O maior revolucionário das Américas: a vida épica de Toussaint Louverture | Sudhir Hazareesingh

A publicação do livro de Sudhir Hazareesingh diminui em alto nível a escassez de bibliografia disponível no Brasil acerca dos acontecimentos que eclodiram em agosto de 1791, conhecidos por Revolução Haitiana, que levou à abolição da escravidão em 1793 naquela lucrativa colônia francesa, fundando novos direitos para seus habitantes, e da qual resultou sua independência da França, em janeiro de 1804. Apesar das traduções para o português de livros como os de C. R. L. James e de Michael-Rolph Trouillot, este mais recente, e da publicação do de Marco Morel,1 ainda há pouca coisa sobre suas repercussões por aqui, mais especificamente, sobre como escravizados, libertos, senhores e autoridades policiais reagiram ao evento, revelando, a depender do protagonista, rebeldia, ameaça e medo de abalos à escravidão.2

O maior revolucionário das Américas revela os meandros da vida do personagem-chave daquele grande movimento atlântico. Do pouco material traduzido, um artigo de Ada Ferrer nos ajuda a compreender os ecos revolucionários no Caribe, em ilhotas ainda colonizadas, norteando esperanças de escravizados e receios e pavores senhoriais.3

Hazareesingh inicia a obra mostrando onde e como pesquisou os dados para formular suas questões, hipóteses e interpretações: em que termos a Revolução Haitiana foi o estopim para transformações mais agudas no Atlântico escravista? Quais os sentidos que as pessoas deram ao desfecho final da escravidão no Haiti?

O livro busca responder que não é possível compreender esse evento sem um conhecimento das vicissitudes da trajetória de seu líder maior, Toussaint Louverture, por mais conhecido e tornado figura emblemática de várias lutas políticas. Hazareesingh mostra a necessária perspectiva transatlântica no tratamento do biografado. O autor estuda o caráter global do evento, as implicações coloniais e opções comerciais e políticas, além da estrutura militar francesa, o questionamento das hierarquias sociais e de suas justificativas por parte de Toussaint, suas interpretações de aspectos do Iluminismo, do cristianismo e dos usos da natureza. Ao longo da narrativa vão se conectando personagens das diversas camadas sociais, ora mais, ora menos, ora não ligados de forma alguma ao governo francês.

As evidências foram coligidas pelo autor em arquivos tão atlânticos quanto o evento que mobiliza pessoas a conferirem sentido mítico ao biografado, fato por ele elucidado ao final do livro. Hazareesingh foi atrás de documentos organizados em acervos no Haiti e na França, como também cotejou outros de difícil localização. Toda a obra é acompanhada por mapas que guiam o leitor por territórios fundamentais para a compreensão dos caminhos percorridos por Toussaint e outros agentes a ele relacionados. Uma das virtudes do livro é permitir ao leitor a visualização do texto na iconografia selecionada, criando um rico diálogo entre escrita e imagem.

O livro está organizado em quatro partes densas, com fatos minuciosamente articulados uns aos outros, com personagens humanizados em suas muitas contradições.

A primeira parte é dedicada à formação familiar, educacional e militar de Toussaint. O autor explica a ausência de informações sobre Toussaint pré-revolucionário, antes de ele entrar no registro burocrático do Estado francês, fenômeno típico dos arquivos coloniais. Isso inclui seu nascimento, calculado entre 1736 e 1740. O autor não despreza as fontes orais, que trazem dados sobre as plantations de Saint-Domingue, o que nos auxilia no entendimento das condições de vida de Toussaint quando ainda escravizado. Em um universo em que 60% dos escravizados vinham da região angola-congolesa, Toussaint havia nascido de pai africano, de origem aladá. O pai foi capturado na África e separado da primeira esposa e da filha, que depois foram reencontrados por Toussaint em Saint-Domingue. Na ilha, a segunda esposa do pai foi uma crioula, de quem nasceu Toussaint. Assim, este foi criado com referenciais africanos e dominguenses, desde o conhecimento de ervas medicinais quanto de línguas e de práticas vodu. Nasceu num engenho localizado em Bréda, norte da ilha, onde viveu até os primeiros momentos do levante, dos quais participou. A propriedade era de um oficial da marinha francesa, absenteísta, com acesso a algumas fazendas do mesmo perfil ao se casar com uma ricaça local, que as havia herdado. Ao invés da lavoura, Toussaint teria trabalhado nos cuidados com os animais, o que explicaria sua habilidade na montaria, permitindo circular pelo território haitiano e conhecê-lo em detalhes – teria inclusive aprendido a prever tempestades e terremotos. Esse ímpeto de Toussaint também emergia em suas denúncias da injustiça de livres sobre escravizados.

