O leão e a joia | Wole Soynka

Manhã, Meio-Dia e Noite: no tríplice emaranhar desses tempos cênicos, fia precisa e preciosa suas teias o triângulo amoroso da peça teatral O Leão e a Joia. É de obra do nigeriano Wole Soyinka que se está a falar, autor Prêmio Nobel de Literatura em 1986 – o primeiro africano negro a receber a premiação -, cuja peça, escrita lá em fins dos anos 50, somente cerca de outro meio século depois, em 2012, ouviu ecoar sua sonoridade iorubá em terras brasileiras. Assim, traduzida e publicada no Brasil, eis que ao leitor do país, enfim, confere-se a chance de ser “plateia” nas páginas teatrais do texto – já tendo, este, posto um primeiro pé em palco baiano, com a leitura dramática pela Companhia de Teatro Abdias do Nascimento, no final do mesmo ano desta sua primeira edição em língua portuguesa. Soyinka também esteve pessoalmente em Salvador, em novembro de 2012, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, por ocasião da divulgação do livro e a convite da Academia de Letras da Bahia, para palestra dentro do calendário comemorativo da data.

Nascido em 13 de julho de 1934 em Abeokuta, oeste da Nigéria, o autor, após concluir sua preparação universitária em Ibadan, transitou constantemente por território inglês, estudando e lecionando, onde também deu início ao seu trabalho como dramaturgo. Entre teatro, romance e poesia, publicou mais de 20 obras, algumas delas proibidas, por diversos períodos, de circularem em seu país natal. Isso porque Wole Soyinka nunca emudeceu a voz contra as ditaduras militares na Nigéria. Foi prisioneiro político entre os anos de 1967 e 1969, durante a guerra civil, acusado de conspirar com os rebeldes de Biafra. Em 1994, pouco depois de ser nomeado, pela UNESCO, embaixador da boa vontade para a promoção da cultura africana, direitos humanos e liberdade de expressão, teve de se refugiar – devido à nova ditadura militar nigeriana – no Benin, indo, em seguida, para os Estados Unidos – onde reside quase que ininterruptamente desde então.

Por volta da década de 1950, as literaturas africanas ganhavam impulso no sopro recém-nascido dos movimentos de independência, embalados em territórios diversos do continente. Coube a ela, a literatura, auxiliar no (re) encontro das identidades nacionais, conferindo grito, na sequência, ao descontentamento daqueles ideais que não se realizaram após a independência, mas que deram lugar à repressão pelos novos governos que assumiram o poder e (neo) colonizaram, por assim resumir, as ex-colônias. A Nigéria tornou-se independente do governo britânico em 1960 e, portanto, Soyinka insere-se na geração de intelectuais e escritores africanos que vivenciaram o pré e o pós-independência, ajudando a compreender este sujeito africano contemporâneo que ora se articula, resistente à colonização e híbrido em identidade, pois que resultado da conjuntura entre as tradições africanas e a formação europeia. Como frisa Hall (2005, p. 89), “As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintamente novos produzidos na era da modernidade tardia”.

E é no cruzar de culturas que também se localiza o triângulo de O Leão e a Joia. Em dois de seus lados, as tradições iorubás – o “leão” e a “joia” -, nas personagens de Baroka – o bale, o ancião chefe da aldeia de Ilujinle, no país Iorubá – e da jovem aldeã Sidi. Entre eles, uma terceira linha concorrente, com traço-querer de modernizadora, representada pelo professor primário Lakunle, incorporador dos costumes europeus e avesso às tradições da aldeia.

No primeiro ato da peça, intitulado Manhã, fia-se o primeiro encontro do dia, quando, carregando um balde d’água sobre a cabeça, Sidi é abordada por Lakunle, que oferece ajuda para transportar a carga. O professor, adorador confesso dos costumes ocidentais e crendo-se, assim, por moderno, afirma à jovem não ser “coisa de mulher” (p. 20) carregar peso sobre a cabeça, pois que faria mal à espinha, encurtaria seu pescoço, prejudicando também sua beleza. Logo depois, observando com espanto as vestes de Sidi, por quem é apaixonado, aponta que ela não deveria andar com os ombros descobertos, para não ser “mal falada”, devendo, melhor, recorrer à outra veste típica da aldeia, mais “decente”: “Você poderia usar uma túnica como é usada pela maioria das mulheres modestas. Mas, não… você tem de andar quase nua pelas ruas. Isso não a deixa preocupada…? […]” (p.21).

