O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos | Fabio Luis Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann

O livro do historiador Fabio Santos e do economista Daniel Feldmann, ambos professores da Universidade Federal de São Paulo, trata da América Latina contemporânea, apontando para atores individuais e coletivos e seus projetos de sustentação da lógica de dominação. A obra é uma daquelas publicações necessárias pelas polêmicas que traz, pelo desconforto que provoca, pelo deslocamento do lugar comum das interpretações hegemônicas, daí inclusive a publicação sair por uma editora alternativa que surgiu com a proposta de publicar pensamentos contra-hegemônicos sobre a América Latina. Os autores são provocadores no melhor dos estilos, artístico e interpretativo, desde o título, que tomam emprestado da novela “O médico e o monstro” – escrita pelo escocês Robert Stevenson no final do século XIX – aos traços artísticos que desenham as figuras de capa e contracapa representando a dualidade do “progressismo” no Brasil e na América Latina, no século XXI. A escrita fluente, a forma ensaística da narrativa que sustenta as interpretações (e aqui entende-se ensaio não como algo menor) permitem uma liberdade necessária aos autores para fazer perceber a dualidade, distanciamentos e aproximações entre projetos e políticas de governos que se apresentam como contrapostos.

Os autores propõem compreender uma aparente contradição do “progressismo”, qual seja: “como e por quê, a despeito das intenções dos governantes, a política progressista fortaleceu uma lógica econômica que aprofunda as fraturas sociais que suas técnicas de governo pretenderam mitigar” (p. 14). A hipótese, ou ponto de partida, é a de que “as tecnologias de governo progressistas levaram ao limite as possibilidades de inclusão, nos marcos de uma dinâmica social que produz exclusão em escala massiva” (p. 14). À pergunta “qual o lugar do progressismo no mundo?”, os autores apresentam a hipótese da “contenção aceleracionista” e outros dois paradoxos: “progressismo regressivo” e “neoliberalismo inclusivo”. As palavras compostas [oximoros] – aparentemente, opostas entre si, mas que colocadas no contexto do texto nominam as práticas e projetos políticos – sintetizam as contradições do progressismo e são tomadas como chaves interpretativas da realidade.

Outro conceito operado pelos autores, “dessocialização autofágica”, tenta dar conta de adjetivar a crise estrutural do capital a partir da década de 1970, olhando para a América Latina num cenário de “corrosão do tecido social produzida pela convergência entre a erosão do mundo do trabalho e a degradação de serviços públicos estatais, que tirou o lastro histórico da utopia de uma cidadania salarial” (p. 20). Essa formulação parece ser uma junção do conceito de “dessocialização catastrófica” de Robert Kurz e “sociedade autofágica” de Anselm Jappe, dois teóricos da escola marxista “crítica do valor”. A dinâmica de dessocialização autofágica é o pano de fundo da análise que busca compreender os limites da aposta progressista.

Os autores não operam categorias políticas já clássicas, como reformismo e frente popular, para compreender governos e projetos que na América Latina se apresentaram como populares e socialistas, nessas primeiras décadas do século XXI em países como Argentina, Bolívia, Uruguai, Brasil, Venezuela e Paraguai. Fazem uso do termo “progressismo”, sem, contudo, conceituá-lo. Optase por traçar um paralelo com “progresso”, a partir do filósofo alemão Theodor Adorno, discutido no capítulo inicial da primeira parte ao abordar o “progressismo e seus opostos na América Latina”. Ao final do livro, o leitor ou a leitora terá uma noção de progressismo, de governos e projetos políticos do progressismo, todavia, como desde o início da obra os autores se dedicam a definições de conceitos que serão operados no decorrer do debate, seria de bom tom apresentar o que se entende por “progressismo”, pois este é um termo não usual, relacionado a “progressista” (governos e projetos “progressistas”). Relacionado, mas não a mesma coisa. Esses governos e projetos, ao se tornarem gestores de tensões sociais, são qualificados com adjetivos como “progressismo regressivo” e outras conjugações duais presentes no decorrer da obra.

