênero, as camadas populares e as distintas inserções.

Certamente, ser mulher, militante de esquerda e banida era muito diferente de ser homem, militante de esquerda e banido, o que resultou, obviamente, em processos de inserção diferentes. Um exemplo se encontra na omissão de análise sobre a ausência de mulheres narrando suas experiências ligadas ao movimento sindical.

Embora tenham sido sentidas algumas ausências, de um modo geral Mazé T. Chotil realizou um excelente trabalho, abrindo caminho para inúmeras outras pesquisas e questões que ainda precisam ser respondidas a respeito do exílio de trabalhadores/as durante a ditadura brasileira (1964-1985).

Nesse sentido, além de dar visibilidade aos/às trabalhadores/as e de narrar as experiências desses sujeitos, a autora deixa um amplo corpo bibliográfico e documental para os futuros questionamentos que ainda devem emergir sobre a temática.

Referências

ABREU, Maira L. G. de. Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. 2010. 245 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, SP, 2010.

BACK, Lilian. A Seção Feminina do PCB no exílio: debates entre o comunismo e o feminismo (1974-1979). 214 p. Dissertação (Mestrado em História) – UFSC, Florianópolis, SC, 2013.

PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. Nosotras e o Círculo de Mulheres Brasileiras: feminismo tropical em Paris. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p. 55-69, jun. 2007.

QUADRAT, Samantha V. (Org.). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino- -americanos no século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Niterói: Record, 1999.

ROSALEN, Eloisa. Das muitas memórias dos exílios: uma leitura analítica dos livros Memórias do Exílio e Memórias das Mulheres do Exílio. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28, 2015, Florianópolis. Anais eletrônicos… p. 1-15. Disponível em: <http:// www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1438608862_ARQUIVO_AnpuhNacional EloisaRosalen.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2016.

1 O projeto Memórias do exílio resultou nos livros Memórias do exílio e Memórias das mulheres do exílio, que buscavam publicar memórias de sujeitos exilados durante a ditadura brasileira. Trata-se de uma das primeiras coletâneas a trazer memórias dos/as exilados/as. Na primeira obra, de 1978, muitas memórias de homens foram publicadas, o que criou uma insatisfação entre as mulheres exiladas. Nesse sentido, no ano de 1980 (com memórias recolhidas ainda antes da Anistia, em 1979), foi lançado um segundo volume, dedicado somente às mulheres (para dar visibilidade às experiências exilares delas). Além da característica geral de divulgar memórias do exílio, a segunda obra foi organizada pelo Grupo de Mulheres Brasileiras de Lisboa, que tinha conotações feministas (Rosalen, 2015).

Eloisa Rosalen – Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eloisa [email protected].

História oral e arte – SANTHIAGO (HO)

SANTHIAGO, Ricardo (Org.). História oral e arte: narração e criatividade. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 186 p. Resenha de: LIMA, Gabriel Amato Bruno de. Por uma história da arte e dos artistas com a história oral. História Oral, v. 19, n. 2, p. 213-216, jul./dez. 2016.

Certa vez, ao debater num curso de história oral a questão do retorno aos entrevistados, a colega com quem eu dividia a regência das aulas admitiu um impasse. Por entrevistar artistas, em especial “homens de teatro”, ela disse ter dificuldades em pensar formas de retornar aos entrevistados os resultados de suas pesquisas. Os textos acadêmicos, com suas exigências de linguagem e formato, pareciam a ela insuficientes, pois dramaturgos ou atrizes estão habituados a se relacionar com o mundo de forma inventiva. Restava a dúvida: como dizer aos entrevistados sobre a importância de suas contribuições? Pesquisando mais sobre as investigações que elegem a arte como tema e as entrevistas como método, descobri que há ao menos mais um pormenor no campo – desta vez, teórico. Ao resenhar livros sobre o tema, Elisabeth Stevens identificou um paradoxo das “entrevistas com e sobre artistas”.

Segundo a autora, elas “requerem que pessoas que escolheram meios não verbais para se expressar ainda assim expliquem a si mesmas, ou sejam explicadas, com palavras” (Stevens, 1990, p. 111, tradução livre). A própria decisão de entrevistar artistas já traria questões de fundo para o pesquisador: como não se limitar à busca por traduzir arte em narrativas de história oral? Como evitar o discurso pronto daqueles que criam narrativas públicas sobre si? Essas breves considerações sugerem a importância da coletânea História oral e arte: narração e criatividade, editada em 2016 pela Letra e Voz.

Pelo título, o leitor familiarizado com os debates da metodologia poderia intuir se tratar de novo capítulo da discussão acerca do estatuto epistemológico da história oral – se técnica, metodologia, disciplina ou arte. Mas não é nem à reivindicação da história oral como “arte multivocal” (Portelli, 2010), nem ao tratamento literário das entrevistas – a “transcriação” (Meihy, 2005, p. 195-203) – que o livro dedica sua atenção. Os textos de História oral e arte direcionam seus esforços para a afirmação de uma agenda de pesquisas em torno da produção, circulação e recepção dos trabalhos de músicos, artistas cênicos, pintores, escultores, arquitetos, literatos e cineastas (isso para nos limitarmos à enumeração das sete artes).

Organizado por Ricardo Santhiago, o livro é parte da coleção História Oral e Dimensões do Público, dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida. Sua proposta editorial é uma relativização do diagnóstico elaborado pelo organizador três anos antes, segundo o qual “se não faltam profissionais que empregam o método da entrevista […] na abordagem das artes, poucos são os que engatam nesses estudos todo o lastro teórico e conceitual” da história oral (Santhiago, 2013, p. 166). Como indicam os oito artigos do livro, “só faltava abrir o jarro, parece, para que perspectivas instigantes sobre a relação entre história oral e as artes tivessem sua dimensão evidenciada” (p. 8). E, de fato, a leitura de História oral e arte ajuda a compor uma problematização dos usos possíveis dessa metodologia em pesquisas sobre o mundo artístico.

Um primeiro conjunto de estudos do livro se dedica à reflexão sobre o sujeito. Em Inovação e criatividade: a história de Dona Isabel Mendes, das panelas de barro às bonecas de cerâmica, Karen Worcman analisa a narrativa de uma ceramista cujo ofício foi reconhecido como arte pelo mercado. Segundo Worcman, a entrevista com Isabel evidencia como “um indivíduo alia seus desejos pessoais à tradição, destacando-se em sua criatividade e empreendedorismo ao ser estimulado por seu próprio contexto” (p. 22). Seu argumento indica um movimento de deslocamento de análise em história oral: das memórias coletivas às formas como sujeitos elaboram processos de recordação.

Em sentido análogo, está Tudo que o tempo deixou: as continuidades e rupturas da história bossanovista através da memória de Alaíde Costa, de Daniel Lopes Saraiva. O autor argumenta que a história oficial da bossa nova silencia os conflitos (inclusive de memória) entre os bossanovistas. Ela também invisibiliza a atuação de Alaíde Costa, uma “cantora negra, vinda do subúrbio carioca, que já era profissional à época quando a bossa nova surgiu” (p. 58). Sua memória, portanto, adiciona importantes nuances às narrativas sobre o movimento.

O enfoque nos sujeitos-artistas está presente também em O menino João das Neves: reminiscências de um amante da arte, de Miriam Hermeto e Natália Batista. Explorando a articulação entre experiência e expectativa na entrevista com o dramaturgo, as autoras identificam na memória de João das Neves os “múltiplos meninos-João, que se configuram temporalmente e constituem uma personalidade singular do velho-João” (p. 134). Outra característica instigante do trabalho são as considerações sobre a relação que se estabeleceu com João ao longo das entrevistas, que nos ajudam a localizar as subjetividades em jogo na produção de uma “história de vida”.