O envolvimento com os jesuítas e os capuchinhos deu a Toussaint excelência em letramento, e acesso às ideias de liberdade e outras derivadas do Iluminismo francês, além de valores morais católicos como fraternidade e compaixão. Assim, ele desenvolvia a perspectiva de que todos os escravizados eram parte de um mesmo universo harmônico, opositor à exploração colonial. Seu contato com François Makandal, líder de revoltas escravas e mestre do vodu, enforcado diante dos seus olhos e dos de diversos escravizados, alimentava o sentimento de que era possível enfrentar os brancos, fossem senhores ou seus prepostos, além de funcionários coloniais a serviço da escravidão. Ajudava a curar escravizados nas plantations, por meio de seus conhecimentos de ervas medicinais afro-caribenhas, aprendidas em sua rede familiar, tanto a africana quanto a local, envolvendo padrinhos, esposa e filhos.

Suas habilidades o levaram a ser cocheiro do advogado francês e administrador da fazenda, sendo seu conselheiro para assuntos diversos, o que lhe teria valido a alforria. Só muito recentemente se soube que Toussaint fora emancipado no máximo em 1776, em troca da ajuda no apaziguamento das relações entre Bréda e os escravizados fujões, retribuindo ao advogado com proteção desde o início da Revolução. Essas qualidades explicam suas relações tanto com escravizados das plantações e serviços mais pesados quanto com a elite dos escravizados – espécie de fraternidade ampliada para além de Bréda, fundamental para o entendimento de sua popularidade na colossal rebelião de agosto de 1791.

A segunda parte do livro versa sobre as condições para que Toussaint fosse alçado à categoria de líder político, reforçando o autor com diversos exemplos suas estratégias. Toussaint juntou-se por suas habilidades curativas aos batalhões de escravizados rebeldes, em 1791, auxiliando os comandantes revolucionários no massacre de brancos, logo se tornando ele mesmo o principal líder do movimento, coordenando, ao longos dos anos, de quatro até vinte mil escravizados. Aliou habilidades militares e sua liderança carismática ao entendimento do cenário político. Conhecia espanhóis que teriam ajudado suas tropas em 1791, daí ter se juntado a eles na luta contra forças francesas e inglesas. Em seguida, decidiu aliar-se aos franceses para expulsar as tropas inglesas e espanholas. Assim, conseguiu ser nomeado Governador General Vitalício pelas autoridades francesas, já republicanas, em 1797, tornando-se autoridade máxima local. Em imponente cerimônia, já havia sido alçado a vice-governador pelo então governador.

A estatura de Toussaint aumentou diante das tropas e autoridades políticas locais e internacionais quando conseguiu desbaratar um golpe contra o governador, perpetrado por soldados mestiços – parte deles já por ele derrotada durante os combates de 1791, aliás. Tornara-se, com salvas de tiros de canhões, o guardião da legitimidade francesa em Saint-Domingue. Assim, passou a se comportar como estadista, além de soldado e pensador político (chegava a escrever duzentas cartas diariamente, para autoridades locais, caribenhas e na França!), demonstrando perspicácia no uso de línguas e linguagens de acordo com os interlocutores e as ocasiões. Toussaint tinha a missão de administrar o medo que havia na população negra sobre o retorno do regime de escravidão, enfrentando constantes boatos lançados por mercenários infiltrados em nome de grupos de interesses ligados ora a franceses, ora a ingleses.

