A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo | Verónica Gago

Verónica Gago é doutora em ciências sociais e professora na Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade de San Martín (UNSAM), além de pesquisadora e autora de diversos artigos sobre economia popular, economia feminista e teoria política. Faz parte do Coletivo NiUnaMenos, surgido em junho de 2015 após episódios brutais de feminicídios contra jovens mulheres de países da América Latina, como Argentina, Chile e Uruguai. O coletivo se tornou atuante na luta contra o feminicídio em toda a América Latina, sendo também responsável pelas mobilizações a favor da Greve Internacional Feminista e pela recente conquista da descriminalização do aborto na Argentina. É a partir desta visão e vivência em espaços de luta que a autora apresenta “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo”, título traduzido para o português na edição brasileira, publicada em 2020, pela Editora Elefante.

O livro é composto por oito capítulos, os quais trazem os fundamentos para as oito teses sobre o atual feminismo transnacional defendidas por Gago, em um tom de manifesto, convidando a “experimentar o deslocamento dos limites em que nos convenceram a acreditar e que nos fizeram obedecer” (GAGO, 2020, p. 10). Ao longo de cada um deles, a autora trabalha argumentos que nos levam à visão de que “a greve só é geral porque é feminista” (GAGO, 2020, p. 229), visto que o movimento feminista atual é marcado de massividade e radicalidade, as quais refletem sua marca transnacional ao se fazer presente em diversas lutas, e por uni-las. Com isso, chega-se à conclusão de que se as mulheres pararem, o mundo para. Leia Mais

O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos | Fabio Luis Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann

O livro do historiador Fabio Santos e do economista Daniel Feldmann, ambos professores da Universidade Federal de São Paulo, trata da América Latina contemporânea, apontando para atores individuais e coletivos e seus projetos de sustentação da lógica de dominação. A obra é uma daquelas publicações necessárias pelas polêmicas que traz, pelo desconforto que provoca, pelo deslocamento do lugar comum das interpretações hegemônicas, daí inclusive a publicação sair por uma editora alternativa que surgiu com a proposta de publicar pensamentos contra-hegemônicos sobre a América Latina. Os autores são provocadores no melhor dos estilos, artístico e interpretativo, desde o título, que tomam emprestado da novela “O médico e o monstro” – escrita pelo escocês Robert Stevenson no final do século XIX – aos traços artísticos que desenham as figuras de capa e contracapa representando a dualidade do “progressismo” no Brasil e na América Latina, no século XXI. A escrita fluente, a forma ensaística da narrativa que sustenta as interpretações (e aqui entende-se ensaio não como algo menor) permitem uma liberdade necessária aos autores para fazer perceber a dualidade, distanciamentos e aproximações entre projetos e políticas de governos que se apresentam como contrapostos. Leia Mais

A potência feminista ou o desejo de transformar tudo | Verónica Gago

Veronica Gago
Verónica Gago | Imagem: Verso Books

“A potência feminista” é um programa de ação e um artifício à medida que traz, desde o título, o signo do movimento. Nesse sentido, a potência feminista é entendida como uma teoria alternativa do poder (Verónica GAGO, 2020, p. 10), tratando-se “da força do processo protagonizado pelos feminismos nos últimos anos” (GAGO, 2020, p. 291). Esse desenho teórico dá pistas da configuração de produção do livro cuja autora, docente da Universidade de Buenos Aires e da Universidade de San Martin, tem a trajetória acadêmica marcada pela colaboração com os coletivos Situaciones e NiUnaMenos.

Esse movimento é feito por meio da greve como uma lente em dois sentidos – analítico e prático -, pelos quais é possível pensá-la como “[…] uma ferramenta prática de investigação política e um processo capaz de construir a transversalidade entre corpos, conflitos e territórios” (GAGO, 2020, p. 15). Leia Mais

