Narrativas, pandemia e adoecimento social | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020

O ano de 2020 nos trouxe o cenário pandêmico com todos os seus desdobramentos sociais, políticos, econômicas, sanitários, educacionais, comunicacionais, culturais, e tantos outras implicações cotidianas nunca experimentadas pelos sujeitos deste século, um trauma em proporção planetária. Ao passo que o isolamento se mostra como a estratégia mais eficaz de proteção das populações, ele vem produzindo angústia, medo, tensões diante dos agravantes psicossociais, dos novos cuidados e hábitos de saúde e da confrontação com a vulnerabilidade física, emocional e social que se impõe a todos, de forma global. A confrontação com a morte e com a finitude da vida ou com a condição de vida precária traz à tona um tema tabu que ganha contornos ainda mais duros diante da impossibilidade de manter ritos de passagem que secularmente estruturam as relações pessoais e dão forma às histórias de vida. Até a presente data no Brasil, os números de mortes pela COVID-19 caminham para as 200 mil mortes, mas as notícias que chegam pela grande mídia sugerem subnotificações. São 200 mil famílias que perderam seus entes queridos. Perdas que exigem novas formas de elaborar o luto diante da suspensão dos habituais rituais de despedida.

Soma-se a esses números a descontinuidade do cuidado e do acompanhamento de doentes crônicos e suas famílias. Vidas em suspenso em um sistema de saúde que resiste ao colapso que se quer empreender pela falta de recursos e pela negligência dos gestores nacionais.

No campo do trabalho, as transformações que se impõem encontram nas tecnologias digitais, tão largamente evoluídas no curso dos últimos 15 anos, as condições de possibilidade para dar uma continuidade a projetos e planos, apesar das incertezas quanto ao futuro. Ao mesmo tempo, escancaram-se as desigualdades de acessos a essas mesmas tecnologias e aprofundam as diferenças sociais de grupos.

Esse conjunto de fatores vem interrogando as maneiras conhecidas de ser e estar consigo e em sociedade. Formas por vezes interrompidas e alteradas, demandando um esforço pessoal e coletivo de buscar novas saídas e soluções para redesenhar às experiências vividas e aos aprendizados adquiridos.

Se por um lado a vulnerabilidade, a precariedade, as incertezas, tensões e interrogações podem ser vistas como elementos que diminuem as possibilidades de agir dos indivíduos, por outro, elas podem ser tomadas como potência que estimulam a reflexão e a produção; verdadeiras passarelas que convidam professores e pesquisadores ao exercício de colocar em diálogo as bases epistemológicas da pesquisa (auto)biográfica com o contexto atual, a fim de contribuir com o avanço dos estudos em ciências humanas e sociais.

O dossiê Narrativas, pandemia e adoecimento social organiza-se em torno de 16 textos, uma entrevista e uma resenha e é a materialização de experiências reflexivas de viver a pandemia do COVID-19, de criação e de expansão de novas maneiras de habitar o mundo e de habitar a si mesmo. A Revista Brasileira de Pesquisa (auto)biográfica (RBPAB), por meio de sua rede de autores, pesquisadores e colaboradores lança este dossiê como uma confirmação do potencial (auto)biográfico como uma exaltação das narrativas enquanto meios, locais e suportes de produção de si e de configuração subjetiva que, nesse contexto, atualizam a sua importância. Comprometida com os indivíduos em sociedade e com as maneiras de dar forma ao vivido por meio das narrativas, a organização deste dossiê especial foi pensada a fim de contribuir de forma significativa para a compreensão da situação atual excepcional. Aqui, apresenta-se textos de reflexão teórica e metodológica, que colocam em diálogo o lugar das narrativas diante das transformações recentes, buscando refletir sobre os processos formativos e educacionais, sobre as perspectivas de investigação narrativa, sobre as condições de vida, de trabalho, de saúde e de organização social atual e futura. O conjunto de textos oferece um exercício de conexões entre as narrativas enquanto ferramentas epistemológicas e metodológicas, suportes de resistência e de emancipação social.

Como uma aposta nessa potência, a experiência de viver a pandemia da COVID-19 tornou-se para os autores aqui elencados um lócus de reflexão a partir de ferramentas epistemológicas no campo da pesquisa (auto)biográfica.

O artigo de Ivandilson Miranda Silva, intitulado O governo Bolsonaro, a crise política e as narrativas sobre a pandemia abre o dossiê com uma análise da atual conjuntura brasileira que, além da crise sanitária, protagoniza uma crise política. O não enfrentamento da pandemia pelo governo brasileiro empurra o país para a maior tragédia da saúde pública de sua história. O texto trata, também, das diferentes narrativas sobre a pandemia: do presidente Bolsonaro e seus apoiadores, aquelas que confrontam vidas e empregos, economia e saúde ou ainda as que criam um inimigo externo causador da pandemia; as narrativas religiosas que vendem curas milagrosas e ainda aquelas que insistem no isolamento social. Essas narrativas dão conta do desenho de um contexto político frágil de oposição ao governo com poucas forças e condições objetivas para um processo de impeachment.