Depois de expulsar os espanhóis de Santo Domingo, a outra parte da ilha de Hispaniola que controlavam, em 1801 outorgou uma nova Constituição, abolindo de vez a escravidão, dando aos emancipados o direito de propriedade. O catolicismo passou a ser a religião oficial, em nome de valores morais anti-individualistas, e da crença na harmonia internacional das populações negras em oposição à ganância material. Vetou qualquer tipo de distinção étnico-racial, declarada antes pelo ato de agosto de 1793 da paradoxal figura de Léger-Félicité Sonthonax, que entretinha uma relação de morde e assopra com Toussaint e veio a ser governador-geral de Saint-Domingue, em 1796.

Sob quais critérios Toussaint geriu o território de Hispaniola, política e economicamente, além de suas relações com autoridades francesas e britânicas, é o tema da terceira parte do livro. O autor demonstra como é fundamental compreender em que condições e termos Toussaint guiou Saint-Domingue e Santo Domingo a sair do colapso em que se encontravam, desde 1790, com as plantações destruídas, centenas de trabalhadores mortos nos conflitos, o sistema de irrigação paralisado e as fábricas fechadas. De colônia mais produtiva das Américas passou a ser a mais deficitária aos cofres franceses. Era preciso reforçar acordos comerciais com outros países, como os Estados Unidos, que passariam a fornecer madeira, farinha, pescados, carne bovina e cavalos, desafiando as tropas britânicas, estrategicamente estacionadas na vizinha Jamaica. Esse território foi palco de infelizes táticas diplomáticas de Toussaint com o governo colonial local, tendo navios aprisionados com suprimentos militares vendidos, em retaliação a seu suposto apoio à abolição da escravidão jamaicana.

Em 1799, Toussaint mantinha aliados políticos estratégicos em Paris, levando suas demandas ao alto comando revolucionário francês, sob o argumento de que era central para a metrópole que sua principal colônia não entrasse em colapso. Seu amigo pessoal, Philippe-Rose Roume, um republicano profundo conhecedor do cenário político caribenho, era o principal elo de ligação com a metrópole. A ideia de Toussaint era obter da França margem elástica de manobra sobre tributos, produção industrial e agrícola, e relações comerciais com outros países, tentando inclusive superar ressentimentos com diplomatas e militares espanhóis e britânicos. Isso, contudo, estava entrelaçado nas complexas relações entre os governos francês, britânico e estadunidense, envolvendo um jogo de mútuas desconfianças diplomáticas.

Nesse cenário, Toussaint fora informado em detalhes por Roume do golpe bem-sucedido de Napoleão Bonaparte, que mais tarde arquitetaria uma emboscada para prender Toussaint, em 1802. Antes disso, em 1800, Napoleão buscara informações e aproximações com o líder de Saint-Domingue, que havia sufocado importante revolta de mestiços na parte sul da ilha, sob liderança de André Rigaud – que ironicamente ficaria na mesma prisão que o líder negro, meses depois. A presença francesa na ilha, com claro papel de vigilância, incomodava Toussaint, e desafiava sua postura acerca de como deveria administrar o território. Casos de reincidência na escravização de negros deixavam-no fora do sério, e incitavam cartas para Roume, que conseguiu autorizá-lo a prender quaisquer pessoas suspeitas ou de fato envolvidas nisso e no comércio marítimo de escravizados.

