O ensino de História e o tempo presente / História Hoje / 2013

A noção de que História é sinônimo de passado faz parte do senso comum há muito tempo. A noção de que passado é um tempo muito antigo, um tempo que já passou e que está, digamos assim, “morto”, também faz parte desse mesmo senso comum. E isso continua ocorrendo, a despeito de os historiadores profissionais terem integrado a seu campo de reflexão, de maneira forte e irreversível, o tempo no qual eles próprios vivem e participam, bem como o tempo que vivem “indiretamente”, na medida em que são inúmeras as “testemunhas” que, muito vivas, a ele se referem. Portanto, cada vez mais, os historiadores recebem demandas da sociedade para refletir sobre um tempo que “ainda não passou”, cujos atores sociais estão vivos e opinando, com a autoridade de quem “viu e viveu” aquilo que aconteceu. Crescentemente e internacionalmente, esse tempo que está “próximo” e mobiliza em variados sentidos – políticos, jurídicos, sociais, emocionais – as sociedades ganha lugar na narrativa histórica.

Essa é uma grande transformação no campo historiográfico, difícil de ser absorvida até por parcelas consideráveis de historiadores de ofício. Portanto, uma transformação que também é muito difícil de ser incorporada ao saber escolar. É desse tema não só complexo mas também atual e importante que este dossiê trata, procurando abordá-lo com base em várias possibilidades de reflexão, todas convergindo para uma melhor compreensão do que chamamos de tempo presente e de como o tempo, em especial o tempo presente, é um conceito fundamental para o aprendizado da História na escola.

Não se pode desconsiderar o peso do sistema escolar nessa apreensão, uma vez que a disciplina se constituiu durante o século XIX, num momento em que predominava uma concepção de ciência ancorada nas noções de fato, observação e experimentação, provenientes da Biologia e da Física. O distanciamento da experiência e da vivência pessoal – por conseguinte, do que estava “perto” no tempo – é o que assegurava, segundo se acreditava, a objetividade e a imparcialidade do pesquisador. Tanto que se prescrevia o transcorrer de quatro ou cinco décadas, ao menos, para que “as paixões e os interesses” se apaziguassem, e as disputas se esmaecessem. Só com tal distanciamento, medido cronologicamente, eventos e personagens poderiam passar pelo crivo do historiador ou, dito de outra forma, serem objetos da verdadeira ciência histórica. O passado mais próximo era “perigoso” e foi, até bem recentemente, interditado ao historiador. Ele era um domínio das Ciências Sociais e do Jornalismo; não da História.

Assim, é compreensível que o saber histórico escolar tenha privilegiado os períodos mais distanciados no tempo, redutos por excelência da História chamada de Antiga, Medieval ou, no máximo, Moderna. Quer dizer, grande parte das gerações formadas até meados do século XX, passou pelos bancos escolares sem a oportunidade de estudar acontecimentos próximos à sua experiência histórica. Temos a certeza de que muitos leitores deste dossiê, quando estudantes, dificilmente ultrapassaram os eventos da Revolução Francesa e das duas grandes guerras, quando estudaram História “Geral”. No caso da História do Brasil chegava-se à Proclamação e aos governos da Primeira República, mas era praticamente impossível discutir a Revolução de 1930. A História “acabava” na primeira metade do século XX, na melhor das hipóteses.

O quadro atual mudou, e mudou de forma significativa. É exatamente isso que o presente dossiê atesta. Ele se abre com um artigo no qual se discute o próprio conceito de História do Tempo Presente: sua origem, particularidades e aspectos teórico-metodológicos que comporta. As autoras, Lucília de Almeida Neves e Marieta de Moraes Ferreira, chamam a atenção para a diversidade de temas, abordagem e documentação disponível para se estudar o Tempo Presente. Tocam, igualmente, na questão das relações entre História e ética, um tema candente neste momento em que o sombrio período da ditadura militar retorna à cena pública por intermédio da Comissão da Verdade, que tem por objetivo apurar os abusos cometidos pelo poder, como política de Estado. Torcemos para que o faça e o faça bem. Quer dizer, para que se empenhe realmente na localização e disponibilização de documentos, inclusive e com destaque os textuais, que permitam aos historiadores trabalharem, com rigor, com acontecimentos tão estratégicos e sensíveis para a História do Brasil mais recente.

Mas como se aprende e se ensina o tempo na escola? Uma instituição que tem uma tradição de partir do que é mais próximo e familiar à criança, para, em seguida, “recuar” no tempo. Ou seja, na escola, o Tempo Presente pode e deve ter lugar muito especial. A questão, aparentemente banal, ganha toda sua complexidade na trajetória de Adriana que, como milhares de outros alunos do ensino fundamental, tiveram de elaborar linhas do tempo em suas tarefas escolares. As dificuldades de dar conta do exercício proposto é o mote para Sônia Miranda refletir, com argúcia e requinte, sobre o processo de aprendizagem das múltiplas dimensões da temporalidade. Questão que ela também discute, como um brinde aos leitores, ao examinar seis coleções aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2011.