Um segundo grupo de textos questiona as coletividades e a construção de identidades. Em Circuitos operacionais das artes: memórias em torno da profissionalização dos artistas plásticos em Pernambuco nos anos 1960, José Bezerra de Brito Neto trata de uma entidade de artistas, concatenando memórias que formam um quadro de lembranças sobre identidades profissionais. O objetivo do autor é “analisar as fábricas políticas e culturais do status profissional no campo das artes plásticas de Pernambuco, na década de 1960” (p. 37), ainda que a especificidade da política cultural sob um Estado autoritário seja apenas apontada no trabalho. Também Haroldo Rezende, em Kukukaya: um grito de amor, um grito de dor, lida com questões identitárias ao analisar o circuito de apropriações de uma canção de Cátia de França. O autor observa que uma geração de músicos nordestinos dos anos 1970 criou uma rede de significados da memória, que é “refundada a cada execução, a cada gravação, a cada interpretação” da canção (p. 98).

Dayse Perelmutter, em A história oral como laboratório de sensibilização estética: memórias e marcas de artistas brasileiros de ascendência judaica, também se questiona sobre a identidade de artistas. A autora analisa “a maneira como o legado judaico foi transmitido e inscrito e a intensidade de sua reverberação na sensibilidade contemporânea de cada um” dos seus entrevistados (p. 107). Apesar do predomínio de debates teóricos, o texto é concluído com uma análise de depoimentos de artistas que articulam o par identidade/diferença em suas narrativas de história oral.

Por fim, dois textos trazem reflexões teóricas a partir da percepção da história oral como “prática reflexiva” (p. 9). Em História oral e história da arte: aproximações, Eduardo Veras analisa a produção de entrevistas com artistas e a fecundidade de questões próprias da história oral. Problematizar a “condição a posteriori das entrevistas” e “questionar a absolutização dos demais documentos de processo” criativo são, para o autor, contribuições da metodologia, em especial quando se considera “as entrevistas no contexto maior da longa tradição de convívio entre textos e obras de arte” (p. 146- 147). Ricardo Santhiago encerra a coletânea com A pergunta que não se faz: algumas ideias sobre história oral e canção. O ensaio levanta a possibilidade de se tratar canções como história oral, concluindo que “é o casamento entre ambas que pode promover uma compreensão mais profunda de determinado fenômeno, aliando a subjetividade narrativa e a subjetividade artística” (p. 168).

Em seu conjunto, os artigos de História oral e arte indicam possibilidades para pensarmos a história oral e o campo artístico a partir das ambiguidades dos sujeitos, das identidades profissionais e da análise dos produtos culturais e das narrativas sobre eles. Problemáticas peculiares costumam aparecer quando lidamos com grupos sociais diferentes em história oral – e não é diferente com os artistas. Evidenciá-las em pesquisas temáticas enriquece os debates, permitindo revisões de nossa prática e o alargamento de nosso repertório teórico – tarefa que o livro cumpre com êxito.

Referências

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

SANTHIAGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. História Oral, v. 16, n. 1, p. 155-187, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=view&path%5B%5D=278&path%5B %5D=309>. Acesso em: 3 set. 2016.

STEVENS, Elisabeth. Art, artists, and oral history. Oral History Review, v. 18, n. 1, p. 111- 115, primavera 1990.

Gabriel Amato Bruno de Lima –Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Núcleo de História Oral da mesma universidade. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

Las mujeres de X’oyep – DEL CASTILLO TRONCOSO – (HO)

DEL CASTILLO TRONCOSO, Alberto. Las mujeres de X’oyep. México: Conaculta; Cenart; Centro de la Imagen, 2013. (Colección Ensayos sobre Fotografía). 116 p. Resenha de: PORFIRIO, Pablo F. de A. História, imagem e memória: a trajetória de uma fotografia
(México, anos 1990), História Oral, v. 18, n. 1, p. 241-246, jan./jun. 2015.

Alberto del Castillo Troncoso é um historiador mexicano – vinculado ao Instituto Mora – que há alguns anos desenvolve pesquisas que tomam a fotografia como principal fonte documental. Ele investigou as representações fotográficas de crianças no período do governo de Porfírio Diaz; estudou a trajetória do fotógrafo Rodrigo Moya com base nas análises da sua produção nas décadas de 1950 e 1960, na cobertura fotojornalística de guerrilhas e golpes militares em países da América Latina como República Dominicana, Guatemala e Venezuela. Mais recentemente, Alberto del Castillo lançou um livro resultante de anos de estudos sobre as fotografias do movimento estudantil de 1968 no México, marcado pelo Massacre de Tlatelolco, em 2 de outubro daquele ano. No seu último livro, objeto desta resenha, o historiador analisa a fotografia de Pedro Valtierra Las mujeres de X’oyep, que dá nome à publicação.

Essa imagem retrata as mulheres tzotziles da comunidade de X’oyep, localizada no município de Chenalhó, no estado de Chiapas, sul do México.

Registra o momento em que essas mulheres avançam sobre os soldados do exército mexicano que chegavam para ocupar parte do seu território, no dia 3 de janeiro de 1998. Segundo Deborah Dorotinsky (2013), Alberto del Castillo produz uma biografia dessa fotografia. Ou seja, identifica seu surgimento e cartografa sua trajetória do quarto escuro à publicação no jornal mexicano La Jornada. O historiador esmiúça como a imagem ganhou um formato editorial, como foi selecionada para estampar a primeira página do periódico e se tornar um ícone, isto é, uma fotografia emblemática, que forma parte da cultura visual de uma geração (Del Castillo Troncoso, 2013, p. 25).

O trabalho realizado por Alberto del Castillo mapeou as posições sociais e políticas ocupadas pela imagem para assim entender os significados a ela atribuídos, seja na relação construída entre a fotografia e os textos da imprensa, seja no vínculo entre imagem e memória. Desse modo, o autor assevera: as imagens em si não dizem nada. Podemos nos inspirar nas considerações de Pierre Bourdieu, em seu clássico texto sobre a “ilusão biográfica”, no qual afirma que os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, e não como uma série única de acontecimentos sucessivos (2000, p. 189-190). Claro que aqui não estamos falando da trajetória de um indivíduo, mas da fotografia produzida por um indivíduo. O historiador mexicano analisa de modo instigante as colocações políticas da imagem e seus deslocamentos de sentido, quebrando a “ilusão biográfica” de que a fotografia teria um único significado definido desde o momento do registro. A indicação de Deborah Dorotinsky na apresentação do livro, de que Alberto del Castillo seria um biógrafo de imagens, se confirma no decorrer do texto.

Para tal análise, o historiador mexicano estuda o cenário social e político em que a fotografia foi elaborada. Leva o leitor à parte sul do México, estado de Chiapas, que em janeiro de 1994 viu irromper um destacado movimento social, definido pelo escritor Carlos Fuentes como “a primeira guerrilha do período pós-moderno”. O zapatismo era um movimento que contava com um exército de trabalhadores pobres e que tinha a internet como uma das suas principais armas. Valendo-se ainda de um líder midiático, o Subcomandante Marcos, o zapatismo conseguiu, entre 1994 e 1995, recolocar o debate sobre as comunidades indígenas do México na agenda política nacional e internacional, rompendo as fronteiras do estereótipo turístico-folclórico do exótico.

O município chiapaneco de Chenalhó foi palco, em dezembro de 1997, da atuação de um grupo de paramilitares ligado ao Partido Revolucionario Institucional (PRI) que assassinou 45 indígenas simpatizantes do Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), que rezavam em uma pequena igreja na localidade de Acteal.

O episódio ganhou repercussão internacional. Equipes da imprensa televisiva e escrita se dirigiram para a região. Uma ampla cobertura fotográfica também foi produzida. O massacre em Acteal provocou, nos últimos dias de dezembro de 1997, uma presença ainda maior das forças do exército mexicano na localidade. Dirigiu-se também à região, em 1º de janeiro de 1998, o fotógrafo Pedro Valtierra, que passou a coordenar a cobertura dos acontecimentos para o jornal La Jornada.

Alberto del Castillo investigou e apresenta ao leitor a narrativa visual produzida pelo jornal entre o final de dezembro de 1997 e o início do mês seguinte. Analisa as primeiras fotos de Pedro Valtierra na região, feitas em janeiro de 1998, que registravam a tensão existente e os movimentos do exército mexicano e dos nativos. O autor ressalta o protagonismo das mulheres nesse momento, que resistiram à presença militarizada do Estado e, sabiamente, utilizaram a imprensa para fortalecer suas ações.