Do continente africano, de Camarões, Joseph Yannick Mbatchou também se preocupa com análises das políticas sanitárias e seus impactos no cotidiano das pessoas. No artigo intitulado La résilience en temps de pandémie au Cameroun: de la difficile distanciation à l’impossible enfermement social, ele escreve sobre a resiliência como um conceito estabelecido para proteger as populações e limitar a propagação do vírus. Sugere a utilização de ferramentas do campo da história para a análise das medidas governamentais para preservar a saúde das pessoas e compara com entrevistas realizadas a agentes econômicos e agregados familiares para avaliar o impacto das referidas decisões no quotidiano e tradições das populações. Ele considera a ansiedade, a psicose que alimenta as populações e a deficiência de um sistema de saúde, como contexto de Camarões, onde o setor informal absorve mais da metade da taxa de desemprego, o confinamento social evoluiu para uma montanha-russa para argumentar em favor da resiliência como estratégia plausível para proteger a humanidade.

Diante da condição implacável de isolamento social, as formas de resiliência se apresentam em adaptações das práticas cotidianas e são evidentes em todos os níveis. E para as pessoas conectadas na rede mundial de computadores, o isolamento físico pode não significar isolamento social. Para Patrícia Silva, Danilo Mota Lima e Edvaldo Souza Couto o fenômeno das lives foi o tema motriz das suas reflexões. O artigo Lives de festas nos tempos da COVID-19: arranjos, vínculos e performances analisa arranjos, vínculos e narrativas gerados a partir das performances humanas e não humanas em uma live de uma festa virtual. Argumentam que a live é uma pedagogia cultural orientadora da festa para a vida, para os cuidados do corpo, além de explorar outras possibilidades para as paqueras e a sexualidade on-line. A live festa, nesse contexto, não significa uma desconexão da defesa das pautas políticas e ativistas, antes, são repletas de pedagogias culturais que potencializam a organização da vida social em meio ao isolamento físico, para a reinvenção do social, agora na esfera do on-line.

Da festa para o humor dos memes, o cotidiano pandêmico se mostra farto de possibilidades reflexivas. Tania Lúcia Maddalena, Dilton Ribeiro Couto Junior e Marcelle Medeiros Teixeira se debruçaram a essa análise no artigo O que dizem os memes da educação na pandemia? Dilemas e possibilidades formativas. Os autores se colocam responsáveis, como pesquisadores do campo educacional, por pensar as implicações dessa pandemia nos processos formativos cotidianos e os memes, como imagens-dizeres que se proliferam no ciberespaço, são o recorte da análise. Mostram como as tecnologias digitais não são capazes, sozinhas, de revolucionar os processos de ensinar-aprender e que a internet pode ser um campo de experimentação educacional prazeroso em tempos de isolamento físico.

A busca por momentos de prazer, de reencontros consigo mesmo em contextos de isolamento social fez parte da experiência reflexiva e (auto)biográfica de Maria Amália de Almeida Cunha no artigo Narrar a minha experiência ou como buscar o lirismo em tempos de incertezas. Como uma metarreflexão, a partir do registro diário por 63 dias ininterruptos durante a pandemia em um processo que percorreu três estados que ela os chama de “aporia”, “maiêutica” e “epistemia”. Elege o conceito de ressonância como uma concepção fundamental da fenomenologia – “ser posto em um mundo” ou “reencontrar-se num mundo que possui sentido para nós” para apontar um reencontro do sujeito com o mundo.

Sheila Dias Maciel escolhe o caminho literário para a sua reflexão nesses tempos pandêmicos. Ela aposta no poder curativo da literatura vista como remédio, capaz de trazer à tona a elaboração de vários problemas humanos. O artigo Remédios diferentes para um mesmo mal: a epidemia e a experiência humana pelo viés do literário se utiliza de duas obras do universo da Antiguidade Clássica com o propósito de rever a presença da epidemia como cena motivadora de tramas e conexões. Não deixa de pontuar o caminho (auto)biográfico como uma evidência do efeito do medicamento como bálsamo, que serviu como uma instância ou produto da autorrepresentação.