Aliás, os livros didáticos estão no centro das preocupações do artigo seguinte, mas sob outro enfoque, tão interessante como original. Marcelo Magalhães e Rebeca Gontijo nele analisam duas publicações da primeira década republicana no Brasil. Um período marcado por crises e lutas políticas, no qual se investiu muito na instituição de heróis e de um calendário cívico que substituísse os propagados pelo Império. O esforço para contrapor uma nova narrativa da História do Brasil, que combatesse uma velha narrativa, monárquica e católica, implicou um processo de seleção, ordenação e imposição de sentidos ao passado recente. Nesse sentido, era fundamental apresentar aos leitores uma jovem República, símbolo do progresso e ungida de legitimidade e positividade, que consagrava novos heróis e novas festas cívicas. Por conseguinte, uma narrativa que precisava se voltar para esse passado próximo, sem o qual a República não conseguiria falar de suas origens e história, como os autores procuram demonstrar.

Ações e propostas pedagógicas não se circunscrevem aos muros da escola, como fica explícito no artigo consagrado aos museus de História, de autoria de Cecília Helena de Salles Oliveira. A origem dessas instituições, suas trajetórias institucionais e as complexas funções que desempenham no campo da cultura são abordadas a partir do exemplo do Museu Paulista, instituição que recebe grande e variado número de visitantes. Os desafios enfrentados pela instituição, desde a preservação e aquisição de acervos, passando pelo processo de patrimonialização, disponibilização e produção de conhecimento, evidenciam as tensões que atravessam um espaço que tem por finalidade precípua tornar “vários passados concretos”, por meio de diferentes suportes. Contudo, essa narrativa nada tem de inocente, uma vez que se articula a leituras historiográficas e interesses políticos, demandando, portanto, permanente autoanálise.

A força das conjunturas políticas nas experiências pedagógicas é evidenciada no artigo que trata do impacto do processo de democratização em Portugal, depois de décadas de um regime político marcado pela falta de liberdade. O historiador português Joaquim Pintassilgo, ele mesmo ator e testemunha dessa densa experiência, reflete, de forma exemplar, sobre os vínculos entre política, história, tempo presente e saber escolar. Como revelam os pesquisadores que se dedicaram ao tema e são retomados no artigo, seria simplista supor que ocorreu uma mera coincidência entre o calendário político e o pedagógico. É exatamente a grande complexidade existente nessas relações, que o cuidadoso acompanhamento das propostas dos manuais didáticos de finais dos anos 1960, publicados num ambiente ainda marcado pelo controle e a censura, e os que os vieram à luz após a Revolução dos Cravos, já nos anos 1970, vai revelando quando analisados.

Fecha o dossiê o artigo de Durval de Albuquerque a respeito do escritor e professor português Antonio Corrêa d’Oliveira. Ele tem por objetivo nos alertar sobre a pluralidade de formas de aprender e ensinar História, que não estão restritas à educação formal recebida nos bancos escolares. O autor se volta para as pedagogias em circulação no campo social, que compõem formas de lidar com o tempo e de entender o passado. Dessa forma, exemplifica tal dinâmica, com grande sensibilidade, a partir da trajetória e da produção, poética e didática, desse intelectual da educação português.

Cabe destacar, ainda, a entrevista concedida por Holien Gonçalves Bezerra às organizadoras deste dossiê. Holien integrou a equipe inicial do PNLD, responsável pela definição das linhas mestras que orientaram a implantação e o desenvolvimento das primeiras avaliações realizadas, decisivas para as correções de rumos e aperfeiçoamento de procedimentos do PNLD, nas décadas seguintes. Trata-se de um testemunho precioso, que permite acompanhar os desafios e realizações do Programa e que se conecta, de múltiplas formas, às contribuições de vários artigos do dossiê. Por tal razão, as entrevistadoras, a revista e a Anpuh agradecem muito ao professor Holien, chamando a atenção para a riqueza do documento produzido por meio da metodologia de História Oral. Uma metodologia que tem tudo e mais alguma coisa a ver com a História do Tempo Presente.

Acreditamos, assim, que o leitor tem em mãos um conjunto rico e diversificado de reflexões a respeito do Tempo Presente que, esperamos, possa contribuir para sua reflexão historiográfica e sua prática em sala de aula.

<strong>Ângela Maria de Castro Gomes</strong> – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: <a href=”mailto:[email protected]”>[email protected]</a>.

<strong>Tania Regina de Luca</strong> – Universidade Estadual Paulista (Unesp). E-mail: <a href=”mailto:[email protected]”>[email protected]</a>.

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