No final, a vontade de tomar Santo Domingo para barrar de vez tais situações o fez romper com aquele seu antigo amigo e aliado diplomático, que argumentara sobre a necessidade de evitar problemas com as autoridades espanholas que governavam aquela parte da ilha, posto que andavam em negociações sobre trocá-la pela Louisiana. Toussaint trancafiou Roume, monitorando toda sua vida, o que o adoeceu, vindo a expulsá-lo do território em poucos meses. Roume optou por se radicar nos Estados Unidos. Na sequência, Toussaint pôs em cena o que veio a ser a vitoriosa invasão ao lado espanhol, com requintes de humilhação política ao governador e enviando concisa comunicação a Napoleão, informado que toda a ilha de Hispaniola estava agora sob controle republicano. A situação promoveu a fuga de senhores, seus prepostos e escravizados para Cuba. Toussaint conseguiu impedir parte disso, ao lembrar aos espanhóis que os últimos eram cidadãos em Santo Domingo, logo ilegalmente escravizados, dado que ele havia decretado a emancipação em toda Hispaniola, tratando logo de convocar uma Assembleia Constituinte.

O autor se dedica a mostrar em detalhe, na quarta parte, em que termos Toussaint estabeleceu a nova organização política de Hispaniola, agora também monetariamente unificada, e em que sentido constituiu um corpo de leis e ações econômicas para dinamizar a depauperada vida material local, agilizando sistemas de comunicação, de fluxos de pessoas, informações e objetos, estruturando a agricultura, exportação de commodities e importação de bens industrializados. O próprio líder supervisionava os diferentes locais em que tais melhorias estavam ocorrendo, bem como as recentemente redimensionadas contas públicas, através da nomeação de tesoureiros de sua confiança. O mesmo pode-se dizer do sistema judiciário, para, dentre outras coisas, agir de modo mais eficaz contra fraudes de navios estrangeiros que sonegavam impostos pela falta da adequada conferência de suas mercadorias.

Dessas ações, derivou cenário de nova tessitura social. Nos termos do autor, uma “burguesia negra começara a emergir, no setor comercial, na administração e nos níveis mais altos do Exército; seus membros às vezes ostentavam riqueza, mas havia neles também uma polidez e uma elegância de maneiras que eram notáveis” (p. 348). Tais estruturas, agora institucionalizadas segundo racionalidades burocráticas, umas renovadas, outras novas, e com pessoas mais capacitadas de nelas trabalhar, seriam fundamentais para lidar com coletividades insatisfeitas da ilha, e o refluxo de senhores radicados nos Estados Unidos que ambicionavam recuperar a posse de suas fazendas. Todas as instituições da administração estatal planejadas e instauradas por Toussaint realizaram auditorias daquilo que estava pendente, se era justo e como afetaria a nova organização de poder dentro e fora da ilha.

O livro mostra que quanto melhor e mais rápido fosse realizado o controle do que estivesse ocorrendo nos setores estratégicos, mais seguro Toussaint estaria para lidar com tentativas iminentes de invasão por tropas estrangeiras. Revisou todas as linhas de defesa militar do território, enquanto enviava representantes para acalmar os ânimos de Napoleão. Sabia que lobistas profissionais dos negócios coloniais trabalhavam dia e noite junto ao líder francês para retomar seus ganhos atlânticos, momentaneamente interrompidos. Além disso, era preciso conter ataques britânicos aos navios mercantes destinados à ilha. Toussaint buscava a promoção da coesão social através de cerimônias religiosas, por meio de padres negros agora nomeados por ele, desagradando o alto clero francês, e obrigando os soldados a darem o exemplo de devoção frequentando os cultos. A paz social seria estratégica para que a produção de café, índigo, algodão e açúcar voltassem a ser o quanto antes os alicerces econômicos. Revitalizar as plantations era o foco, tanto na sua proposta de redimensionar as fazendas, como de combater o sequestro de moradores de cor por traficantes de escravos que os vendiam para fazendeiros em Charleston, Carolina do Sul, dentre outros locais nos Estados Unidos.