Além da comunicação consigo mesmo ou o reencontro do sujeito no mundo, a conexão com os outros, mesmo que em forma remota ou no fenômeno das lives passam pelo reconhecimento do contexto atual que chega pelas notícias. Essa é uma das dificuldades das pessoas surdascegas. O artigo dos autores Adriana Barroso de Azevedo, Elaine Gomes Vilela, Marcos Henrique Assunção Ramos intitulado Surdocegueira e as possibilidades em meio a pandemia por COVID-19 se preocupa com a atuação dos guias-intérpretes nesse período de pandemia. São eles que garantem que as informações cheguem de maneira adequada às pessoas surdocegas diante da privação sensorial. O ineditismo do que vivemos atinge aspectos não antes colocados à prova e interroga sobre a urgência de se refletir as formas de disseminar informação de maneira segura e eficaz quando ela é orientadora para a compreensão do contexto.

Além das informações e da literatura, o cinema também foi ferramenta e lócus de reflexões em tempos de pandemia. As autoras Rebeca Silva Brandão, Rosa Helena Mendonça e Rossana Papini tecem imbricamentos de memórias no artigo Memórias de professoras: tecendo cineconversas com o incrível exército de Brancaleone. Três professores e suas memórias em diferentes tempos, 1967, 2000 e 2020 conversam com imagens e sons problematizando o contexto da pandemia e evidenciam práticas de leituras contemporâneas.

Os imbricamentos de linguagens também marcaram os diálogos de um grupo de educadores musicais no artigo Playlists em tempos de pandemia da COVID-19: narrativas de educadores e educadoras musicais integrantes de um grupo de estudos. Maria Cecília de Araújo Rodrigues Torres apresenta as reflexões a partir de trocas de playlists desse grupo, assim como o significado dessas escolhas e do trabalho como professores de música em tempos da pandemia da COVID-19. As narrativas desvelaram playlists ecléticas, com estilos, épocas, sentimentos, sonoridades, assim como movimentos que esses educadores fizeram para criar e reinventar outros modos de fazer, ensinar e compartilhar músicas.

As reinvenções da prática docente foi um grande desafio desses meses de trabalho escolar remoto. O artigo Educação em tempos de pandemia: narrativas de professoras(es) de escolas públicas rurais, das autoras Maria Antônia de Souza, Maria de Fátima Rodrigues Pereira e Maria Iolanda Fontana, traz a dimensão desse desafio e suas condições de realização em escolas rurais na Região Metropolitana de Curitiba. Das narrativas de oito professores colaboradores, elas evidenciam as desigualdades sociais, a precariedade de sinais de internet/ telefônicos no campo, condições das estradas, baixa densidade demográfica e condições socioeconômicas. Trazem também para a reflexão a condição de sobrecarga de trabalho docente que se intensifica mecanicamente, com a tecnologia educacional no centro do cenário, secundarizando o valor humano e trazendo esgotamento e depressão.

As autoras Elzanir dos Santos, Idelsuite de Souza Lima e Nadia Jane de Souza constataram resultados muito semelhantes em suas análises no artigo “Da noite para o dia” o ensino remoto: (re)invenções de professores durante a pandemia. Inconteste os problemas estruturais do país que se desdobram em condições precárias de ensino e de aprendizagem, além da desvalorização docentes. Nesse cenário precário, os(as) professores(as) foram convocados a operar mudanças profundas no modo de ser, pensar e fazer seu cotidiano docente, a partir do ensino remoto. Elas tecem o artigo buscando responder à questão: “como professores(as) têm dado forma e produzido sentidos ao seu ofício no contexto do ensino remoto?”

A escuta de professores também foi central no artigo de Rebecca Machado Oliveira da Silva, Liége Maria Queiroz Sitja. Intitulado Narrativas de professoras sobre a pandemia e a educação: um olhar hermenêutico-fenomenológico das experiências docentes, ele busca compreender as narrativas de professoras sobre a pandemia e a educação, através das experiências docentes. As experiências, como acontecimentos – o fenômeno da pandemia e suas repercussões na educação –, mobilizaram os sentidos existenciais e formativos em suas narrativas.

Narrativas trocadas, imbricadas e refletidas foi o mote de alguns artigos deste dossiê. Com o título Confiar. Con.fiar. Confi(n)ar: a narrativa como estratégia formativa ante as recentes transformações sociais, as autoras Luciana Haddad Ferreira, Marissol Prezotto, Juliana Terra refletem sobre suas próprias narrativas compartilhadas no decorrer do isolamento social. Por meio delas, discorrem sobre a potência da escrita narrativa como recurso formativo que se funda no fazer cotidiano, artesanal e coletivo. Diante do sentimento de solidão vivenciado intensamente, a escrita narrativa se delineia como possibilidade de desenvolvimento do pensamento, por sua articulação com a linguagem, e da consciência, pelos excedentes de visão oferecidos. Afirmam a escrita também como ato ético e estético, de conexão com os pares e com o meio, e dialético, constituído de ausências e presenças, ruptura e tradição. Sobretudo, como forma de resistência.