Os Futuros de Darcy Ribeiro | Andrés Kozel, Fabricio Pereira da Silva

A obra “Os Futuros de Darcy Ribeiro” (2022), de Andrés Kozel e Fabricio Pereira da Silva, é uma excelente e eficiente escolha de abordagem da reflexão sociológica e política de Darcy a partir das especulações sobre o futuro da humanidade feitas pelo pensador, comumente definidas pelos autores como “futurações”. Excelente, porque de fato a produção do pensador se orienta para o que Koselleck (2006) chamaria de “planejar o futuro”, ou seja, pensar a sociedade em função de transformá-la, orientar o seu futuro, possibilidade que se abre com a concepção moderna de História. Eficiente, porque a escolha de trechos das obras de Darcy foi cuidadosamente realizada, de forma que o argumento dos organizadores está embasado numa curadoria precisa, e os textos selecionados funcionam como verdadeiro material empírico da tese defendida e da metodologia implementada. Os organizadores se valeram da análise de dez trechos de obras centrais para entender Darcy, cada qual organizada em capítulos nos quais a análise vem primeiro e se segue o trecho selecionado. São eles: O processo civilizatório (1968), As Américas e a civilização (1969), Os índios e a civilização (1970), O dilema da América Latina (1971), “O abominável homem novo” (1972), “Venutopias 2003” (1973), Utopia selvagem (1982), “A nação latino-americana” (1982), “A civilização emergente” (1984) e O povo brasileiro (1995). Sua maneira de olhar a História, que está sem dúvida ligada a uma crença nela como um todo coerente e processual, ainda que por vezes mais contraditório, por vezes menos, é um tema central para pensar o autor. Essa, contudo, é uma característica que o aproxima de vários intelectuais de sua geração, notam os organizadores, já que dedicarse a pensar e construir as matrizes para o Estado Nacional brasileiro foi uma característica das ciências humanas então recém-nascidas no Brasil. Por sua vez, Darcy o fará de forma bastante singular. Nas palavras dos organizadores: “A chave interpretativa de Darcy Ribeiro é tecnologista: seu olhar para a história gira em torno do conceito de revolução tecnológica” (KOZEL; SILVA, 2022, p.13). Nesse sentido, a revolução tecnológica é o sentido da História. O desenvolvimento das sociedades e das culturas seguem esse padrão, no qual o socialismo é entendido como uma etapa dessa revolução: Difícil de prever em suas características concretas, a sociedade futura de Darcy Ribeiro é uma sociedade socialista “de novo tipo”, na qual as possibilidades de conhecer e atuar são ilimitadas e o homem já não é adjetivável ética, racial ou regionalmente: é a civilização da humanidade (KOZEL; SILVA, 2022, p.15). O socialismo seria parte, portanto, da “civilização emergente” – e aqui nos deparamos com outro conceito destacado pelos organizadores como central no entendimento das futurações de Darcy. Tal civilização almejada incluiria, além do socialismo na esfera econômica, uma “humanidade etnicamente fusionada” na esfera cultural, o que na visão dos autores, estaria em diálogo com as ideias de “raça cósmica” de José de Vasconcelos e “civilização do universal” em Pierre Teilhard de Chardin. Esta abordagem dos problemas da cultura humana que padece sob o eurocentrismo e a homogeneização podem ser encontradas em “As Américas e a civilização”. No entanto, os organizadores destacam que a obra de Darcy não deve ser lida como linear. Sua trajetória não se trata de um simples desenvolvimento da proposta intelectual original, mas são notadas sensíveis mudanças ao longo do caminho. “O processo civilizatório” (1968) foi escrito no exílio no Uruguai e abre a “antropologia da civilização” de Darcy. O estudo se conecta com a necessidade de entender as razões para o golpe de Estado no Brasil em 1964: Leia Mais

Tudo sobre o amor: novas perspectivas

Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.

(Clarice Lispector)

Um dos temas mais recorrentes no campo das artes é o amor. Músicas, filmes, livros, por exemplo, quando falam sobre o amor, na maior parte das vezes, é em tom ficcional, especialmente, sobre as possibilidades de um amor romântico que se desenvolve quase como uma fantasia para aqueles que desfrutam do trabalho artístico.