Muito já se discursou, especialmente nas redes sociais, de uma tal “onda conservadora” que teria advindo com a derrocada desses governos na América Latina. Os autores, acertadamente, operam com a lógica inversa: o que a América Latina viveu, com alguns lastros de continuidade ou retorno na atualidade, foi uma onda do “progressismo” numa normalidade conservadora. Todavia, o progressismo se apresentou como contenção de conflitos e manutenção da ordem neoliberal. Então, uma questão se apresenta para os autores: Por que, na esteira de governos progressistas surgiram governos de extrema-direita? Na formulação dos autores: “Os tempos de Lula são agora de Bolsonaro. Por que essa mudança?” (p. 33). A resposta, complexa, aponta para a conjunção de fatores econômicos, sociais e políticos: agravamento da crise econômica, marcada pela queda dos preços das commodities, que foram o sustentáculo desses governos; deslegitimidade do progressismo “entre os de cima, por diferentes motivos, mas também entre os de baixo”, e “um mal-estar crescente à direita” pela perpetuação do progressismo no poder, levando a articulações para disputa do poder, num contexto internacional de hostilidade a esses governos, como foi a administração Donald Trump nos Estados Unidos. Mas, o progressismo chegou ao fim? À essa pergunta os autores propõem uma formulação que ancora a tese principal da obra: “Sugerimos que o progressismo não está necessariamente sepultado como alternativa de manutenção da ordem, mas sim, como horizonte de mudança” (p. 34).

No capítulo dois, os autores se dedicam a compreender o progresso na América Latina no contexto de crise estrutural do capital, crise que se apresenta na contradição entre a necessidade de valorização do valor e o trabalho vivo cada vez mais obsoleto. Disso resultam duas outras contradições: o potencial destrutivo do capital mina a dinâmica de valorização, portanto de reprodução do capital, tornando o valor uma forma de mediação social cada vez mais anacrônica, apesar de impor as relações sociais à sua dinâmica.

Em “o progressismo no século XXI”, capítulo três da primeira parte, os autores destacam as balizas do progressismo latino-americano: “ganhar tempo”, “expectativas decrescentes” e “mal menor” (p. 31). Esses governos, eleitos como alternativa ao neoliberalismo, adotaram como referência a ideologia do progresso em que o “desenvolvimentismo” – que no passado cumpria papel de enaltecer projetos não realizados de independência nacional – é posto ainda como possível. Todavia, o alardeado “neodesenvolvimentismo do progressismo” se apresenta em uma época “que não há mais construção nacional possível” (p. 82), portanto, trata-se de uma ideia extemporânea.

Na sequência, nos capítulos quatro e cinco, discute-se com mais vagar a conjuntura de três países em que o progressismo se apresentou de forma mais aprofundada. Para o caso do Equador, os autores formulam a conexão “transformismo progressista”: “a ‘transformação’ se opera como incorporação da oposição à ordem” (p. 37). Para o caso da Bolívia, formula-se a conexão “progressismo monocrático”, tendo em vista a tentativa de Evo Morales de se perpetuar no governo (p. 41). Para a Venezuela, apresenta-se a conexão “progressismo como desastre”: “onde o progressismo mais avançou na região é também aquele onde mais se acelerou a sua crise. A questão que se coloca é se a decomposição da Venezuela atesta o fracasso do progressismo ou a sua realização. Afinal, talvez seja essa a cara do progresso na América Latina do século XXI” (p. 49).