A derrocada de Toussaint, narra o autor, resultou da coincidência entre sua ida ao casamento do filho e a necessidade de ir pessoalmente desbaratar levantes rebeldes em fazendas de senhores franceses brancos, poucas semanas depois de Jacques Périès ter descrito para o governo francês o governo de Saint-Domingue como sendo cruel para os antigos fazendeiros. Toussaint foi apresentado como um tirano que privilegiava os negros emancipados em sua nova ordem social, revelando na distorcida imagem do narrador seus rancores e despertando os mesmos sentimentos em Paris. Ante a ousadia dos negros, que diziam ser proprietários de dois terços das terras de Saint-Domingue, encontravam-se brancos humilhados e atormentados, perseguidos e encarcerados. O relatório havia sido escrito com a mais fina prosa do racismo da época, com argumentos cientificistas sobre comportamentos morais segundo a suposta origem racial das pessoas, assim explicando as ofensas feitas à lei e à ordem. Tais informações foram galvanizando a má impressão que Napoleão já tinha de Toussaint e seus comandados.

O clima em Hispaniola também foi ficando pesado com boatos dos insurgentes sobre a participação de Toussaint na venda das pessoas derrotadas, rapidamente espalhados e colados nas mentes de funcionários que com ele lidavam. Havia meses que rebeldes anti-Toussaint alimentavam fugas individuais e coletivas de negros ao redor das fazendas, insuflando suas insatisfações contra a nova ordem. Considerável número de crioulos e africanos dessas regiões sentiam-se esquecidos por seu líder, avaliando terem sido usados para a tomada do poder. Moyse, jovem e aguerrido sobrinho de Toussaint, era o organizador dos levantes, combatendo os valores do tio e controlando com seus amigos militares as terras de melhor qualidade, levando vida de opulência material. Moyse, a quem Toussaint considerava como um filho, foi preso, julgado sem direito a defesa e executado, e, por opção de Toussaint, a ordem na região norte foi restaurada com ações violentas e de flagrante brutalidade, com o assassinato a facadas de rebeldes já rendidos, outros acorrentados uns aos outros e explodidos por balas de três canhões colocados a pouca distância.

O ambiente passou a ser de temor de traições em seu círculo mais próximo, levando Toussaint ao pessimismo quanto ao sucesso de negociações com autoridades britânicas na Jamaica, e dentro dos grupos militares e da alta cúpula da administração local. Publicou decretos contra “vagabundos e maus indivíduos” (p. 381), potenciais traidores das fazendas onde eram obrigados pelo regime de Toussint a trabalhar, irritados com as suas condições de trabalho e vida nas lavouras. Toussaint determinou, ainda, a realização de um censo para saber se todas as pessoas acima de doze anos de idade estavam trabalhando e onde, bem como onde moravam, chegando a emitir papéis de identidade a todos os cidadãos. Passou a perseguir sistematicamente pessoas ditas ociosas, insistindo na ameaça de severas punições, que iam de prisão e deportação a pena de morte, em casos de insubordinações e sedições. Especialmente nas fazendas, as fugas e rebeliões seriam severamente combatidas, com o rigoroso controle do ir e vir entre alojamentos e lavouras dos trabalhadores, que deveriam portar os documentos que os autorizavam a circular.

Outubro de 1801 marcou o início da ofensiva militar de Napoleão contra a Saint-Domingue de Toussaint, não lhe causando surpresa alguma a chegada de 25 navios de guerra à costa norte. Napoleão havia designado seu cunhado, Charles Victoire-Emmanuel Leclerc, como líder da ofensiva. Tratava-se de indivíduo sem experiência militar alguma fora da Europa, de perfil vaidoso, arrogante, racista. Precavido, Toussaint havia importado, desde 1801, sem parar, armamentos e vasta munição dos Estados Unidos, fazendo um provável acordo com autoridades na Jamaica, que não abalroaram os navios e nem pilharam as encomendas. Ao final daquele ano, havia ao menos 140 mil armas em seu exército devidamente treinado, embora desfalcado pelos mestiços, que foram liberados para trabalhar na reestruturação das plantations. A ordem era para que não se permitisse o desembarque das tropas napoleônicas, o que não deu certo, na prática. Toussaint tinha conhecimento de que Napoleão desejava retomar o controle da ilha, destituindo-o do cargo, eliminando completamente sua influência em todos os setores, além de exilar em diferentes lugares do domínio francês grupos de pessoas importantes na vida social local. Além disso, sabia ele que Napoleão almejava restaurar a escravidão em parte de Hispaniola. As sangrentas e vitoriosas batalhas por toda a ilha mostravam preparo de boa parte do exército de Toussaint, mas as baixas comprometiam a resistência e o enfrentamento aos franceses não se manteria no mesmo nível até o fim. Afinal, não havia como repor as perdas.