É sobre o amor que a autora norte-americana bell hooks se propõe a refletir na obra Tudo Sobre o Amor: novas perspectivas (2020), livro publicado pela Editora Elefante. Trata-se de um convite à compreensão sobre o tema, para além do que os homens são capazes de falar sobre ele. Sim, bell hooks assumidamente em letras minúsculas. Uma das grandes vozes na contemporaneidade sobre questões como raça, gênero, educação e cultura contemporânea. Ela rompe com a ideia do amor romântico, semelhante a uma fantasia, o qual grande parte das pessoas almejam viver um dia, pautado pela atração física e ao sentimentalismo, o que é denominado de “caxetia”, segundo a escritora. O que hooks quer abordar ao longo do livro é a ideia de amor real, que evoque tanto o crescimento espiritual do indivíduo quanto o do próximo. O amor enquanto ação transformadora, permeando todo e qualquer relacionamento humano, desde a infância. O que ela chama de uma ética amorosa. Quando o indivíduo entende esse pressuposto, ele entende verdadeiramente o amor. Leia Mais

O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista | Silvia Federici

Enquanto os homens enfrentavam a linha de frente nos campos de batalha durante a Segunda Guerra Mundial, as mulheres assumiram os postos de trabalhadoras e provedoras do sustento familiar. A autoconfiança adquirida através deste processo, junto a um ressentimento ocasionado pelas desagregações familiares decorrentes da alta mortalidade do conflito, incentivou a busca por trabalhos alternativos ao do lar, provocando um distanciamento do trabalho doméstico. Este novo aspecto social refletiu nos trabalhos feministas na década de 1970, cuja ausência do debate sobre a organização da casa se fez notável. [5]

As ideias expressas acima estão contidas na introdução da obra O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (2018), de Silvia Federici, filósofa, escritora e ativista por um feminismo anticapitalista. Nascida na Itália e radicada nos Estados Unidos, escreve principalmente sobre o trabalho reprodutivo no capitalismo sob uma perspectiva de reconhecimento dele como pilar de sustentação do sistema, junto a outras formas de trabalho não remunerado, como a servidão e a escravidão. Seu livro mais famoso é Calibã e a Bruxa (2017). Como uma das fundadoras do movimento Wages for Housework, em O Ponto Zero da Revolução…, a autora pretende realizar um resgate dos debates a respeito do trabalho doméstico e de sua importância no entendimento e no combate ao sistema capitalista e colonialista, questionando a natureza da imposição do trabalho doméstico às mulheres bem como suas implicações de subordinação e exploração às vidas sociais delas.

Na primeira parte do livro, o argumento central de Federici em relação à exploração das mulheres e do trabalho doméstico se dá em razão da ação de um Estado que acumula capital por meio da associação dessa atividade à natureza feminina. Através do pressuposto de que o trabalho doméstico é intrínseco à natureza da mulher, a lógica capitalista a coloca como uma base na organização do trabalho dentro da instituição familiar. Segundo Mariarosa Dalla Costa e Selma James, autoras que exerceram grande influência na constituição e no embasamento das ideias de Federici, a nuclearização da família constitui uma fábrica social, na qual a mulher como mão-de-obra não remunerada é fundamental para a produção da força de trabalho, através de funções produtivas e reprodutivas, que nesse ponto encontram-se indissociáveis. As autoras também argumentam sobre a necessidade de seguir um caminho cada vez mais subversivo à lógica do sistema, defendendo a autonomia dos próprios corpos, que foi confiscada pelo capital. Utilizando a biologia feminina a seu favor, além de ele transformar a relação das mulheres com seus maridos e crianças, converte suas criações em trabalho produtivo com finalidade de acumulação por parte do sistema.

Desse modo, nota-se que tanto Federici quanto Dalla Costa e James defendem a remuneração feita pelo Estado como uma medida essencial para que seja possível negar a naturalização do trabalho doméstico como feminino, minando então a lógica capitalista, dando autonomia às mulheres para recusá-lo e abrindo caminhos para uma superação do sistema.