No capítulo seis, os autores analisam a conjuntura no Paraguai, Peru, Colômbia e Chile para responder ao seguinte paradoxo: “os países sul-americanos onde explodiram motins no primeiro ano e pouco de pandemia são aqueles em que o progressismo é mais débil” (p. 58). No Paraguai, o progressismo representado pelo governo de Fernando Lugo (2008-2012) foi como interregno político num Estado autocrático burguês, na definição de Florestan Fernandes, utilizada pelos autores. No tempo presente, a rebeldia das ruas, não dominada pela direita nem pelo progressismo, segue seu curso de explosões esporádicas. A Colômbia, onde a aparência de normalidade democrática, com a alternância no poder, não disfarça a autocracia burguesa e não é barreira para as lutas sociais, é também um Estado militarizado, de uma contrarrevolução permanente em que paz e guerra são dicotomias que se complementam e se encontram nos debates e projetos políticos da direita e do progressismo. Daí vem a política do ódio da extrema-direita representada por Álvaro Uribe e o “progressismo como trégua” à guerra, diante da impossibilidade da paz permanente. No caso do Peru, os autores delineiam um país densamente fraturado, herança da “ditadura democrática” de Alberto Fujimori, que esteve no governo entre 1990 e 2000, quando impôs intensas reformas neoliberais e aprofundou o caráter extrativista e predatório da economia. As lutas sociais no Peru respingam na política formal, com a emergência de forças progressistas que não conseguem se alçar como alternativa eleitoral, e quando conseguem, como no caso recente da eleição do professor de escola rural, Pedro Castillo, é um “progressismo por desconexão” e de pauta moral conservadora: possível numa sociedade que se desconectou do reformismo que se construía como alternativa. O Chile, onde o progressismo não se firmou até antes dos levantes de 2019, ressurge como saída institucional para “devolver a política aos gabinetes” (p. 73). Nada mais indicado que uma coalizão liderada por alguém que saiu das ruas. Quando da publicação de “O médico e o monstro”, as eleições no Chile ainda estavam indefinidas. O candidato da Frente Ampla, Gabriel Boric, foi eleito com um programa que buscará uma transição ecológica e um Estado social de direitos, sem mudanças estruturais. Uma via chilena na mesma rota dos reformismos latino-americanos. Em novembro de 2019, Boric já havia acenado para a ordem, ao assinar o “acordo de paz” convocado por Sebastián Piñera: uma saída constitucional contra a inconformidade das ruas.

Os autores trazem nos títulos dos três capítulos sequenciais da primeira parte termos conjugados que soam opostos, mas que dão sentido às contradições do progressismo latinoamericano: progressismo regressivo, contenção acelerada e neoliberalismo inclusivo. O “progressismo como regressão” estaria na readequação da “vocação” da América Latina como exportadora de produtos primários, agora as commodities, ampliando e complexificando a relação de dependência dos países periféricos ao centro do capitalismo. A adaptação do progressismo a ordem política do Estado liberal e neoliberal levou à renúncia da crítica e da contestação ao capital como sistema metabólico de reprodução social, como “decorrência, fortaleceram-se as determinações fundamentais do capital enquanto sistema metabólico” (p. 94). O Brasil no período dos governos petistas é tomado como exemplo desse movimento de “aceleração” do neoliberalismo na tentativa de “contenção” do mesmo processo, numa “dinâmica autofágica”.

Os autores finalizam a primeira parte do livro com uma síntese definidora dos países latinoamericanos sob o comando de governos de frente popular, ou dos progressismos: “A tentativa de contenção insuflada por dinheiro e capital fictício, que se apresenta como uma tentativa de ‘ganhar tempo’, mas impulsiona as economias rumo a um futuro de antemão bloqueado, provoca uma refuncionalização perversa e acelerada, no presente, de práticas predatórias e formas precárias de vida que marcaram a região no passado.” (p. 97)

Na segunda parte da obra, sob título “Médicos e monstros diante da doença brasileira”, a análise se centra no Brasil do lulismo e do bolsonarismo. Na analogia que os autores fazem da situação brasileira com o dr. Jekyll, personagem de “O médico e o monstro”, aproxima o que aparenta ser antagônico: Barbárie e progressismo. Na novela do escocês Robert Stevenson a personagem dr. Jekyll se considera um ser duplo em que se manifesta a personalidade séria e ilibada, oposta à personalidade cruel e primitiva do seu outro eu, a personagem sr. Hyde. A analogia com a política brasileira e latinoamericana se completa na impossibilidade de Jekyll domar Hyde, o monstro: “Na melhor das hipóteses, o progressismo encarna a crença de que é possível ocultar ou domar os monstros produzidos pela sociabilidade do capital no século XXI. Ao mesmo tempo, é impotente para desafiar o princípio societário que produz essas monstruosidades. E, a despeito das intenções, o reforça” (p. 101).