O autor explica que Toussaint não conseguia pensar em romper definitivamente com a França, pelo que entendia por fraternidade republicana. As consequências desse bloqueio ético-republicano lhe foram caras e fatais. Para ele, eram admitidos retrocessos localizados, como o que dava autonomia comercial à ilha, mas não completo e permanente em todos os níveis. Sua paciência era observada na maneira cordial com que tratava os soldados franceses aprisionados, transbordando para a devoção revolucionária dos soldados comandados por Toussaint, que vez por outra entoavam a Marselhesa a plenos pulmões. Essas características fizeram com que ele, ainda em 1801, iniciasse a costura de acordos de paz com Leclerc, propondo anistia e reintegração de todos os seus soldados e oficiais no exército francês.

Feito o acordo, vastamente entendido, na ilha e na França, como humilhação a Leclerc, Toussaint partiu, com alguns soldados, para viver em suas quatro fazendas de café. Leclerc não deixaria seu ressentimento e racismo calados, e armou uma emboscada para capturar Toussaint. A ação, feita com o consentimento de Napoleão, teria como pretexto que Toussaint estaria tramando uma conspiração contra os franceses. Nesse sentido, Leclerc falsificou e plantou uma carta em que Toussaint espalhava boatos contra os oficiais com quem havia trabalhado e agora serviam ao cunhado de Napoleão. Um general francês próximo a ambos, mas em conluio com Leclerc, pediu ajuda a Toussaint para combater bandoleiros que ameaçavam sua propriedade. Toussaint não negou ajuda, desde que o general o tratasse com honra quando de sua ida à fazenda. Lá chegando, seus homens prenderam o líder revolucionário e toda a sua família, soldados e empregados, saqueando todas as suas quatro fazendas, roubando seus bens sem a menor cerimônia – incluindo móveis, roupas, obras de arte, ouro –, e queimando seus livros. Levado de navio para a França, foi preso em um castelo em Brest, separado de familiares para sempre. Um mês depois, seria enviado à prisão de Fort de Joux, na região fria, longe do mar e montanhosa de Jura, algo pensado por Napoleão como fatal para Toussaint, que não resistiu nem um ano até morrer em 24 de agosto de 1802. Sofreu violências de todos os tipos, desde o isolamento, até o veto ao consumo de açúcar e o confisco de todos os seus objetos pessoais. Embora Napoleão tivesse insistido, não confessou crime algum aos seus emissários, posto julgar não os ter cometido.

Enquanto isso, Leclerc tinha que lidar com o avanço das tropas insurgentes contra os franceses, completamente despreparados e desorganizados para enfrentar tal situação. A refundação da escravidão na vizinha Guadalupe, então colônia francesa, somada à chegada da notícia da morte de Toussaint, sob as péssimas condições da prisão europeia, foram combustíveis para o avanço dos rebeldes. Os antigos generais e oficiais, além de soldados, outrora comandados por Toussaint, se revoltaram e abandonaram o exército francês, voltando para as forças insurgentes. A venda da Louisiana por Napoleão aos Estados Unidos, no ano seguinte, 1803, pôs fim ao seu sonho de formar um império ocidental, e o imperador mandou suas tropas evacuarem Hispaniola, o que facilitou a mobilização que o antigo e habilidoso general de Toussaint, Dessalines, havia conseguido de todas regiões da ilha em favor da independência total de Saint-Domingue em relação à França. E isso ocorreu em 1º de janeiro de 1804. Foi declarada, assim, a fundação de um novo Estado chamado Haiti, terminando com as execuções em massa promovidas por Rochambeau, sucessor do fracassado Leclerc. Num macabro final de festa, o último mandatário francês em Hispaniola ordenou que milhares de pessoas fossem executadas, por meios os mais cruéis, decapitadas, queimadas vivas ou afogadas.

