Nazareno Confaloni: arte & modernidade como experiência religiosa | Jacqueline Vigário

É preciso aproximar o artista da realidade vivida pelo povo, caso contrário, o artista viverá desambientado e incompreendido.

Frei Nazareno Confaloni

As produções acadêmicas pela lente da História Cultural têm muitos exemplos interessantes de reflexões historiográficas a partir das imagens, e a obra Nazareno Confaloni. Arte & Modernidade como experiência religiosa é um dos mais recentes deles. Vencedora do prêmio Sandra Jatahy Pesavento do ano de 2018, trata-se da tese de doutorado de Jacqueline Siqueira Vigário, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás em 2017, que acaba de ser publicada pela Edições Verona e discute a modernidade em Goiás a partir da vida e da obra do frei dominicano e artista plástico italiano, Nazareno Confaloni.

Ao longo de seu texto, Vigário nos leva pelos meandros da construção da modernidade em Goiás ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, a partir das bases, especialmente, da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), na esteira da transferência da capital goiana da cidade de Goiás para Goiânia por Pedro Ludovico Teixeira na década de 1940, sob as bênçãos do Estado Novo. As reformulações culturais do regime de Vargas são a base para o IHGG, que legitima culturalmente o Estado de Goiás em relação ao resto do Brasil, constituindo-se, segundo a autora, em uma instituição legítima no exercício de promoção dos projetos políticos de modernização e construção do imaginário de modernidade para Goiás (VIGÁRIO, 2021, p. 278).

Giuseppe Nazareno Confaloni, que nos é apresentado em uma sequência de autorretratos (VIGÁRIO, 2021, p. 51), nasceu na Toscana, na pequena Grotti di Castro, em 23 de janeiro de 1917. Ainda na infância foi admitido na Escola do Convento Dominicano de San Marco, onde começou sua formação religiosa. A educação artística formal veio aos 23 anos de idade, quando ingressou na Academia de Belas Artes de Florença. Nos anos seguintes ainda frequentou o Instituto Beato Angélico de Pintura de Milão, a Escola de Arte de Brera, também de Milão e a Escola de Pintura Al’Michelângelo em Roma, onde aprendeu com Felipe Carena Baccio, Maria Bacci e Primo Conti – um dos grandes nomes do movimento futurista.

Em 1950, a convite do frei dominicano Dom Cândido Penso, Confaloni chega a Goiás, mais especificamente à Cidade de Goiás, chamado para pintar os afrescos da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Em 1952 muda-se para Goiânia, onde conhece Luís Augusto Curado (1919-1996) e Henning Gustav Ritter (1904-1979), seus parceiros de fundação da EGBA em 1953.

A partir desse lugar que passa a ocupar em Goiás, Confaloni é componente fundamental na apropriação e construção do discurso do novo: um ícone da modernidade em contraposição ao atraso, ao “isolamento” e à dinâmica político-social então existente em Goiás. Para Jacqueline, a pintura de Nazareno Confaloni, sua reinterpretação visual do sagrado e sacralização do homem do mundo rural, são maneiras de refundar uma história já escrita, de apontar novas maneiras de pensar a sociedade, a política e a religião. Sua militância artística associada a uma nova visão de mundo era adequada aos novos tempos vividos por Goiás e Goiânia na década de 1950.

Por meio da análise da recepção da crítica de arte em Goiás acerca do pensamento de Confaloni, Vigário explora o panorama da crítica de arte regional, sua vinculação com instituições culturais e articulações políticas. A sua hipótese é a de que existe uma relação entre os intelectuais, a cultura e a política sobre a conjuntura de modernidade inventada para o Estado, e que a imagem de Confaloni serve à apropriação, por parte de grupos hegemônicos que legitimam a relação entre história, arte e cultura na conjuntura de consolidação da nova capital. Para parte da crítica, o Frei “fertilizou a arte em Goiás” e orgulhava-se por ter vencido os chamados “tempos bárbaros”, maneira como era definida a situação da arte na região desde a década de 1950. Em uma cidade “sem tradição cultural”, Confaloni será considerado um “arauto da modernidade”, um “bandeirante das artes em Goiás” (VIGÁRIO, 2021, p. 14).