Em 3 de janeiro de 1998, o fotógrafo Pedro Valtierra e o jornalista Juan Balboa saíram da cidade de San Cristóbal de las Casas e se dirigiram à região de X’oyep. Na localidade de difícil acesso, alcançada por uma caminhada de horas pela montanha, existiam algumas poucas casas pobres e, desde os assassinatos em Acteal, centenas de pessoas em busca de refúgio.

A entrada de Valtierra e Balboa nessa história marca o agenciamento de uma nova fonte por parte do historiador: o relato de memória. Ele entrevistou o fotógrafo e o jornalista buscando informações sobre como foi a chegada deles a X’oyep, o que encontraram no local, como ocorreu a produção das imagens. Mais ainda, interessam a Del Castillo os relatos sobre o período posterior, isto é, quando Pedro Valtierra regressou de X’oyep a San Cristóbal de las Casas, iniciando o processo de revelação das imagens, o envio para os editores do La Jornada, a escolha da fotografia a ser publicada, a mudança no seu enquadramento do horizontal para o vertical e a decisão de publicá-la na primeira página.

O livro tem por objetivo investigar como a fotografia de Pedro Valtierra, Las mujeres de X’oyep, tornou-se um ícone e formou a cultura visual de uma geração. Para isso, as informações obtidas por meio das entrevistas são fundamentais. Mas também interessa a Alberto del Castillo o uso da memória por parte dos seus entrevistados no momento presente, quando a fotografia de Valtierra já se tornou um ícone. Trata-se do que Gilles Deleuze, ao analisar a obra de Marcel Proust, chama de memória voluntária, aquela que vai de um presente atual a um presente que foi, isto é, que foi presente mas não é mais. Assim, pode-se dizer que a memória não se apodera diretamente do passado, mas o recompõe com os presentes (Deleuze, 2006, p. 54).

Alberto del Castillo mapeia parte da produção fotográfica de Pedro Valtierra, como a cobertura jornalística da guerrilha sandinista na Nicarágua e das forças guerrilheiras da Guatemala. Relaciona a fotografia das mulheres de X’oyep aos interesses estéticos e políticos já apresentados por Valtierra em outros trabalhos.

O seu relato de memória é analisado em diálogo com essas produções fotográficas e com os significados que a fotografia das mulheres de X’oyep adquiriu. É interessante notar que, no relato de memória de Valtierra, essa imagem é definida como um marco divisor na sua trajetória: E enviam por fax as primeiras páginas e vejo a foto grande, tal como está publicada, e senti logo, logo que a foto era já outra coisa… No dia seguinte David Brooks, o correspondente do La Jornada, me contou que a foto havia encabeçado uma marcha de apoio aos zapatistas em Nova York… Eu senti que nesse momento algo havia passado com minha vida… Porque devo dizer que não estava muito bem profissionalmente. Quer dizer, era chefe, um privilegiado, porém fotograficamente não me sentia bem… Isso – aqui entre nós – eu não estava dizendo, porém me sentia em crise… Já quando regressei ao México, foi impressionante. Fui a uma marcha e encontrei com Carlos Jurado, com muita gente, e não me deixavam trabalhar. […] E isso se passou por causa da foto de X’oyep. (Del Castillo Troncoso, 2013, p. 68; tradução livre).

Essa memória voluntária de Pedro Valtierra apropria-se do sucesso alcançado pela fotografia sobretudo por ela lhe ter valido o Premio Internacional de Periodismo Rey de España, um ano depois de sua produção, em janeiro de 1999. A distinção oferece um significado a priori para a imagem e, por conseguinte, para quem a produziu; cria uma importância política que dá a impressão de estar na essência da fotografia. Talvez Alberto del Castillo pudesse ter apresentado ao leitor mais trechos do relato de Valtierra. O extrato acima faz parecer que a memória do fotógrafo toma um dos significados políticos associados à fotografia e o institui como algo que estivesse dado desde o presente da sua produção, como uma essência. Cria assim uma trajetória única e teleológica para a imagem, como se ela já tivesse nascido para constituir-se em ícone de uma geração.

Mas o livro de Alberto del Castillo consegue, por meio de outros relatos de memória, pesquisa em jornais e outros documentos, reconstruir a teia de discursos e práticas que fizeram a fotografia das mulheres de X’oyep emergir como um ícone na luta dos povos indígenas na América Latina. Mostra- -nos como a crescente visibilidade conquistada pelo movimento zapatista na década de 1990, com seus destacados apoiadores, como José Saramago, contribuiu para popularizar a imagem e fazê-la ser apropriada por diversos grupos sociais e operacionalizada em suas manifestações políticas.

Por fim, o historiador mexicano nos brinda com uma linda história. No último capítulo do livro, em um relato quase antropológico, conta sobre a viagem que fez anos depois do conflito ao local onde Pedro Valtierra produziu a imagem. Encontrou uma pobre casa, feita de tábuas, em que se identificava numa parede externa uma pintura com traços infantis que reproduzia a fotografia do enfrentamento das mulheres de X’oyep com os militares do exército mexicano. Nessa representação, imagem e memória se confundiam.

A reprodução da fotografia de Valtierra fazia permanecer latente uma memória do conflito, ao mesmo tempo que reforçava o sentido icônico daquela imagem e realçava um sentimento de vitória, já que as mulheres conseguiram resistir e expulsar os militares.

Uma das perguntas que ficam para o leitor é: qual a memória que as mulheres de X’oyep e outros moradores do local construíram sobre o enfrentamento com o exército? Não foi possível encontrar esses relatos, mas sim uma representação imagética deles. A pintura mostra como a fotografia de Valtierra foi apropriada pelos moradores daquela região, ultrapassando o suporte do papel fotográfico, do jornal ou da memória do seu produtor. A imagem tornou-se ícone também por estar na memória do grupo social de quem a protagonizou, alimentando sentimentos de luta e vitória.

O livro Las mujeres de X’oyep apresenta uma metodologia de trabalho inovadora e desafiadora ao relacionar imagem e memória – individual e coletiva – na escrita da história. Recupera os fios que teceram o sentido da fotografia, transformando-a em um ícone político. Poderíamos pensar que Alberto del Castillo Troncoso busca o “normal excepcional”, para retomar um conceito caro à micro-história de Carlo Ginzburg: o documento “normal excepcional”, neste caso a fotografia de Pedro Valtierra, não se presta às generalizações da história serial, mas permite, por outro lado, a compreensão de aspectos particulares, não generalizáveis, da realidade social. O historiador mexicano conta-nos ainda, por meio dessa imagem, sobre a luta cotidiana de mulheres pobres e invisibilizadas pelo direito à terra e à vida, enredando-a na história do México contemporâneo e da América Latina.

Referências BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 183- 191.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

DOROTINSKY, Deborah. Biografía de una imagen fotográfica: las mujeres de X’oyep.

In: DEL CASTILLO TRONCOSO, Alberto. Las mujeres de X’oyep. México: Conaculta; Cenart; Centro de la Imagen, 2013. (Colección Ensayos sobre Fotografía). p. 13-20.

Pablo F. de A. Porfirio – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: pablo [email protected].

Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014) – BALLER (HO)

BALLER, Leandro. Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014). Curitiba: CRV, 2014. 280 p. Resenha de: PAGLIARINI JÚNIOR, Jorge. História Oral, v. 18, n. 1, p. 247-251, jan./jun. 2015.

Ao falarem dos espaços, os sujeitos falam de si. Numa das suas acepções, o espaço pode ser entendido pelas fronteiras que distanciam, mas que também aproximam sujeitos. No exercício de compreender a relação entre sujeito e espaço, como lembra o geógrafo Rogério Haesbaert (2011), o espaço pensado apenas enquanto resultado dos propósitos dos Estados já não dá conta da compreensão de seus usos e de suas construções. Mas em tempos de mobilização e de discursos – muitos exacerbados – em torno do nacionalismo, é justamente ao discurso nacional que tende a se apegar a leitura da espacialidade. É nessa tensão entre a fronteira política – geograficamente delimitada como resultado de tratados transnacionais – e a fronteira polissêmica que emerge das entrevistas e demais documentos analisados que se desenrola o estudo de Leandro Baller em Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014).