O professor Lakunle, assim, conquanto intitulasse a si mesmo como o mais evoluído daquela comunidade, à frente de seu tempo, não dá vez, dentro das “benesses” da modernidade, à inserção igualitária do gênero, mantendo a mulher na condição de subordinada, subalterna. Ao ser ridicularizado por Sidi por seus modos europeus, Lakunle aponta-lhe o que considera a inveja do “sexo fraco” (p. 23), que, sendo mulher, teria, para ele, um “cérebro menor” (p. 23) e, portanto, incapaz de rapidamente compreender as concepções avançadas de mundo as quais ele acredita dominar. Sua ideia de “modernizar” a aldeia inclui, por exemplo, a aquisição de máquinas de pilar mandioca para as mulheres, para que elas não mais tenham de batê-la a mão, ou a permissão para que a mulher se sente à mesa junto do marido, ao mesmo tempo, e não tenha de “comer os restos do meu prato” (p. 30), já que “As crianças é que vão!…” (p. 30). Esse seu esboço de “mulher moderna”, de “gente civilizada” (p. 30) é arrematado por saltos altos, batom vermelho e cabelos alisados – na contramão, pois, da beleza natural, pés descalços e madeixas crespas das mulheres iorubás de sua aldeia. Visualizava-as adornando com viço feminino a presença já destacada do marido, quais os casais de Lagos – a antiga capital nigeriana – que ele havia visto. Macêdo (2011, p.34) ressalta as denominadas “[…] ‘promessas da modernidade’ que, embora parcialmente realizadas, efetivamente nunca incluíram as mulheres […]”.

Com o retorno do “homem do mundo exterior” (p. 33) à aldeia – um estrangeiro que, tempo atrás, estivera entre os moradores, fotografando-os – Lakunle defronta-se explicitamente, pela primeira vez, com a dupla condição que o coabita – a de ser tradicional e moderno. Tendo o fotógrafo viajante regressado à Ilujinle, com o resultado de seu trabalho publicado em uma revista, dá-se ampla valorização da beleza de Sidi, cujos retratos são estampa principal das páginas, mais elogiados mesmo que os do bale Baroka. A jovem, envaidecida e agora deveras convencida de sua beleza, propõe, por comemoração entre os aldeãos, que dancem, em espécie de interpretação teatral, A Dança do Viajante Perdido (p. 38), para celebrarem o retorno do estrangeiro que, por sugestão de Sidi, deveria ser interpretado por Lakunle. Este de imediato se recusa – “Não, não, eu não quero. Não gosto dessas bobagens […]” (p. 40) -, ao que a jovem aldeã rebate com a própria idolatria do professor pela cultura europeia: “Você se veste que nem ele, é parecido com ele, sabe falar a língua dele, pensa do mesmo jeito, […]… Você vai representar ele!…” (p. 40).

O ato se encerra com a chegada do chefe Baroka que, presenciando o final da dança, finda a Manhã pensativo, admirando Sidi nas páginas da revista que trazia sob o abadá, cogitando a hipótese de uma nova esposa para seu harém.

Ao Meio-Dia, a trama retoma o tear novamente por Sidi e Lakunle, que, desta vez, tendo o consentimento da jovem, auxilia-a com o carregamento de um emaranhado de gravetos. Sidi segue à frente, altiva, tateando, admirada, seus retratos na revista trazida pelo fotógrafo. O professor, qual eunuco, segue em seu rastro, quando são, enfim, interrompidos por Sadiku, a primeira esposa do bale.

É por Sidi que Sadiku procurava. Vinha trazer-lhe um recado de Baroka, o “velho Leão do mato”: um pedido de casamento do chefe iorubá à jovem que, depois das fotografias famosas na aldeia, coroara a si mesma, agora, a própria “Joia de Ilujinle”. A negativa debochada da bela ao pedido toma de surpresa a velha esposa. Sidi julga seu valor acima do de Baroka depois da publicação das fotos, e, além disso, recusa-se a ser mera propriedade do chefe aldeão – como o são as outras esposas dele –, servindo-lhe apenas para aumentar seu prestígio e masculinidade à custa de sua beleza de moça e fama de “joia”: “[…] Ele quer mesmo é que seu seja propriedade dele […] quer erguer sua masculinidade […] aumentar sua fama como sendo o único homem que possui a Joia de Ilujinle!…” (p. 57).

