Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII | Ronald RAminelli

A obra de Ronald Raminelli ajuda a entender um pouco mais o universo da América portuguesa e espanhola. Tecendo seu livro em duas partes, Raminellli apresenta discussões acerca da heterogeneidade das nobrezas do Antigo Regime, ou seja, o estamento nobre da sociedade em que, de acordo com o autor, exibe distinções e aproximações entre Metrópole e Colônia. Isto se dá, especialmente quando Raminelli analisa o envolvimento de chefes indígenas e negros frente às Ordenanças Militares, comparando, entre outros pontos, a percepção nobiliárquica de enobrecidos hispânicos coloniais e enobrecidos portugueses da Colônia.

Raminelli nessa obra apresenta um balanço historiográfico da pesquisa dos enobrecidos das possessões americanas, e em suas considerações reflete acerca de crioulos e mazombos, os quais almejam ingressar no estamento nobiliárquico da sociedade hispânica, em especial na hierarquia nobre do Vice-reino de Peru e Vice-reino da Nova Espanha. Quanto à América portuguesa, o autor intenta estudar os índios e mulatos e suas tentativas de obter, por meio de algumas guerras entre Portugal e Holanda no litoral colonial, algumas ascensões sociais e possíveis privilégios das ordenações.

No primeiro capítulo, o autor se preocupa com as distintas composições da nobiliarquia estamental, principalmente as Ordens tituladas que possibilitavam, em tese, os sujeitos ordenados adentrarem um mundo de privilégios frente à representação social. Esse estudo propicia uma análise dos agentes contemplados com as honras e mercês dos séculos XVII e XVIII –recorte da análise de Ronald Raminelli –. Ainda neste capítulo conseguimos relacionar as benesses da fidalguia hereditária com as benesses das ordenanças, ou seja, as distinções e os imbricamentos das relações entre nobreza vitalícia, oriunda de uma mercê concedida, por exemplo, com as nobrezas perpétuas, que também podem ser oriundas de mercês, mas geralmente é representada pela aristocracia de sola, ou seja, famílias tradicionais que transferem, hereditariamente, seus títulos.

Neste contexto, a obra também nos remete à uma nobreza espanhola apontada pelos estudos de Konetzke (La formación de la nobreza em Indias) e de Lohmann  Villena (Los americanos em las ordenes nobiliarias), os quais Raminelli utiliza para advertir a respeito do fato de que a nobreza espanhola nem sempre se edificou nos marcos jurídicos-institucionais. Dizendo melhor, diferente do ultramar português, em que a distribuição de benesses das Ordenanças é atribuída ao Monarca, a Coroa espanhola apresenta em seus vice-reinados as autonomias para agraciar, quando pertinente, os habitantes do ultramar hispânico com prestígios nobiliárquicos. Assim sendo, podemos observar que as brechas constituídas pelos hispânicos americanos ora lançam mão das normas peninsulares para se assegurarem no direito da nobreza, ora se respaldam nas fissuras judiciais e administrativas da metrópole.

Apresentando o cenário da sociedade espanhola do além-mar, Raminelli nos informa que há hidalgos, caballeros e titulados. Assim como na América lusa, os feitos militares eram motivos que poderiam provocar a ascensão social de alguns agentes coloniais. O autor nos alerta que mesmo as pessoas podendo adentrar, graças ao envolvimento militar, no universo nobiliárquico, a ‘mancha de sangue’ e o ‘defeito mecânico’ ainda continuavam sendo pontos essenciais para distinções sociais do Antigo Regime. Desse modo, a obtenção e coordenação das titulações nobiliárquicas, para a Espanha e seu ultramar, ficavam a cargo da Real Ejecuttoria de Nobleza.

Para analisar a América portuguesa, Raminelli utiliza a obra de Antonil, Cultura e opulência no Brasil e suas drogas e minas, e também outros documentos no intuito de mostrar o prestígio social adentrado em terras brasílicas, que, no caso colonial, é estudado a partir dos homens de cabedais, sendo principais da terra, com fortunas oriundas das riquezas agrárias; e homens de negócios, com sua riqueza resultado do comércio intracolonial ou com a metrópole. A fonte de Antonil pode nos ajudar a entender que o respeito aos cabedais não estava apenas ligado ao ofício régio dos burocratas nomeados diretamente pelo rei, mas também aos mandos e desmandos de representantes locais que, mesmo não pertencentes à nobreza de solada Coroa, tinham influências locais. Então, de acordo com o autor, o dinheiro também era motivo para enobrecer.