Trata-se do livro derivado de sua tese de doutoramento, defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da A leitura da referida obra leva, antes de mais, a perguntar como o autor se insere no conjunto de investigações e de produções sobre a fronteira entre o Brasil e o Paraguai. A resposta à questão encontra-se justamente no diálogo que o autor consegue estabelecer com suas fontes – diálogo respaldado pelo fato de ser ele mesmo um sujeito fronteiriço –, com base nas quais constrói um entendimento da fronteira como ambiência.

Os termos fronteira e fronteiriços ou, se quisermos, lugar e sujeitos são tomados como objetos, como categorias historicamente delimitadas numa relação pensada no recorte temporal e espacial do estudo, visando entender a fronteira entre Brasil e Paraguai. O livro trata, mais precisamente, da fronteira entre o leste do Paraguai – na altura dos departamentos de Alto Paraná e Canindeyú – e o oeste do Brasil – estados do Paraná e Mato Grosso do Sul –, marcada pelo reservatório do Lago Internacional de Itaipu, durante os anos de 1954 a 2014 – sem que tenha sido desconsiderada, para tal empreitada, a investigação de outros momentos e acontecimentos.

O trabalho apresenta uma leitura da espacialidade da fronteira cuja demarcação territorial envolve disputas de diferentes ordens e temporalidades, indo dos tratados seculares, da longa duração, até as bases demarcadas nas últimas três décadas pelo agronegócio; a análise passa, assim, por disputas veladas, percebidas nos interstícios do cotidiano, que ganham potencial explicativo graças à postura epistemológica da obra, caracterizada pelo esforço do autor de se deslocar pela fronteira e, assim, tomá-la também “do lado de lá”.

A partir do lugar teórico e espacial acima delimitado, o autor apresenta a leitura de um processo que envolve os termos coexistência, contato, estabelecidos e outsiders. Trata-se de uma postura próxima daquela desenhada por Bhabha (1998) ao defender um “lugar teórico” – lugar que é, antes, um lugar político, de onde falam os entrevistados, neste caso a imprensa paraguaia e os documentos oficiais, todos analisados com base nas contribuições de Foucault e na sua ressignificação de conceitos espaciais.

No primeiro capítulo, Fronteira: ocorrência teórica e historiográfica, Baller discute o olhar historiográfico sobre a fronteira, destacando dessa perspectiva três momentos: 1) o dos tratados e da construção do sentido nacional da fronteira no século XIX, atrelado ao IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro); 2) a passagem de uma história técnica e preocupada com as lutas de demarcação para uma história dos tipos sociais frente à conquista das fronteiras, sob influência de Turner até a década de 1970; 3) o dos estudos brasileiros e paraguaios feitos a partir da década de 1980, com um posicionamento epistemológico de denúncia da naturalização da fronteira. O autor segue com a apresentação dos discursos produzidos pela historiografia do oeste do Paraná, dos quais resultou um rico corpus documental que ganharia novas leituras nas décadas seguintes à sua publicação, com a fronteira assumindo corpo conceitual. Nesse ponto a obra se ocupa de problemáticas ambientais, de relações de poder e sociabilidade na tríplice fronteira, de conflitos de terra, da abordagem de movimentos sociais, do impacto de Itaipu e de preocupações de caráter étnico. Da historiografia paraguaia se destacam os diálogos do autor com pesquisadores locais, dos quais se ressalta a crítica do literato paraguaio Roa Bastos de que a produção historiográfica nacional deveria ir além dos limites da “ilha Paraguai”. As análises de Baller se aproximam epistemologicamente das de Foucault, ao proporem a desnaturalização da fronteira sob as perspectivas da genealogia e da heterotopia, que levam o leitor a perceber os meandros da divisa, que é geográfica (marco visível), política (material e institucional) e simbólica (vivida).

Na sequência dessa base historiográfica é apresentado o capítulo A pluralidade histórico-social agrária no Paraguai, no qual a questão agrária serve como pano de fundo para o estudo do fronteiriço; problematiza-se aí o processo de luta pela terra, mas também as lutas pela manutenção de costumes como a moeda e a língua – levando em conta notícias veiculadas pela mídia local e entrevistas com moradores da fronteira (brasileiros, paraguaios e brasiguaios).

A contextualização da migração remete ao governo de Stroessner, marcado pela intensificação da formação de latifúndios, política que facilitou a entrada de brasileiros, freada apenas em 2004, quando temores em torno da construção da lei da faixa de fronteira paraguaia apresentaram novas conjecturas para as práticas de fronteira. O desafio de analisar a transitoriedade dos sujeitos na fronteira leva o autor à problemática do retorno para o Brasil, apresentada nas construções semânticas do termo brasiguaio.

A generalização do termo brasiguaio se dá tanto pela imprensa paraguaia – que o associa a grandes proprietários que se apossam de terras no país desde a década de 1950 – quanto pelos pesquisadores brasileiros – que o atribuem àqueles que, depois de migrarem para o Paraguai nas décadas de 1960 e 1970, retornaram ao Brasil a partir de meados de 1980 e se engajaram em movimentos sociais de luta pela terra. Nas entrevistas examinadas por Baller, percebem-se a desconfiança, a confusão, as resistências e o próprio estigma que marcam esses sujeitos. Essas formas de resistência – pensando nos termos de Bhabha, exemplos da ameaça do híbrido à fronteira tomada pela sua dualidade – se contrapõem ao modelo de identidade nacional construído pela historiografia oficial, seja ela brasileira, seja paraguaia.

No terceiro capítulo, intitulado Coexistência fronteiriça: ações e representações, o autor, ancorado nas noções de representação social e de negociação cultural, aplica atenção ao modus vivendi dos fronteiriços e apresenta uma fronteira que, frente à virtual ausência de um e de outro Estado, é pouco estática.

Assim, no debate com fontes orais e com documentos escritos, possibilita- se a representação de disputas a respeito da aplicabilidade do conceito de coexistência fronteiriça, momento em que o texto problematiza a questão agrária – mais especificamente, as práticas de migração de retorno de brasileiros e descendentes, ocorridas em função da busca por melhores condições de educação para os filhos, de saúde para a família, de direitos sociais buscados no “crime autorizado” da região fronteiriça. O sentimento de pertencimento dos brasiguaios é posto à prova pelos ataques públicos de líderes de movimentos sociais de luta por terra ao modelo agrícola (da soja) dos brasileiros; esses discursos generalizam questões referentes aos resultados de modelos agrários existentes desde 1950, intensificados com Stroessner, em consequência da falta de modernização das técnicas dos campesinos e dos indígenas.

No último capítulo, Fronteiriços construindo fronteiras, chega-se às disputas que marcam a coexistência, não sem que o autor antes apresente dois momentos que estruturam a questão agrária paraguaia: o primeiro, o que se estende da década de 1970 até a de 1980, intrinsecamente relacionado às transformações da estrutura agrária do oeste do Paraná; o segundo, a partir da década de 1990, marcado pela transformação da estrutura da agricultura paraguaia, com intensificação do latifúndio monocultor e agroexportador.

Nesse contexto, demarcam-se as diferenças entre o modelo brasileiro, criticado pelos opositores do sistema de latifúndio, e as práticas dos “campesinos”, para muitos ultrapassadas por concentrarem-se em grande medida numa produção de subsistência. A análise aproxima-se do debate em torno de práticas de integração e dificuldades em estipular quem são os estabelecidos e quem são os outsiders. Afinal, além do tempo de residência, somam-se à análise, o grande número de brasileiros residentes na fronteira e o estigma aplicado sobre aqueles que fracassaram na atividade rural. Dessa maneira contemplam-se vários focos, como os produtos consumidos, a chegada de tecnologias de comunicação, o resultado do cooperativismo etc.