A partir de indagações como qual o papel de Confaloni no movimento cultural iniciado em Goiânia nos anos 1950? Qual sua atuação no projeto político cultural moderno pensado para Goiás desde o nascimento da nova Capital? Qual o processo que levou os intelectuais e a comunidade artística a considerar Confaloni, como um pintor moderno? Em que consistia o modernismo atrelado ao novo, apontado pela crítica de arte local? Vigário vê dois acontecimentos pivotais se ligarem, a criação da Escola Goiana de Belas Artes em 1953, e a realização do I Congresso Internacional de Intelectuais em 1954. Esse congresso contou com a participação de intelectuais como o poeta chileno Pablo Neruda, o escritor Jorge Amado, o crítico Mário Barata e, no campo das artes plásticas, em razão de uma exposição organizada por Frei Confaloni e Luís Curado, o acesso obras de Oswaldo Goeldi, Carlos Scliar, Carlos Prado, Mário Gruber, Mário Zanini, Rebolo, Volpi e Djanira (VIGÁRIO, 2021, p. 178). Para a autora, esses eventos significaram uma ruptura cultural e a inserção de Goiás no circuito e no debate intelectual que acontecia no Brasil e no exterior.

Sem deixar de aquiescer às discussões em âmbito nacional acerca dos temas modernidade, modernização e modernismo, Vigário se remete ao projeto de industrialização da cidade de São Paulo para repensar a forma como Goiás assumiu o seu papel no caminho de modernização nos idos dos anos de 1950 e 1960 especialmente. A partir de então ela avança para a década de 1970 e o trabalho com a crítica de arte, tanto em Goiás quanto na terra natal do artista.

Se as várias bibliografias pesquisadas sobre o artista apontavam Frei Confaloni apropriado pela crítica como um arauto do moderno em Goiás, Vigário indaga: como a crítica italiana recepcionou o trabalho de Frei Confaloni? A partir de um extenso levantamento documental, o que se vê é que o reconhecimento que o artista havia conquistado no Brasil reverberava nos periódicos italianos.

Quanto a crítica em Goiás, a pesquisadora aquiesce que os documentos analisados mostram, muitas vezes, uma crítica subjetiva e amadora, embora tenha encontrado exceções. Destacando nomes como José Godoy Garcia, Miguel Jorge e Emílio Vieira, que ao longo de anos se debruçaram sob o trabalho do Frei e, cada um a seu modo, trazem um Confaloni voltado para a abordagem social, mas sempre no papel de pintor moderno e o legítimo pioneiro nas artes plásticas em Goiás (VIGÁRIO, 2021, p. 41). Também lançam luzes sob essa produção moderna que nasce na nova cidade destinada a ser civilizada desde a primeira pedra. E civilizada por meio da cultura, já que, como também destaca a autora (VIGÁRIO, 2021, p. 39), o marco inicial de Goiânia é um Batismo Cultural, realizado em 1942. E a ressalva do Batismo é importante porque vai ao encontro do projeto de Vargas, que não só abraça a cultura, mas também a política; e ao encontro dos ideais da elite do Estado de Goiás trabalha para integrar a nascente e civilizada capital ao resto do país, que pretende se modernizar pela cultura.

O projeto varguista, conhecido como “Marcha para o Oeste”, buscava desbravar o interior do Brasil, mas de forma intervencionista. Nesse sentido, o que se entrevê na narrativa, é que Goiás viveu de modo intenso o que ficou conhecido como a utopia da modernidade, após a Revolução de 1930, significando a configuração de um grupo de políticos e intelectuais instalados no poder e integrando a região de Goiás aos projetos políticos do Brasil na época. Também fica clara a importância da segunda fase de novos influxos desenvolvimentista da década de 1950, período em que Confaloni chega a Goiás, sobretudo nos setores econômico e industrial, proveniente, especialmente da transferência da Capital Federal para região centro-oeste (VIGÁRIO, 2021, p. 208).

Jacqueline Vigário apresenta uma interpretação historiográfica atualizada sobre a temporalidade dos processos históricos ocorridos no Brasil desde a década de 1930, pois rejeita não só a ideia de que o Brasil enquanto nação foi feito de uma só vez, como também a ideia de que o movimento modernista teria ocorrido de maneira uniforme em todas as regiões do país. Para ela, esse tipo de leitura é herdeira de uma história construída a partir da construção de símbolos e representações destinados a configurar um modelo único de Estado, de Nação. Às portas do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, necessária a contribuição da sua pesquisa para se pensar a história do movimento modernista no Brasil de forma plural, em épocas distintas e com peculiaridades locais.