Esta luta pelo salário pago pelo Estado, no entanto, foi tida como menor pelo feminismo, que se voltou para o direito de trabalhar fora, por exemplo. As liberais viam isso como a chance de obter uma carreira e as socialistas, de se incorporarem à luta de classes. A autora destaca, porém, que a luta deveria ser pela independência econômica, não pelo trabalho em si. As mulheres já trabalhavam em casa, necessitando, assim, de mais tempo, não de mais trabalho. Além disso, essa postura pode ter contribuído para um afastamento das donas de casa de movimentos feministas. [6]

Desse  modo, o problema do trabalho doméstico – compartilhado por todas as mulheres – não foi resolvido: poucas conseguiram realmente dividir as tarefas com os maridos, passando a exercer jornada dupla e ficando mais cansadas.

A “solução” para tal problema apareceu com o neoliberalismo e a Nova Divisão Internacional do Trabalho (NDIT), marcada pela globalização, em que o principal envio do “Terceiro Mundo” para o “Primeiro” é o trabalho via migração. Assim, enquanto mulheres europeias trabalham fora, contratam imigrantes para fazer o trabalho doméstico. Essa resolução problemática, além de criar uma relação criada-madame, acentua a tendência da má remuneração para esse trabalho e tira a responsabilidade do homem de fazê-lo. Ademais, é um processo doloroso para as empregadas, que abandonam suas famílias para cuidarem de outras. Teresa Lisboa [7] trata do tema com mais detalhes, destacando problemas como o abuso sexual por parte de patrões e a dificuldade de ter acesso a serviços públicos em virtude da imigração ilegal. Federici destaca que a política da NDIT visa a transferir a reprodução da mão de obra do Norte para as mulheres do Sul Global. Isso acontece nos processos de barrigas de aluguel, por exemplo, que permitem que mulheres do Norte tenham filhos sem interromper suas carreiras nem arriscar a saúde, além de beneficiar financeiramente os governos. A autora conclui que a NDIT não é emancipatória, pois explora as mulheres ainda mais e reabilita a imagem de reprodutora e objeto sexual, de modo que as políticas feministas precisam ser anticapitalistas e subverter essa nova divisão.

Na sequência, Federici aprofunda suas análises acerca do processo de estruturação do neoliberalismo [8] e de seu papel como desarticulador de direitos e serviços essenciais às mulheres: essa corrente se estabeleceu na década de 1970 como fruto das crises econômicas ocorridas no período, bem como da percepção de ameaça representada por movimentos sociais antissistêmicos (negro, anticolonial e feminista), que se opunham ao enriquecimento estatal através da remuneração nula ou irrisória às atividades (re)produtivas que exerciam. A resposta dos Estados se deu, contudo, em direção à acentuação da responsabilização dos indivíduos por suas necessidades de subsistência, bem como, no Sul Global, à intensificação de políticas arbitrárias de austeridade. Ou seja, serviços essenciais de saúde, educação e previdência deixaram de receber investimentos públicos, acarretando escalada da sobrecarga de serviços de cuidado já atrelados aos corpos femininos. Em relação a tais problemáticas, a autora suscita discussões teórico-conceituais e enfatiza o teor revolucionário da expressão “trabalho reprodutivo”, questionando os paradigmas marxistas tradicionais. Esses são criticados por Federici na medida que não só deixavam de considerar as tarefas de cuidado como parte do processo de produção das forças de trabalho, supostamente restrito ao consumo de mercadorias, como também centralizavam na figura do proletário europeu urbano o protagonismo da produção material e, consequentemente, das lutas anticapitalistas.

Complementando suas críticas às realidades neoliberais instituídas a partir dos anos 1970, a autora chama atenção para a posição assumida nesse período pela ONU. Em adição aos desmantelamentos de sistemas sociais e às espoliações de recursos naturais realizados, a instituição passou a exercer postura de controle indireto da radicalidade feminista por meio da cooptação de suas pautas e lideranças. A criação de espaços institucionais para debates de gênero, com o desenvolvimento de programas impulsionadores da agenda do Banco Mundial e a secundarização das lideranças de países não hegemônicos frente às “feministas profissionais” dos EUA, propiciou alinhamento de parte do movimento com causas neoliberais e decorrente afastamento da organicidade popular registrada inicialmente nas reivindicações feministas. Tal fenômeno é destrinchado por Veronica Schild, que argumenta que a fenda de serviços básicos deixada pelos Estados foi preenchida, no contexto latino-americano, por ONGs patrocinadas pela ONU. Essas, ao invés de dialogarem com organizações locais já existentes, priorizaram gestões de feministas acadêmicas e políticas, vinculadas a instituições estrangeiras, invalidando, com isso, possibilidades de ativismos regionais e autenticamente revolucionários.