Enfim, o sucesso desse estudo envolve o posicionamento metodológico e epistemológico adotado no tratamento das fontes orais. O recurso à história oral é um dos caminhos para que Leandro Baller abarque as memórias sobre o processo analisado. O trabalho também se baseia em cautelosa investigação de arquivos oficiais e não oficiais, bem como da imprensa paraguaia. Além do equilíbrio entre essas diferentes fontes, destaca-se também o rigor metodológico e a necessária postura ética do autor. Baller trabalha com entrevistas inéditas e com entrevistas publicadas por outros autores, a maioria produzida em meados da década de 1990; entre as inéditas, algumas foram conduzidas pelo próprio autor e outras (produzidas entre 1994 e 2014) advêm da colaboração de outros pesquisadores. Apesar disso, de certa forma, o leitor tem a impressão que se trata de um único corpus documental, o que revela a qualidade do trato do autor com as memórias e com a suas temáticas comuns, quais sejam a situação do fronteiriço e a disputa pela construção de identidades e de memórias.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

ALDRIGHI, Clara. Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros. 1965-1975. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2009. 456p.

Jorge Pagliarini Junior – Professor efetivo do curso de História da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), campus de Campo Mourão. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

 

Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros – ALDRIGHI (HO)

ALDRIGHI, Clara. Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros. 1965-1975. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2009. 456p. Resenha de: LEITE, Isabel Cristina. História Oral, v. 13, n. 2, p. 189-192, jul.-dez. 2010.

O imperativo no olvidar tornou-se a tônica dos países do Cone Sul que recentemente passaram por situações de arbítrio e violações dos direitos humanos sob o signo de ditaduras civil-militares. A década que se seguiu aos anos 2000 foi marcada pela ascensão ao poder de presidentes que tiveram algum tipo de militância contra esses governos. Deste modo, veio à baila, em graus diferentes e sobre temas diversos (seja a questão da abertura de arquivos, seja a punição de militares), o debate acerca da revisão do passado, no sentido de se fazer justiça às vítimas desses regimes.

A eleição presidencial de 2009 no Uruguai foi acompanhada de dois plebiscitos polêmicos. Todavia, o que nos importa aqui é o que se refere à aprovação de um projeto de lei apresentado pela Frente Ampla, que previa a anulação da Ley de Caducidad,1 promulgada em dezembro de 1986. Se, por um lado, as eleições deram vitória a Jose Mujica, candidato da Frente Ampla (cujo passado fora de militância na guerrilha urbana dos Tupamaros), por outro, o plebiscito foi marcado pela derrota do referido projeto de lei, tirando de cena a possibilidade, naquele momento, de se levarem os militares ao banco dos réus.

É neste contexto histórico que Clara Aldrighi lançou Memorias de insurgencia no ano de 2009. A historiadora atualmente é docente de História Contemporânea na Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad de la República, e na juventude também integrou o Movimiento de Liberación Nacional Tupamaros.

A organização guerrilheira MNL-Tupamaros foi a mais destacada dentre as demais organizações uruguaias. Sua gênese ocorreu antes mesmo do período militar (1973-1985). Ela surgiu no ano de 1962, congregando em seu corpo de militantes diversos segmentos da sociedade, tais como profi ssionais liberais, professores, operários e estudantes. Apesar da infl uência cubana, sua opção de luta armada foi via guerrilha urbana. O auge da organização – que naquele momento conquistou a simpatia de grande parcela da população – ocorreu em 1968, após uma série de ações bem-sucedidas que evitavam o enfrentamento direto com a polícia e não faziam uso indiscriminado da violência.

Suas principais operações consistiam em denúncias de corrupção do governo, demonstrações de força e poder de fogo, bem como expropriações fi nanceiras. A partir da década de 1970, houve um refl uxo do apoio popular, dada a guinada para a militarização por parte do grupo (Padrós, 2005, f. 289-299).

É por meio de trajetórias individuais, tendo a história oral como metodologia de investigação, que Clara Aldrighi reconstrói a experiência tupamara e lança luzes no ambiente político e cultural em que surgiu o grupo.

Citando Isaiah Berlin, a historiadora justifi ca sua opção teórico-metodológica: “comprender la historia es comprender lo que los hombres hicieron en el mundo en que se encontraron, lo que exigieron de él. Cuales fueron las necesidades sentidas, las metas, los ideales.” (p. 8).

O livro é uma compilação de 17 entrevistas com antigos militantes tupamaros, sendo cinco delas realizadas com integrantes da direção do grupo.

Este conjunto de entrevistas é parte de um montante que a autora levou cerca de uma década para coletar, e que foram utilizadas para a elaboração de dois outros trabalhos: o livro La izquierda armada: ideología, ética e identidade en el MNL-Tupamaros (2001), e o artigo “Chile, la gran ilusión” (2006). A seleção dos depoimentos publicados forma um mosaico de experiências e opiniões, por vezes contraditórias, sobre temas sensíveis acerca do período, como a repulsa ou a reivindicação desse passado guerrilheiro.

Os depoimentos foram divididos em dois blocos, sendo o primeiro com oito entrevistas, abarcando o período de 1965 a 1972, de forma que vislumbra a fundação do grupo, seu auge em 1968, suas ações exemplares, as relações intersujeitos, a vida privada e as experiências traumáticas de cárcere e tortura. O segundo bloco abrange os anos entre 1973 e 1975, e trata de temas variados, tais como os exílios chileno, cubano e argentino, questões de gênero, a fragmentação do grupo e a formação de outros, desaparecimentos forçados e a tentativa de reorganização do agrupamento no Uruguai.

A iniciativa deste tipo de obra é válida e importante, na medida em que há carência de publicações de fontes orais, primárias, na íntegra. Tais fontes possibilitam aos historiadores, sobretudo aos que se dedicam ao estudo da memória e seus usos políticos, refl etirem sobre questões inerentes à memória, a exemplo das suas ressignifi cação e construção social que dão forma à identidade do grupo (Groppo, 2002, p. 190).

Metodologicamente, torna-se um desafi o lidar com depoimentos. Atualmente, a historiografi a latino-americana tem trabalhado no sentido de dar atenção ao testemunho, todavia, não o tomando como “ícone da verdade”, a exemplo do que ocorreu nos primeiros anos após as ditaduras militares (Sarlo, 2007, p. 56). De acordo com Florencia Levin, “o testemunho não pode tomar o lugar da explicação, da argumentação e da construção argumentativa do historiador, senão não haveria História, somente memória”, ou melhor, completa, “nem sequer é História Oral, é mais bem uma memória do testemunho” (Levin, 2009, p. 7).

As dinâmicas de lembrar e esquecer ocorrem no momento presente, todavia, sua temporalidade é subjetiva. A todo tempo se remete ao passado, enquanto cobra vínculo com o presente e busca projeções para o futuro; por isso, há a necessidade de se historicizar a memória, analisado as transformações pelas quais passa cada um dos atores sociais e o que recordam ou esquecem ( Jelin, 2002, p. 3). Para além destes dramas, esse conjunto de fontes nos dá indicações acerca da realidade de outros países que lidaram com a mesma experiência – no caso, a autoritária – e como a memória deste passado (aqui, de guerrilha) vem sendo tratada, como os envolvidos lidam com a questão.

Referências

GROPPO, B. Las políticas de la memoria. Revista Sociohistórica: Dossier Las políticas de la memoria, n. 11-12, p. 187-198, 2002.

JELIN, E. Comemoraciones: las disputas em las fechas in-felices. Madrid: Siglo XXI, 2002.

PADRÓS, E. S. Como el Uruguay no hay…: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai. Tese (Doutorado em História)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

URUGUAY. Ley Nº 15.848. Funcionarios militares y policiales. Se reconoce que ha caducado el ejercicio de la pretension punitiva del Estado respecto de los delitos cometidos hasta el 1º de marzo de 1985. Montevideo, 1986. Disponível em: <http://nulidadleycaducidad.org.uy/node/4>. Acesso em: 18 jul. 2011.

1 “Se reconoce que há caducado el ejercicio de la pretension punitiva del Estado respecto de los delitos cometidos hasta el 1 de marzo de 1985.” (Uruguay, 1986).

Isabel Cristina Leite – Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ensaios de história oral – PORTELLI (HO)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258p. Resenha de: RIBERTI, Larissa Jjacheta. História Oral, v. 13, n. 2, p. 193-195, jul.-dez. 2010.