Sidi se utiliza de elementos e reivindicações “modernas” – aos quais, antes, mostrava rejeição – para alicerçar sua recusa à proposta matrimonial: não quer se submissa aos ditames masculinos; reconhece, pela primeira vez, ter aprendido algo de “avançado” com o “homem da escola” (p. 58), o professor Lakunle; sua beleza adentrou o “mundo exterior”, pelas lentes do estrangeiro, fato que, então, ela julga creditar-lhe nova e merecida posição na aldeia, distinta e superior dos demais aldeãos. A jovem, assim, requer espaço de poder em território sagrado por hierarquia masculina.

Já o professor, por ora resvala em seu desprezo pelas regalias que o poderio tradicional confere ao bale, para, em seguida, recompondo-se cambaleante, reafirmar sua defesa pelo progresso da vila. Possivelmente, ele desfrutaria com prazer do papel de chefe da aldeia, se assim tivesse a chance. Suas críticas a Baroka são motivadas, talvez, por sua impossibilidade de ocupar o lugar do ancião no domínio de Ilujinle, e sua defesa pelo progresso seria a maneira mais rápida, assim, de ver esfacelar seu poder: “Besta voluptuosa! Ele adora demais a vida que leva […]. As suas concubinas […]. Ah, algumas vezes eu gostaria de ter a sua vida […]. Não! Eu não o invejo! […] sou o único que deseja o progresso […]” (p. 66).

Baroka, por sua vez, sente-se desconcertado com a inimaginável recusa de Sidi em integrar o seu harém – privilégio que pensava ser sonhado por todas as mulheres da aldeia. Antes de tudo, o desdém da jovem atinge diretamente a sua virilidade, um afronte à fama da sua linhagem descendente de “leões”. Numa sociedade androcêntrica, “A virilidade, […] enquanto […] questão de honra […], mantém-se indissociável […] da virilidade física, através, sobretudo, das provas de potência sexual […] que são esperadas de um homem que seja realmente um homem (BOURDIER, 2002).

Na sequência de todo o segundo ato, entram em conflito o velho e o novo, o tradicional e o moderno, o masculino e o feminino. Como o Sol que, ao meio-dia, atinge seu ponto mais alto no céu, em Meio-Dia há o ápice entre esses confrontos. Pela Manhã, Sidi tinha sua consciência adormecida, o professor ansiava despertar ideias modernas no coração da aldeia e o Bale Baruka repousava tranquilamente seu poderio sobre o véu da tradição. Mas, então, Sidi questiona seu lugar de mulher; Lakunle estremece entre os prazeres da vida tradicional que leva o bale versus o desejo que nutre pelo progresso; o chefe, percebendo que apenas ser o ocupante da mais alta posição na aldeia não bastou para integrar nova escolhida entre as suas esposas, terá de repensar sua estratégia de conquista, utilizando-se de toda a sua astúcia e artimanhas maturadas pelo tempo, da sua “cabeça algodoada pela idade” (p. 108). O ato tem suas cortinas encerradas com a confissão de Baroka, a Sadiku, sobre sua suposta impotência sexual, motivo alegado para desejar Sidi, pois esperava “[…] Que com uma virgem jovem e ardente, minha força diminuída ressurgiria para salvar meu orgulho” (p. 71). Lamenta-se, assim, derrotado, e será “[…] alvo da troça dos jovens que não sofrem desse mal” (p. 72) – e, dessa sua fraqueza, então, pede ele que Sadiku mantenha segredo.

Sadiku adentra a Noite – último ato da peça – eufórica, trazendo à rua da aldeia uma estatueta do bale, esculpida em madeira e com a figura nua do chefe. Explode em gargalhadas de zombaria, festejando a “estropiada” do “grande e poderoso leão” (p. 77). Sidi, que acompanhava a cena sem nada entender, é convidada pela esposa mais antiga de Baroka a se juntar à comemoração: é a impotência sexual do ancião que ela comemora, e considera Sidi parte fundamental da derrocada do velho.

Entusiasmadas, então, com a revelação da condição de Baroka, decidem, juntas, fazerem “troça desse demônio” (p. 83), cabendo à Sidi a missão de ir ao palácio provocar o chefe, sob o pretexto de ter voltado atrás quanto à recusa ao pedido de casamento. Lakunle tenta convencer a jovem aldeã a não ir, receoso de que o plano falhe e o bale, descoberta a brincadeira, acabe por prender ou matar Sidi. Ela, no entanto, segue o que fora combinado com Sadiku.