Na terceira parte da obra, Federici apresenta uma das questões mais importantes às pautas de gênero e ao mundo do trabalho: o acesso à terra, eixo relevante para se pensar a construção de uma sociedade mais solidária e comunitária. A autora inicia sua abordagem sobre essa temática analisando historicamente as investidas dos setores capitalistas no sentido de retirar da população, especialmente feminina, o acesso à terra e, consequentemente, a sua subsistência. A partir desse momento, as comunidades locais empobreceram e tornaram-se dependentes de recursos pertencentes ao grande capital, os quais não são acessíveis a todos em uma sociedade desigual como a que é encontrada em diferentes níveis no planeta. Dessa forma, a partir de um posicionamento que identifica historicamente as mulheres como as agentes de vanguarda na luta pela manutenção das terras comunais e contra o capital, Federici infere que uma das mais eficazes formas de construção de uma sociedade mais equilibrada e que incentive a solidariedade e não a competitividade é a luta por terras comunais e práticas de subsistência.

Ademais, é importante mencionar que essa é uma pauta defendida tanto por diversos intelectuais e lideranças sociais [9] quanto por comunidades que, mesmo que alheias às discussões acadêmicas, entendem a importância da manutenção desses sistemas e da luta por mais áreas agricultáveis. O antropólogo Arturo Escobar, em sua obra La invención del Tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo, analisa essa mesma problemática destacando a forma como as organizações internacionais e países desenvolvidos mantêm suas políticas neocoloniais por meio da expulsão de populações originárias de suas terras e do estabelecimento de relações de dependência dos mercados interno e externo, o que as aliena dos meios produtivos para sua subsistência. Dessa forma, ambos os autores, além de externarem suas críticas a essas práticas violentas, também ressaltam exemplos bem sucedidos de resistência e luta, apontando caminhos a seguir para garantir um melhor futuro, enfatizando, assim, os caminhos comunitários e solidários, não individualizados.

Tomando como base os principais pontos levantados neste texto, ponderamos que O Ponto Zero da Revolução… se revela uma obra extremamente relevante para os dias atuais, especialmente no Brasil, em que vemos um movimento amplo e articulado de desmonte das políticas públicas, direitos trabalhistas e implemento das faces mais radicais e violentas do neoliberalismo. Dessa forma, o livro nos fornece importantes discussões e exemplos concretos de populações que, enfrentando questões tão críticas quanto, rebelaram-se e lutaram por um futuro menos desigual e pela construção de uma sociedade que desnaturalizasse a competição, o lucro e a violência. Consideramos fundamental notar o papel renovador e transgressor que a obra exerce dentro de seu contexto de publicação ao se levar em conta, para além do cenário nacional, os horizontes de produção teórica feminista. Nas últimas décadas, por conta da difusão de discursos eminentemente reificadores do neoliberalismo do Norte — seja através de meios virtuais, seja pelo fortalecimento de uma cultura de “feminismo de advocacy” —, ainda que esse movimento social tenha alcançado maior aceitação entre diferentes parcelas populacionais, vem atravessando processo de banalização de suas pautas. Nesse sentido, as recuperações históricas levantadas por Federici, junto a suas elaborações acerca das problemáticas dos sistemas “piramidais” instaurados sob slogan de suposta “cooperação internacional” pela globalização e à sua marcante tese de necessidade de questionamento das estruturas de reprodução social normalizadas sob o capitalismo, permitem que os públicos leitores do Sul Global, como conjunto de indivíduos que partilha das heranças racistas, coloniais e patriarcais instituídas externamente, continuem e ampliem a articulação de mobilizações feministas capazes de subverter estacas político econômicas exploratórias. A busca por concretização das emancipações de grupos historicamente subjugados, com destaque para a efetiva liberação das mulheres, é nitidamente instigada por Federici, em um movimento que contribui para o fortalecimento das resistências feministas latino-americanas antissistêmicas. No passado e ainda hoje, essas têm estado voltadas à conquista de direitos reprodutivos, à redução da violência de gênero e à retomada dos “comuns” por amplas parcelas populares.