Trazendo a discussão da ‘nobreza metamórfica’, Raminelli nos explica as mudanças da sociedade colonial entre séculos XVII e XVIII. Dessa maneira, os títulos doados no século XVII para o universo colonial eram oriundos do rei, ou seja, a Coroa detinha o ‘monopólio da honra’ e se fundamentava na hereditariedade sanguínea. Já nos Setecentos, com o enriquecimento dos colonos e o envolvimento das disputas territoriais no litoral ou em terras fronteiriças, os plebeus podem, pela compra de cargos e títulos, enobrecerem socialmente e houve, em meados do século XVIII, a formação de uma junta governativa, conhecida como Mesa de Consciência e Ordem, em que ocorriam alguns impedimentos de ordenanças. Nas titulações da América espanhola, por exemplo, a manutenção da chefia indígena como representante do rei espanhol era possível pela ordenança dos nativos na Ordem dos Cavaleiros de Tecles. Os líderes dos povos originários poderiam ser condecorados desde que jurassem obediência ao rei, à Deus e à Igreja.

A condecoração indígena na América portuguesa será analisada no tópico “Contrário à norma”. Para o autor essa prática de condecorar povos originários não era comum na sociedade lusitana. Pelo trabalho documental entre os anos de1571 e 1721, de acordo com o autor, foram agraciados apenas nove índios com Ordens Militares.  Se por um lado as condecorações de nativos na ordenança eram poucas, a de negros eram ainda mais raras, mas existia. Raminelli ao analisar os documentos da Mesa de Consciência e Ordens, mostra-nos a figura de Henrique Dias, negro envolvido nas guerras de Pernambuco e que, segundo o autor, recebeu a titulação de Ordem Militar, uma comenda de 40 escudos e foro de fidalgo.

Em uma reflexão acerca da discussão teórica da América portuguesa, Raminelli debate o envolvimento da nobreza do Antigo Regime na história econômica, nas dimensões políticas europeias e na autonomia dos munícipios. Nesse contexto, o autor afirma que estudar o envolvimento nobiliárquico na burocracia administrativa da Metrópole e do seu ultramar não é suficiente para compreendermos os habitantes da Colônia. É preciso que se estude, pelo trabalho arquivístico, as práticas de enobrecimento, as quais podem, talvez, nos mostrar distinções entre nobreza hereditária e os enobrecidos que compraram seus títulos.

O autor, no capítulo ‘riqueza e mérito’, apresenta as honrarias como sinônimo de herança no Antigo Regime. As honras atuavam como prêmios para completar ‘virtudes e beneméritos’. Deste modo, no caso da América espanhola, ao interpretar a fonte Discurso sobre la honra y deshonra legal em que se manifiesta el verdadeiro mérito de la nobleza de sagre, de 1781, Raminelli tenta compreender as lealdades dos súditos em troca das benesses das ordenanças espanholas.

Para a análise do cenário português, o autor utiliza o texto Privilégios da nobreza, e fidalguia de Portugal, de 1806, escrito por Pereira Oliveira, o qual possibilita entender uma sociedade que estabelecia seu controle por dois tipos de nobreza: o estado nobiliárquico perpétuo, ou seja, títulos herdados hereditariamente, e os nobres vitalícios, titulados até a morte, mas que as benesses não eram transferidas para suas gerações.

Na segunda parte da obra, em uma análise documental do envolvimento de pretos, mulatos e indígenas nas guerras de Pernambuco e Piauí, Raminelli possibilita estudarmos o agraciamento da Coroa de algumas personagens históricas envolvidas no cenário belicoso litorâneo. É o caso do índio Antônio Camarão e ainda de Simões Soares, ambos parentes e que lutaram em lados postos na guerra contra os holandeses em Pernambuco.  Camarão pelo lado de Portugal e Soares pela Holanda. Assim, o arrolamento dos documentos mostra as petições de Camarão pelo Hábito de Cristo e uma tentativa de titulação hereditária, ou seja, perpétua.

Ainda no capítulo quatro temos o tópico “querelas entre reis e a Mesa” que elucida as distinções entre rei e Mesa da Consciência e Ordens para as honrarias de indígenas, negros e mulatos. Dessa forma, o rei enxergava as ordens como premiações dos vassalos frente a alguns feitos e que, consequentemente, alicerçavam a manutenção do poder régio. Raminelli nos diz que esse pensamento de premiações com títulos conseguiu mitigar algumas forças centrífugas do Antigo Regime. Já para a Mesa de Consciência e Ordens as titulações deveriam ser realizadas cautelosamente através de pesquisa da genealogia da família e do poder aquisitivo dos agentes. Portanto, é possível vermos pela análise deste capítulo um desconsente entre Monarca e representantes da Mesa.