Porém, ao encontrar Baroka, a jovem Sidi – ansiando dar-lhe “nó” em emaranhado de chacotas -, acaba, por fim, ao adentrar a “teia de refúgio” do ancião – seu quarto no palácio -, caindo em outras duas teias do ágil tecedor de armadilhas: a da captura e a da cópula. A astúcia de Baroka, neste momento, faz lembrar a de Ananse, o “Homem Aranha” da mitologia africana que, desejando comprar as histórias de Nyame, o “Deus do Céu”, usa de esperteza e teias de prata para capturar, por “moeda de troca”, Osebo – o leopardo de dentes terríveis –, Mmboro – os marimbondos que picam como fogo – e Moatia – a fada que nenhum homem viu (AMADOR DE DEUS, 2008, p. 13).

Baroka trama a “emboscada” com os próprios fios da vaidade reluzente de Sidi. Percebendo do quanto de orgulho encheu-se a aldeã após ter seus retratos publicados pelo estrangeiro, o bale, aos poucos, vai insinuando sua pretensa intenção de tornar a face da bela a própria estampa dos selos a serem confeccionados na aldeia, o “imposto sobre o hábito de falar com papel” (p. 110). O ancião segue, sorrateiro, a amarrá-la em elogios, em diálogos a provocar deslumbre, incitando-lhe a ambição: “[…] Você consegue imaginar, Sidi? Dezenas de milhares destas fotografias delicadas cada uma difundindo a lenda de Sidi […]” (p. 112); “[…] Espero que você não ache uma carga pesada demais, ter de carregar o correio do país com toda a sua beleza e elegância” (p. 113). Ao mesmo tempo, Baroka segue enfatizando o quanto considera sábia a jovem Sidi, ao contrário das outras moças de “mentalidade leve como pluma” (p. 110), enquanto frisa ser a futura produção de selos uma prova de que o bale também é a favor do progresso na aldeia. A jovem, por fim, cede à sedução do ancião, cuja virilidade, na verdade, nunca faltara: fora a isca por ele mesmo jogada para atrair, a sua cama, a curiosidade zombeteira da moça.

“Sidi, você ainda é donzela ou não é mais?” (p. 126), indaga-lhe ansiosa a esposa mais antiga do bale, quando a moça retorna do encontro com o ancião. Não mais – era o que sinalizava um sacudir violento de sua cabeça. De Manhã, a bela aldeã era a recém-extraída pedra bruta de toda uma Ilunjile, de formato ainda indefinido, oscilando entre cortes e polimentos da tradição e da modernidade; à Noite, porém, Sidi já pedia a Sadiku, “[…] mãe das noivas, sua benção” (p. 132): seria, por fim, a mais nova joia de Baroka, a ser lapidada ao gosto tradicional da poderosa linhagem dos Leões.

De diálogos afiados no humor e no vocabulário, cabem aos ritmos, gesticulações e danças africanas a afinação final da peça. E mesmo que aqui se tenha revelado o desenlace do triângulo de Ilujinle, é somente no fiar de toda a leitura que se dá a conferir o sabor do legítimo tempero iorubá, nesta trama requintada de Wole Soyinka.

Referências

AMADOR DE DEUS, Zélia. Os herdeiros de Ananse: movimento negro, ações afirmativas, cotas para negros na universidade. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MACÊDO, Márcia dos Santos. Feminismo e pós-modernidade: como discutir essa relação? In: BONNETI, Alinne e LIMA E SOUZA, Ângela Maria Freire de (Org.). Gêneros, mulheres e feminismos. Salvador: EDUFBA: NEIM, 2011.


Resenhista

Gihane Scaravonatti – Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Tocantins.


Referências desta Resenha

SOYNKA, Wole. O leão e a joia. Trad. Willian Lagos. Prefácio Ubiratan Castro de Araújo. São Paulo: Geração Editorial, 2012. Resenha de: SCARAVONATTI, Gihane. Manhã, meio-dia e noite: o (des) emaranhar de um triângulo amoroso tecido por fios iorubás. Revista Mosaico. Goiânia, v. 6, n. 1, p. 131-134, jan./jul. 2013. Acessar publicação original [DR]

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