Prática reconhecidamente significativa como metodologia de investigação social, a história oral tem ganhado cada vez mais espaço nos meios acadêmicos devido ao seu papel de instrumento de luta política, capaz de revelar sujeitos e discursos geralmente ocultados nas análises históricas e de outras disciplinas. Diante de processos recentes de fragmentação e desenraizamento de modos culturais, a história oral vem se constituindo como uma boa alternativa metodológica para a compreensão das problemáticas dos sujeitos, das memórias, culturas e identidades. Esta prática é, portanto, uma alternativa crítica à análise das novas questões históricas e sociais que se colocam no século XXI.

É nesse contexto que Alessandro Portelli, atualmente professor de literatura norte-americana na Universitá di Roma “La Sapienza” e também fundador do Circolo Gianni Bosio, que incentiva e promove pesquisas sobre músicas e culturas populares, organiza uma seleção de textos – nos quais a metodologia da história oral é a via principal de investigação histórica e social – e publica-os com o nome de Ensaios de história oral. Diante dessas novas questões em debate, em que é necessário considerar discursos individuais e compartilhados como instrumentos do processo de formação das identidades, Portelli fornece refl exões sobre as implicações metodológicas e políticas do conhecimento que produzimos.

A importância da obra aqui considerada se dá justamente porque os ensaios nela contidos procuram discutir, separadamente, as formas de se utilizar o discurso oral como instrumento de pesquisa e análise histórica. Para além disso, Alessandro Portelli propõe um olhar crítico em relação às entrevistas que realizou, desmistificando discursos e abrindo novas possibilidades interpretativas.

Sobre a importância do trabalho metodológico a partir da história oral, Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado ressaltam que “na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas) que possuem uma característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de interpretação” (Ferreira; Amado, 2006, p. xiv).

A obra é iniciada com uma apresentação de Yara Aun Khoury e segue com a compilação de dez textos inéditos em língua portuguesa. Esses ensaios são o resultado de uma obra autoral que vem sendo construída desde 1970 e que revelam o olhar de Portelli sobre as relações entre memória e história. O autor também dá demonstrações de como os discursos pessoais, coletivos e ofi ciais constroem, de maneiras singulares, interpretações sobre determinada memória.

Logo no primeiro ensaio, “Sempre existe uma barreira: a arte multivocal da história oral”, o autor analisa como a relação entre história e memória toma forma na narração oral. Diz ele: “A ‘entre/vista’, afinal, é uma troca de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo” (p. 20). É dessa maneira que o autor recorre à história oral para entender como acontece a combinação entre narrativa em primeira pessoa com referentes espaciais e sociais coletivos que dão o suporte para que entendamos a construção de uma determinada memória cultural.

Sobre a formação de uma identidade coletiva, o autor escreve, por exemplo, o ensaio de número quatro, “Éramos pobres, mas… Narrar a pobreza na cultura apalachiana”, no qual examina os discursos de moradores das montanhas apalachianas do Tennessee. Neste texto, ele procura compreender como, na visão dos próprios moradores, a pobreza era uma situação que provocava um misto de raiva/vergonha e autonomia/orgulho. Encarada dentro de uma comunidade relativamente igualada pela subsistência e autonomia provocadas por uma economia não monetária, a pobreza era vista pelos moradores como um meio para a sobrevivência, já que era o motor dessas relações. Por outro lado, fora desse convívio supostamente igualitário, os moradores se sentiam ofendidos quando eram levados, por exemplo, a participar de uma economia monetária da qual não podiam fazer parte. Ao ouvir os discursos, o autor consegue entender por que, para essas pessoas, e dentro dessa comunidade, as relações de afeto eram mais importantes que as relações monetárias.

A questão das relações entre documentos individuais e realidades transindividuais é tratada no ensaio “O melhor limpa-latas da cidade: A vida e os tempos de Valtero Peppoloni, trabalhador”, no qual Portelli considera a trajetória de vida de um trabalhador de fábrica e de serviços em geral da cidade industrial do Terni, na Itália. Para o historiador, é necessário entender que a narrativa de Valtero Peppoloni recai em padrões, estruturas e motivos discursivos arcados em conjunto: “Há elementos coletivos e compartilhados nessa história que são sufi cientes para justifi car que a descrevamos como documento representativo da cultura da classe trabalhadora local” (p. 182).

Dessa forma, a obra de Alessandro Portelli tem significativa importância para os estudos de história oral. Analisando narrativas e interpretando diferentes discursos, Ensaios de história oral é uma referência importante para se compreender a memória, a oralidade, a cultura popular e os relatos de vida. É também crucial para aqueles que pretendem investigar, a partir da história oral, com um olhar crítico e preocupado com as questões metodológicas dessa prática.

Referências

FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.

Larissa Jacheta Riberti – Mestranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba – DOMINGOS NETO (HO)

DOMINGOS NETO, Manuel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba.  São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Revelações da memória: uma nova trilha nos caminhos da tradicional história política regional e dos consagrados conceitos que a definiram. História Oral, v. 13, n. 1, p. 153-158, jan.-jun. 2010.

O título da obra em apreço espelha um roteiro metodológico plural. À pri­meira vista, ele pode figurar como um tema restrito aos que se sentem atra­ídos pela riqueza metodológica da história oral e/ou pela definição de um velho tema da história política regional.  Entretanto, após uma leitura atenta da introdução e uma observação perspicaz dos cinco capítulos, percebe-se que o autor almeja ir além dessa proposição metodológica e temática, pois remete o leitor a outras áreas de análise acadêmica. Refiro-me à busca de estabelecer uma contínua conexão entre o histórico, o sociológico, o político e o econômico, traço marcante do legado marxista, na busca de uma totalidade histórica, legado ainda perceptí­vel nos novos temas e novas abordagens daqueles que se conscientizaram do valor da interdisciplinaridade.

Manuel Domingos Neto foi um aluno afastado do curso de Licenciatu­ra em História, da Faculdade Estadual de Filosofia do Ceará (Fafice), na tur­bulência dos anos 1960, exilando-se na França, onde cursou o doutorado em História. Para quem o conhece e o acompanhou, na sua formação acadêmica, partilhando da alegria do seu ingresso no magistério superior, na Universida­de Federal do Ceará (UFC), na área de ciência política, a presente obra é uma prestação de contas de uma experiência histórica de “longa duração”.  O seu amadurecimento profissional e o tempo vivido, revelados atra­vés de uma trajetória interdisciplinar, licenciatura em história, doutorado em ciências sociais, professor de ciência política, na pós-graduação em ciências sociais, nos explicam a manutenção, no decurso da feitura do livro, de um elo explicativo do debate historiográfico apresentado, envolvido no viés socioló­gico, político e econômico.  Atualmente, no campo das ciências sociais, a “interdisciplinaridade” é reconhecida e recomendada, mas nem sempre demonstrada. E a questão é agravada quando se recorre a outro conceito, o de “transdisciplinaridade”, mais usado como um simples sinônimo de “disciplinaridade”. Como uma res­posta a essa questão, ao longo da leitura da obra em foco, a aplicação prática desse conceito nos parece evidente.  Nessa perspectiva, a sua preocupação constante em associar passado e futuro dos vaqueiros e dos netos de vaqueiros do Vale do Parnaíba nos faz melhor compreender as contradições do presente, um presente obtuso, en­volto em uma “história em migalhas”, que busca explicar a “era do vazio”. É a era de uma história marcada por um “hibridismo cultural”, melhor revela­do através da coleta de “memórias singulares”, imbricadas em “identidades sociais”.  E tais contradições teórico-metodológicas, agudizadas a partir da “cri­se de 1989”, abalaram a rigidez dos modelos explicativos, que pareciam in­deléveis. Contudo, nas novas versões históricas, como aquela voltada a uma “herança imaterial” (Levi, 1985), que traça a trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, percebe-se o nexo entre o legado historiográfico marxista e as novas proposições apresentadas.  Assim, a complexidade temática é simplificada pela clareza da análise de um autor, que comenta a fragilidade de determinados conceitos, consagrados no estudo da história nordestina e, mais ainda, nos encanta pela leveza das narrativas coletadas, reveladoras dos depoimentos singulares, que prendem a atenção do leitor desde o primeiro capítulo.