No próximo capítulo, ‘militares pretos na Inquisição’, serão arrolados documentos de milicianos e eclesiásticos acerca da entrada e permanência de pretos, indígenas e mulatos nas tentativas de ascensão social pelo envolvimento em guerras. O negro Henrique Dias é apresentado na documentação de Raminelli, possibilitando-nos entender, ainda pelas guerras entre Portugal e Holanda em Pernambuco, as possíveis benesses de enobrecimento da família de Dias. Assim, ao mudar para Portugal, pois Henrique Dias recebeu de João IV uma porção de terras em Moinho de Soure, percebemos que Dias tenta, por meio das correspondências, os hábitos das ordens militares também para as suas filhas.

No sexto e último capítulo há discussões acerca de cores e raças dos componentes do Antigo Regime. Na colônia, para o autor, a cor da pele e a religião estavam diretamente ligadas ao caráter, ou seja, os negros, por exemplo, encontravam um maior enrijecimento frente aos indígenas quando se deparavam com, no caso da pesquisa, ordenanças militares. Raminelli também nos adverte que no século XVIII o discurso de raça era amparado pelos dogmas religiosos da subserviência negra frente aos colonos brancos, por isso, talvez, os indígenas encontrassem uma flexibilidade um pouco maior no envolvimento com Ordens Militares.

Por fim, há na obra quatro considerações realizadas pelo autor e que dão um fecho à pesquisa de Ronald Raminelli.  O primeiro ponto destaca as distinções da camada social nobiliárquica do Novo Mundo com a Europa. Para o autor havia na nobiliarquia colonial dificuldades para manter o controle sobre o privilégio no Novo Mundo. Dizendo de outra maneira, a nobreza colonial estava atrelada à sua elite, mas diferente da Metrópole, a nobiliarquia não se acentuava em títulos perpétuos, passados de geração. Eram agraciamentos vitalícios que dificilmente eram herdados por filhos.

Em uma segunda consideração, podemos entender que o ultramar hispânico era distinto do luso-brasileiro. Os pontos divergentes são, ao analisar o Vice-Reino da Nova Espanha e Vice-Reino do Peru, uma maior aproximação entre nobiliarquia colonial e nobiliarquia metropolitana, o que não ocorria no cenário português. Raminelli lança mão da hipótese de que devido à maior autonomia dos Vice-Reinados hispânicos frente às Capitanias-Hereditárias portuguesas, a nobreza hispânica do além-mar se apresentava próxima à da Espanha.

As ordens militares ocupam uma terceira consideração. Vistas pelo Monarca como maneira de legitimar o mando e desmando dos reis e, concomitante, assegurar a vassalagem do Antigo Regime, as ordenanças foram amplamente efetuadas no além-mar português, mas quando arroladas as fontes da época dificilmente agraciavam-se povos originários e, mais raro ainda, os negros.

A cor da pele é o quarto e último ponto de estudo de Raminelli. Conforme o autor, naquele período os nativos eram vistos de forma distinta dos negros. O estigma da cor negra impossibilitava muitas ascensões sociais. Mesmo com o envolvimento de negros nas guerras entre Portugal e Holanda na costa colonial, percebeu-se que o ordenamento de indígenas fora muito maior.

Esta obra Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, século XVII e XIII, se torna fundamental para pesquisadores e curiosos que buscam entender alguns aspectos que permeiam a ocupação europeia nas Américas, tanto espanhola quanto portuguesa. A análise hispânica feita pelo autor é de suma importância para entendermos as possessões das fronteiras, no caso, o Vice-reino do Peru e Vice-reino da Nova Espanha, como palcos de inúmeras disputas territoriais e de acordo estabelecidos entre Coroas Ibéricas.


Resenhista

Bruno c. Bio Augusto – Graduando em História –UFMS. Desde 2014 participa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC –CNPq). Com pesquisas acerca do Termo de Vila do Cuiabá no século XVIII, especificamente o envolvimento de mulheres, pobres e ricas, no cotidiano local. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. Resenha de: AUGUSTO, Bruno C. Bio. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.10, n. 20, p.93-97, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

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