Na leitura dos autores, Bolsonaro é a modalidade extrema da política do ódio e se sustenta no constante desmantelamento da ordem política para manter a ordem do capital. No interior de uma crise estrutural, Bolsonaro dissemina constantes crises políticas, e se aproveita de conjunturas como a polêmica eleição estadunidense e a calamidade sanitária da COVID-19, para incidir mais na crise. Conforme os autores, o fundamento autoritário desse governo “remete à aceleração da dessocialização autofágica inerente ao neoliberalismo” (p. 102). Nesse movimento autofágico, o bolsonarismo “dilata os limites do aceitável” (p. 103), ao pisar no acelerador da dessocialização, numa curva antissistêmica, numa “revolução invertida”.

A aposta nos freios sistêmicos não parece surtir o efeito esperado. O estado de direito construído na redemocratização, delineado na Constituição de 1988, não tem elementos que possibilitem a autodefesa contra os assaltos bolsonaristas à democracia. A crise é mais profunda e mais ampla do que se apresenta na superfície da conjuntura. Trata-se de uma crise estrutural do capital que tem o marco inicial nos anos 1970. Os movimentos da política nacional, desde então, acompanham, não necessariamente pari passu, o movimento da política e da economia internacionais que impõem uma nova ordem para manter a ordem do capital e reafirmar a relação de dependência dos países periféricos para com as nações centrais do capitalismo.

A contradição segue com a aposta que o progressismo faz na ordem para frear a desordem bolsonarista. A defesa que o progressismo faz do sistema político, quando as ruas e as urnas (ou o não ir às urnas) questionam esse sistema como não correspondente às suas demandas, leva a movimentos de “contenção aceleracionista”. Bolsonaro pretensamente antissistêmico atua no inverso do progressismo “no sentido de que [acelera] uma dinâmica social que o seu oposto pretende conter” (p.110).

O progressismo não tem mais potência para conter a crise política e econômica, se é que em algum momento chegou a ter essa capacidade. Para se fazer governo ‘da’ e ‘na’ crise, o progressismo se apresenta cada vez mais desfigurado, com frentes cada vez mais amplas, a exemplo da aliança que se desenha para as eleições de 2022, Lula/Alckimin. Quanto mais o progressismo tenta se manter como alternativa de gestão da crise, mais se enreda na dinâmica que reproduz a desordem do capital e mais se distancia das formas autônomas da política que se faz nas ruas. As ruas bradam pela mudança, pela ruptura, o progressismo sussurra e se articula nos parlamentos e nas urnas. As rebeliões, como as jornadas de junho de 2013 no Brasil e os levantes de 2019 no Chile, são prenhes de futuro, o progressismo está enxertado de passado a conservar os interesses da elite. O progressismo, todavia, segue sobrevivendo como barreira à mudança, como no caso da saída constitucional no Chile.


Resenhista

Vitor Wagner Neto de Oliveira – Doutor em História e docente associado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ORCID: 0000-0003- 2008-4195. E-mail: [email protected]  Website: https://ufms.academia.edu/VITOROLIVEIRA


Referências desta Resenha

SANTOS, Fabio Luis Barbosa dos; FELDMANN, Daniel. O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos. São Paulo: Elefante, 2021. Resenha de: OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Limites e contradições do progressismo latino-americano.  Revista Eletrônica da ANPHLAC, v. 22, n. 33, p. 372-378, jan./Jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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