O debate, inicialmente levantado em torno das limitações do conceito de modernização, sempre indicada como o anverso do tradicional, é amplia­do com a análise de outras proposições, como coronelismo e clientelismo. Percebendo as conexões e contradições, mercantilismo/escravismo colonial e muitos outros casos de persistência de arcaísmos, presentes no desenvol­vimento capitalista, fica claro que o atraso dos meios de produção também favorece determinados interesses. Por isso, “o moderno e o tradicional (ou ar­caico) sempre andam de mãos dadas, um absorvendo a seu modo, estruturas, valores, práticas e simbologias do outro” (p. 22).  A compreensão das relações de poder, no Piauí, não foi obtida apenas através dos depoimentos coletados. Livros, jornais, documentos e até poesias compuseram o acervo consultado. Na explicação da infausta trajetória do Piauí, extensiva ao Nordeste, o autor rejeita a definição de seu espaço como um espaço sem propensão para atividades consideradas mais complexas, de­dicado exclusivamente à subsistência, ocupado por resistentes à civilização.  A modernidade contraditória, onde o velho e o novo se entrelaçam e as diferenças estabelecidas entre as regiões brasileiras vão muito além de um simples produto do meio geográfico, uma vez que foi o Estado, sempre volta­do às exportações mais rentáveis, que alimentou uma desumana divisão local do trabalho e aprofundou as diversidades de oportunidade entre as regiões.  Nesse parâmetro, em busca de uma melhor compreensão das disparida­des regionais, são reavaliadas classificações consagradas, como as de Euclides da Cunha e Celso Furtado, confirmando a indicação dos indícios dessas dis­paridades, defendidos por Francisco de Oliveira e Wilson Cano.  As narrativas apresentadas pelos netos dos vaqueiros confirmam a mo­dernização sem mudança, registrada em diferentes momentos e espaços da história política regional e nacional. A linha de frente dessa modernidade combinava desenvolvimento com contradições sociais e regionais, destacan­do os coronéis e seus possíveis opositores como agentes desse processo.  Os depoimentos das velhas lideranças políticas contradizem as consa­gradas definições que lhes foram atribuídas. Outras facetas de comporta­mentos políticos, narradas pelas lideranças entrevistadas, desfazem os rígidos perfis, idealizados de forma homogênea, com datas estabelecidas de extinção dessas práticas políticas, o que atesta e contesta a fragilidade de determinados conceitos consagrados, como coronelismo e clientelismo, que o autor consi­dera mais insultuosos que definidores.

A riqueza plural de cada uma das entrevistas realizadas abre perspectivas de análise que ultrapassariam as 400 páginas do livro. Os títulos de cada um dos cinco capítulos constituem um estímulo ao leitor.  O primeiro, “Os netos dos vaqueiros”, é uma apresentação de cada um dos entrevistados, de acordo com a seguinte subdivisão:  1) “O Coronel”, Pedro Freitas, que fez negócios e política a vida inteira. Nesse primeiro tópico, a definição de coronelismo, segundo José Murilo de Carvalho, que tem por base a opinião de Victor Nunes Leal, é contestada. Para ambos, o abalo sofrido por alguns coronéis baianos, presos em 1930, teria sido finalizado com o golpe de 1937. Entretanto, segundo Manuel Domingos Neto, o coronel entrevistado exerceu o seu poder de mando da adolescência à velhice: não manteve o seu poder apenas na República Velha, uma vez que não enfrentou um declínio econômico e o seu poder pessoal o beneficiava no trato com o eleitorado urbano.  2) “O Doutor”, José da Rocha Furtado, um conceituado médico, na classificação de uma ampla clientela, que foi nomeado pelo centralismo político de 1930, mas cujo governo foi considerado um desastre de acordo com a memória dos entrevistados.  3) “O Engenheiro”, Luís Mendes Ribeiro Gonçalves, a quem foi confiada a administração das finanças e as obras do estado, durante o governo do engenheiro João Luís Ferreira, no período 1920-1924. Esse último, quando da sua estada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, desfrutara da amizade de Lima Barreto, nas noites boêmias ali vividas. Luís Mendes, além de senador, pela União Democrática Nacional (UDN), de 1934 a 1937 e de 1947 a 1951, foi uma das testemunhas da passagem da Coluna Prestes.  O segundo capítulo, “A herança dos netos dos vaqueiros”, é subdividi­do em cinco temáticas, desde a que trata da criação do gado, nascendo para o mercado, entendida não apenas como alternativa para o povoamento do interior, mas como uma mercadoria produzida, integrada à dinâmica inter­continental do sistema capitalista, como fica expresso nas narrativas sobre a ação dos netos dos vaqueiros na política.  A expansão do processo criatório, iniciado com seus “confrontos sangrentos” e consolidado com a utilização da mão de obra escrava nessa atividade, explica o porquê do charque, nas “oficinas” de Parnaíba, e da ação dos proprietários não ausentes de suas fazendas, beneficiários de grande ren­tabilidade da pecuária nordestina.  A inviabilização da pecuária extensiva anulou o velho argumento de que o ouro das Gerais matou as charqueadas do Norte. Ela foi marcada pelas complicadas partilhas de terras por herança e pela autolocomoção do gado, definidora do rio Parnaíba como uma via de acesso sem importância.  As “falsas promissões” foram desfeitas pelo declínio da pecuária, sobre­tudo a partir de meados do século XIX, mesmo com a mudança da capital da província, de Oeiras para Teresina. Paulatinamente, o extrativismo vegetal, incentivado pelo comércio internacional, passou a ser a atividade econômica mais promissora e, desde as primeiras décadas do século XX, as poucas opor­tunidades de emprego e os conflitos de terra explicavam os elevados gastos governamentais com “segurança” e “justiça”.  Os netos dos vaqueiros na política, em suas falas, mesmo confirmando alguns traços definidores do coronelismo, descritos por Nunes Leal, põem por terra as explicações segundo as quais os grandes proprietários usufruíam do atraso econômico, pois a projeção política dos mesmos decorria da manei­ra peculiar de assumirem a propriedade da terra.  Se nos dois primeiros capítulos do livro a escrita do autor delineia o pano de fundo da peça apresentada, nos três últimos capítulos, intitulados “A fala do Coronel”, “A fala do Doutor” e a “A fala do Engenheiro”, os atores selecionados apresentam o seu enredo básico.  Na realidade, o livro não é uma produção de um pesquisador dedicado à “história oral”, mas de um cientista político que a ela recorreu como uma técnica de pesquisa que lhe pareceu promissora. Se fosse uma opção metodo­lógica, certamente as perguntas apresentadas, nas referidas falas, teriam sido eliminadas e o conteúdo analisado seria embasado com alguns conceitos re­veladores, como “memória social”, “história e memória” e “histórias de vida”.  Mas o importante é que essa escrita do autor, explicativa da problemá­tica enunciada, concentrada em 103 páginas, deixa o leitor ansioso pelo que consideramos a segunda parte do trabalho: as três falas apresentadas, que somam mais de 300 páginas. Com certeza, não é o número de páginas que define o peso maior à validade do que foi escrito, mas a opulência de temas e comentários, presentes nos depoimentos apresentados, por esses atores se­lecionados, nos induz a uma série de indagações, que ampliam o curso das análises apresentadas.

Se vários são os rios que figuram no mapa do Piauí, múltiplas são as pro­posições tratadas nas entrevistas à espera de diferentes interpretações. Que outras narrativas sigam as sinuosas trilhas abertas pelo autor, que tão bem soube ouvir e comentar acerca do que os netos dos vaqueiros lhe contaram.  Referências  LEVI, G. L’eredità immateriale: carriera di um exorcista nel Piemonte del Seicento. Torino: Einaudi, 1985.

Gisafran Nazareno Mota Jucá – Professor titular de História do Brasil e do Mestrado em História (Mahis) da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e professor da Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC).

História, metodologia, memória – MONTENEGRO (HO)

MONTENEGRO, Antonio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: BRITO, Fátima Saionara Leadro. História Oral, v. 12, n. 1-2, p. 285-288, jan.-dez. 2009.