As profundas transformações ocorridas no campo educativo afetaram obviamente a vida cotidiana dos estudantes e os rituais escolares como as formaturas. O artigo Formaturas adiadas por tempo indeterminado: narrativas de possíveis formandos da UFV-CAF, da autora Patrícia Claudia da Costa, examina um conjunto de narrativas de estudantes universitários, cujas vidas foram afetadas pela suspensão das atividades acadêmicas, provocada pela pandemia de COVID-19. Possíveis formandos que revelam nessas narrativas uma percepção de que a conclusão do curso se daria num futuro incerto. Com os planos estagnados, eles externaram experiências inéditas e os consequentes aprendizados de um contexto de tantas incertezas e tensões. O adiamento da formatura não alterou os planos, antes, o tempo liberado pela suspensão das aulas propiciou reflexão sobre os projetos de vida e interesses e amadureceu e consolidou escolhas cruciais para seus destinos formativos e profissionais.

A acadêmica de pós-graduação Maria Inez do Espirito Santo aproveitou o tempo pandêmico para elaborar análises acerca da ameaça da morte eminente pela COVID-19 e da sua formação em momentos de elaboração de sua dissertação. No artigo Minha narrativa de vida atravessada pela pandemia, ela parte das suas lembranças e de registos pessoais para identificar como o tempo, ambiente e culturas atuam no desenvolvimento do ser humano. Assume duplo olhar de espectadora e especialista, encontrando o fio condutor que interliga fatos, sentimentos e conhecimentos acumulados e que aponta para um processo infinito de trocas experienciais, herança comum a todos os seres humanos.

Os autores José Antonio Serrano Castañeda, Lorena del Socorro Chavira Álvarez e Juan Mario Ramos Morales evidenciam os significados que os estudantes dão à experiência vivida. No artigo La vida trastocada. El sentido de la pandemia en estudiantes de educación superior, eles apresentam um conjunto de reflexões vinculadas a um projeto de pesquisa e relacionadas aos efeitos da pandemia em estudantes de nível superior, colocando em relevo problemas como demanda social, evento, memória, testemunha e descrevendo o processo de acompanhamento do programa Entre Pares que tende a formar comunidades de aprendizagem relacionadas à alfabetização no ensino superior, uma estratégia que lhes permitiu produzir um material narrativo. Destacam o significado que os alunos dão à vida na pandemia através de três seções: “o conhecimento caótico do vírus”; “a COVID em casa”; “transformações na vida cotidiana e nas trajetórias formativas”.

Por fim, e não menos importante, o dossiê contempla a entrevista com o professor Hervé Breton – Maître de conférences do Departamento de Ciências da Educação, Université de Tours, França – desenvolvida por Camila Aloisio Alves. Nessa entrevista, inicialmente, foram abordados, em grandes linhas, a trajetória de formação e de pesquisa do professor Breton no campo da educação e sua implicação no desenvolvimento de estudos sobre narrativas e histórias de vida em formação. Em seguida, um especial destaque foi dado ao evento que o professor organizou e realizou em 20 de junho de 2020, que reuniu e conectou 28 pesquisadores de várias partes do mundo para compartilharem suas experiências vividas durante o confinamento, um evento único e marcante no cenário acadêmico. O professor Breton destaca as contribuições deste seminário e da abordagem narrativa perante o cenário atual, as questões e os aprendizados que emergem da pandemia.

Assim, concluímos o dossiê para dar espaços aos artigos de fluxo contínuo. Porém, mais do que concluir, queremos manter o convite para a continuidade de estudos sobre as experiências vividas, as narrativas que emergem e os aprendizados que se formam no início da segunda década de um século que dá seus primeiros passos. O conjunto de eventos vividos no plano macro e micro da vida pode ser tomado como fonte de muitas das transformações que serão vividas, sentidas e empreendidas nas décadas que vão se suceder. Quantos nós atados em 2020 não serão desatados no curso dos próximos anos, participando de forma central da tessitura das vidas futuras? Que projetos de vida não estão sendo gestados com e apesar da pandemia e que darão frutos, transformando a presença do humano neste mundo? Essas são algumas dentre as muitas perguntas que devem continuar mobilizando professores e pesquisadores a tomar as narrativas como fonte de escuta, de acolhida, de produção e de transformação.

Joinville, Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2020


Organizadores

Raquel Alvarenga Sena Venera – Universidade da Região de Joinville

Camila Aloisio Alves – Faculdade de Medicina de Petrópolis


Referências desta apresentação

VENERA, Raquel Alvarenga Sena; ALVES, Camila Aloisio. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 05, n. 16, p. 1472-1477, Edição Especial, 2020. Acessar publicação original [DR]

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