Estabelecido o papel fundador e modernizador de Confaloni, Vigário se volta a relação entre o sagrado e o profano que grassa a produção do ítalo-brasileiro, por entender a relevância dessa relação para entender toda a obra do Frei. Para tal, associa a sua formação religiosa e a artística feita a partir de um espírito artístico moderno, que faz nascer um diálogo entre o Brasil e a Europa desde o período entre guerras e a corrente estética do “Retorno à ordem” até chegar à “ Teologia da Libertação”, está presente justamente no viés de denúncia social já enxergado pela sua crítica. Nesse ponto, são interessantes as relações feitas entre a “Teologia Progressista” europeia e a “Teologia da Libertação” latino-americana (VIGÁRIO, 2021, p. 620), que colocam os pobres, os menos favorecidos, como sujeitos da história, apropriando-se da linha pastoral social do Concílio do Vaticano II e usando a sociologia de inspiração marxista que, ao menos na Europa, tem como base o socialismo utópico. De igual forma, lembra que essa lida abarca entender a diversidade brasileira em amplo aspecto, em que pesem as discussões em torno de autores emblemáticos da historiografia brasileira como Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda.

Quando Confaloni chega a Goiás, ele se depara com realidades muito distantes das que ele conheceu na Europa. Na lida religiosa pelo interior goiano, ele aprende novas nuances de exclusão humana e social, em razão dos conflitos pela terra, pela desigualdade social, os conflitos nas relações de trabalho, entre outros. E a lida religiosa se reflete na arte: em seus painéis, afrescos e telas podemos ver as comunidades ribeirinhas da região do Rio Araguaia, as populações indígenas e os quilombolas da região do norte de Goiás, atual região do Tocantins.

E toda essa construção perpassa a análise de diversas imagens, que ela divide em três grupos: as que evidenciam o que a pesquisadora chama de uma atitude modernista conservadora, com flexões em torno do clássico; um segundo grupo que traz imagens do progresso (aqui ela destaca painéis pintados pelo artista na antiga Estação ferroviária de Goiânia, narrando o progresso ferroviário no Estado de Goiás, chamado Os Bandeirantes: antigos e modernos, entendidos como prova de assimilação do modernismo brasileiro, pela proximidade com a obra de Cândido Portinari), e o terceiro grupo, formado por madonas. Nesse caso, Vigário defende que há uma trajetória artística em relação a essas imagens que foram ganhando novas faces ao longo do percurso artístico de Confaloni, que em seus últimos anos, já na segunda metade da década de 1970, adquire contornos expressionistas.

Mas a verdade é que, para Vigário, a dita modernidade da arte de Confaloni não é o principal ponto da sua análise, o fato do modernismo goiano ter sido ou não tardio também não é o ponto principal da discussão. Para ela, o importante é a compreensão das formas de construção dessas ideias pelos grupos e instituições que fizeram a narrativa de Goiás ao longo das décadas para a qual se volta a pesquisa. E a autora pondera: foram os críticos que se apropriaram convenientemente do artista como arauto da modernidade ou foi Confaloni que teria se apropriado de Goiás pelas experiências sociológicas que teve a oportunidade de experimentar? (VIGÁRIO, 2021, p. 621).

Com efeito, o que se aprende é que o debate sobre a construção da ideia de modernismo em Goiás passa pela apropriação crítica de um artista estrangeiro como fundador de uma nova estética articulada a uma nova política, elementos que ajudaram a conformar o projeto de modernização conservadora de uma jovem cidade que brota no Planalto Central.

Referência

VIGÁRIO, Jacqueline. Nazareno Confaloni: arte & modernidade como experiência religiosa. [Livro eletrônico]. São Paulo: Edições Verona, 2021.


Resenhista

Anna Paula Teixeira Daher – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG). Bolsista CAPES. Membro do Grupo de Estudos em História e Imagens da UFG (GEHIM/UFG) e da Rede Internacional de Pesquisas em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. https://orcid.org/0000-0001-5333-7705  E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VIGÁRIO, Jacqueline. Nazareno Confaloni: arte & modernidade como experiência religiosa. [Livro eletrônico]. São Paulo: Edições Verona, 2021. Resenha de: DAHER, Anna Paula Teixeira. A civilidade como religião: a construção da modernidade em Goiás. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.18, n.2, p.790-795, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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