Em seu recente livro intitulado História, metodologia, memória, Antonio Torres Montenegro articula uma escrita que rompe com as formas meramente descritivas, por meio das quais o que menos interessa é a construção de significados instaurados na fabricação histórica. Com um amplo conhecimento nos estudos de relatos orais de memória, o autor articula a fala dos sujeitos históricos que vivenciaram o momento estudado – os períodos anterior e posterior ao golpe de 1964 e sua relação com o comunismo – com questões teórico-metodológicas presentes no campo da história, possibilitando, assim, a abordagem do tema, como uma elaboração construída por uma teia risomática, onde as forças são múltiplas e o poder descentrado e destituído de autoria.

Com uma escrita tecida por fios metodológicos presentes nas questões em torno do tema, e preocupado em desnaturalizar os significados postos por meio dos enunciados, sua análise afasta-se dos grandes temas da história e das narrativas historiográficas subordinadas a uma linearidade temporal, na qual o que importa é a apresentação exaustiva de fatos que se sobrepõem um após o outro através de um tipo de abordagem em que está presente a dupla causa-consequência. Desse modo, por meio de sua abordagem, o autor nos apresenta um fazer histórico (não) natural e (não) teleológico, possibilitando ao leitor ter acesso às histórias de vida que, de maneira diversificada, imprimiram suas marcas na construção do comunismo na sociedade brasileira e, em especial, no estado de Pernambuco.

As fontes trabalhadas na obra não estão alheias ao movimento da história. Desse modo, cordéis, prontuários médicos, registros de batismos, a literatura, a fotografia, os relatos orais, entre outras fontes que vêm sendo abordadas pelos historiadores nas últimas décadas, não se fizeram presentes na produção historiográfica do século XIX. A concepção de verdade presente naquele período era outra e estava, sobretudo, atrelada aos domínios de uma visão científica: o historiador articulava sua escrita por meio dos registros oficiais, nos quais a Verdade saltava aos olhos do pesquisador e, como tal, não necessitava ser questionada, pois esses registros significavam a prova do acontecimento e o historiador, aquele que tinha legitimidade de revelar a verdade neles contida.

Nesse sentido, é apenas no momento em que a história se distancia das ciências ditas positivistas, que se criam condições para a produção de um território teórico-metodológico, no qual os documentos não são mais considerados apenas pelas informações que fornecem, mas, principalmente, pela sua articulação discursiva e pelas suas condições de produção.

É nesse território que as fontes trabalhadas por Montenegro se situam, pois elas não existem em si, tampouco revelam uma verdade sobre os acontecimentos, mas são, sobretudo, resultado de uma elaboração produzida pelo próprio autor, possuindo um caráter provisório e mutável, sempre abertas às novas questões.

Esse trajeto de elaboração das fontes históricas está presente na discussão que perpassa o capítulo intitulado “Rachar as palavras: uma história a contrapelo”. Nele, o autor faz uma análise da física a partir de pensadores como Einstein, Newton e Descartes, para em seguida observar como se situa o campo da história e das demais ciências, pensando a relação da história com seu objeto e problematizando a forte ligação que esta possui com a ideia de verdade. Reconstrói, portanto, o percurso metodológico pelo qual passou a história em meio às ciências do século XVIII e XIX, abordando a construção do lugar do saber histórico. Sua análise caminha no sentido de desconstruir as verdades em torno dos fatos e dos objetos, num contínuo exercício de fazer “rachar as palavras”, desconstruindo a naturalidade de significados existente entre o signo e a coisa.

Montenegro estabelece em seguida uma discussão sobre memória. Para ele a memória está em constante movimento, pois ao mesmo tempo que os sujeitos históricos rememoram, também analisam e reelaboram suas percepções. Nesse sentido, as lembranças não são mimeses, ou seja, não constroem a realidade passada, trazendo-a para o presente tal qual aconteceu, mas como pensava – Marcel Proust – representam um meio de aprendizado. O autor alerta para que jamais se pense a memória ou a percepção como reflexo ou cópia do mundo, mas como atividade e como trabalho ininterrupto de ressignificação do presente ou, ainda, como leitura a partir de um passado que se atualiza.

É por meio dos fios da lembrança que a obra desse autor nos possibilita o acesso às vidas errantes de personagens que ajudaram a construir a imagem, o medo, os anseios e as lutas em torno do comunismo em Pernambuco. Trata-se de um combate, por meio das palavras, que se instaura, a princípio no encontro entre dois sujeitos, o entrevistador e o entrevistado, e é do choque desse encontro que flui uma história singular, uma história entre tantas outras possíveis, pois, como pensava Marc Bloch a história “é feita de combates” e de encontros.

Os narradores produzem uma maquinaria discursiva, na qual as dobras, as fugas, as piruetas, os silêncios contornam as histórias narradas. Desse modo, os relatos orais de memória, postos por meio de histórias de vida, são diluídos pelo autor, que de maneira minuciosa tal qual um artesão, busca juntamente com outras fontes, dar cores e sentidos a essa maquinaria oral. Esse exercício de artesão em muito se distancia do trabalho do psicólogo, que busca encontrar a verdade do sujeito presente de forma oculta em seu relato. Distante disso, o trabalho do artesão-historiador procura dar movimento e fluidez ao relato, não tendo como propósito a busca de uma verdade que se revelaria por meio de sua arguição, mas da elaboração de sentidos de verdades e dos desejos e afetos que são resultados das experiências de vida e do encontro do entrevistador com o entrevistado.

A partir da construção dessas lembranças, muitas delas elaboradas por personagens religiosos oriundos de alguns países da Europa e dos Estados Unidos vindos para o Brasil com a missão de combater o comunismo, o espiritismo e o protestantismo, podemos ter acesso a experiências de vida fortemente ligadas às lutas sociais e políticas no Nordeste. São relatos que possibilitam enriquecer a abordagem feita ao longo do livro, tendo em vista que algumas dessas experiências não deixaram registros escritos, portanto estão situadas nas práticas ordinárias e cotidianas às quais apenas os relatos orais possibilitam o acesso.

No capítulo “Labirintos do medo (1950–1964)”, Montenegro faz um apanhado historiográfico sobre o comunismo, principalmente a discussão sobre 1964 publicada em 2004, 40 anos após o golpe. Analisa ainda ideias, imagens e discursos acerca do medo com base em autores franceses clássicos como Georges Lefebvre e Jean Delemeau, os quais, mesmo situados em outro lugar e em outro tempo, ajudaram a pensar sobre a experiência do medo do comunismo. Nesse momento, o autor mostra como se produziu a ideia do medo. Segundo ele, este se processou através de uma elaboração feita por diversas instituições da sociedade, como alguns setores da Igreja Católica e a imprensa. Trata-se de uma abordagem teórico-metodológica que privilegia a arquitetura discursiva na qual se elabora sentidos de verdade sobre um determinado tema, neste caso o medo do comunismo.

Desse modo, atravessam toda a obra relevantes discussões sobre memória, sobre o tempo – presente/passado –, sobre relatos orais, fontes, a importância da memória para o estudo da vida ordinária, entre outras, que permitem aos pesquisadores dos relatos orais de memória o contato com um trabalho minucioso de elaboração das fontes para a construção do trabalho historiográfico e, sobretudo, o contato com uma importante discussão metodológica a respeito dessas e de outras fontes.

Fátima Saionara Leandro Brito – Mestranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

 

 

História Oral | ABHO | 1998

HISTORIA ORAL Meninos de Zinco

A ABHO, Associação Brasileira de História Oral, tem como um dos pontos centrais de sua proposta programática priorizar a publicação e a distribuição da revista História Oral  (Rio de Janeiro, 1998), que se destina aos associados e interessados na metodologia e teoria das pesquisas com fontes orais.

Criada em junho de 1998, a revista História Oral da ABHO é a primeira publicação brasileira inteiramente dedicada à divulgação de trabalhos nacionais e internacionais sobre a oralidade, desempenhando assim importante papel na formação de pesquisadores.

Nossa revista pode ser vista como um lugar plural onde se confrontam trabalhos interdisciplinares evidenciando as interfaces da história oral com vários campos do conhecimento.

Periodicidade semestral

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ISSN 2358-1654

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