Hazareesingh trata o personagem central como parte da complexa e multifacetada trama revolucionária afro-caribenha, levando em conta do início ao fim os paradoxos envolvendo batalhas sobre liberdade, escravização, independência, justiça e republicanismo. Vimos que o autor explica como o personagem já trazia a semente da contradição por ser um emancipado da escravidão (era escravo forro) e ter chegado à liderança política e militar da colônia com o devido reconhecimento da metrópole. Entende-se, assim, como os conflitos foram desestruturando os centros produtores de Hispaniola, ora do lado francês, ora espanhol, em termos de organização jurídica, econômica, tecnológica, afetando outros protagonistas internacionais – principalmente França, Estados Unidos, Cuba e Jamaica, privilegiados na narrativa do autor.

Esta é a biografia do líder da revolta de escravizados mais temerária e aterrorizante para as elites coloniais metropolitanas, exatamente por tê-las colocado em um nível de fragilidade jamais experimentado: vidas brancas ceifadas, derrotas militares acachapantes, perdas econômicas, vergonha transcontinental e, conforme apontam trabalhos recentemente reunidos por Federico Neiburg, referencial para futuras gerações de haitianos de todos os estratos sociais.4 É também mais um esforço para demonstrar a falsa dicotomia entre indivíduo e sociedade, em um estudo temático rico em reflexões sobre como entender a trajetória de alguém que veio de baixo e se tornou politicamente proeminente em seu tempo.


Notas

1 C. L. R. James, Os jacobinos negros: Toussaint L´Ouverture e a revolução de Santo Domingo, Rio de Janeiro: Boitempo, 2000; Michael-Rolph Trouillot, Silenciando o passado: poder e a produção da história, Curitiba: Huya Editorial, 2016; e Marco Morel, A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito, Jundiaí: Paco Editorial, 2017.

2 Por exemplo, Luiz R. B. Mott, “Arevolução dos negros do Haiti e o Brasil” in Escravidão, homossexualidade e demonologia (São Paulo: Ícone, 1988), pp. 11-18; Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, “Sedições, haitianismo e conexões no Brasil: outras margens do Atlântico negro”, Novos Estudos CEBRAP, n. 63 (2002), pp. 131-144 ; Flávio dos Santos Gomes, “Experiências transatlânticas e significados locais: ideias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil Escravista”, Tempo, v. 7, n. 13 (2002), pp. 209-246 .

3 Ada Ferrer, “A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana”, Almanack, n. 3 (2007), pp. 37-53. Outras duas traduções também ajudam a familiarizar o leitor no Brasil com as repercussões da Revolução Haitiana: Rebecca Scott e Jean M. Rosalie Hébrard, “Nação Poulard: liberdade, direito e dignidade na era da Revolução Haitiana”, Afro-Ásia, n. 46 (2012), pp. 61-95; Jeremy D. Popkin, “Uma revolução racial em perspectiva: relatos de testemunhas oculares da Insurreição do Haiti”, Varia Historia, v. 24, n. 39 (2008), pp. 293-310.

4 Federico Neiburg (org.), Conversas etnográficas haitianas, Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019. 


Resenhista

Luiz Alberto Couceiro – Universidade Federal do Maranhão. https://orcid.org/0000-0003-1281-8048


Referências desta Resenha

HAZAREESINGH, Sudhir. O maior revolucionário das Américas: a vida épica de Toussaint Louverture. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. Resenha de: COUCEIRO, Luiz Alberto. Negras luzes atlânticas Toussaint e a Revolução Haitiana. Afro-Ásia, 66, p. 583-595, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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