Notas

5. É importante ressaltar que, como será possível observar ao longo da obra, esta condição específica de abandono do lar rumo à independência financeira, à inserção e à relativa equiparação ao homem branco no mercado de trabalho refere-se à realidade de mulheres brancas de classe média. A vida das mulheres não-brancas, como destaca bell hooks, estrutura-se de uma forma totalmente diferenciada. Estas já ocupam o mercado de trabalho de maneira subalterna como empregadas, babás, secretárias, prostitutas. Ao criticar A mística feminina, hooks afirma: “Problemas e dilemas específicos de donas de casa brancas da classe privilegiada eram preocupações reais, merecedores de atenção e transformação, mas não eram preocupações políticas urgentes da maioria das mulheres, mais preocupadas com a sobrevivência econômica, a discriminação étnica e racial etc. Quando Friedan escreveu A mística feminina, mais de um terço de todas as mulheres estava na força de trabalho. Embora muitas desejassem ser donas de casa, apenas as que tinham tempo livre e dinheiro realmente podiam moldar suas identidades segundo o modelo da mística feminina” (Cf. hooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p. 193-210, 2015).

6. Esse afastamento das donas de casa em relação ao feminismo, por sua vez, é um fenômeno predominantemente estadunidense e europeu. Nos anos 1970, muitos países latino-americanos, por exemplo, estavam sob brutais ditaduras militares. Verónica Schild, doutora em Ciência Política com pesquisas sobre mobilizações feministas e impactos do neoliberalismo no Chile, destaca que, nesses lugares, o feminismo adquiriu outros contornos: organizadas em diferentes grupos de mulheres, mobilizaram-se contra os regimes autoritários desde militantes de esquerda a ativistas católicas. Além de haver um engajamento com o feminismo “tradicional” devido à conjuntura política, há outra diferença fundamental: “Em contraste com a ‘dona de casa’ típica do pós-guerra nos países da OCDE, a maioria das latino-americanas trabalhava – na terra ou como empregadas domésticas –, enquanto as mulheres da elite eram liberadas do trabalho doméstico por suas criadas.” (2017: 101).

7. Teresa Kleba Lisboa é doutora em Sociologia e pesquisadora das áreas de violência de gênero, de participação das mulheres no mundo social do trabalho e de equidade de gênero nas políticas públicas.

8. No que se refere ao envolvimento teórico da autora com a temática do neoliberalismo, mostra-se interessante contextualizar suas produções em relação a demais obras que perpassam o tema: os capítulos de O Ponto Zero da Revolução que abordam aspectos do sistema neoliberal foram escritos entre os anos 1990 e 2000. Nesse período, e principalmente nos anos subsequentes a ele, registrou-se extensa produção acadêmica dedicada a analisar processos constitutivos do neoliberalismo e as consequências dele para o funcionamento de diferentes sociedades. Inserem-se aí obras de pensadoras estadunidenses como Nancy Fraser e Wendy Brown. Ambas apresentam pontos de confluência com as ideias de Federici, caracterizando esse sistema como extenso, não restrito a uma esfera econômica, mas sim permeador das diversas bases do cotidiano social, acarretando desmantelamento de serviços essenciais à coletividade, precarização do mundo do trabalho e a instituição de um modelo mental coletivo de “empresariamento de si mesmo” (ou “razão neoliberal”, nos termos da segunda autora). Fraser (2019) defende a superação da crise generalizada vivenciada hoje por meio de uma transformação sistêmica completa a ser encabeçada por mobilizações populares, nas quais estaria incluso um “feminismo para os 99%”, anticorporativo. Já Brown (2015), em contraponto às constatações de Federici acerca da necessidade de transformação absoluta do modo de vida capitalista e de sistemas políticos que não asseguram protagonismo às coletividades e acesso a recursos “comuns”, apresenta considerações mais reformistas, afirmando que as democracias liberais, apesar de burguesas, deveriam ser conservadas por servirem como propulsoras iniciais de anseios mais amplos por liberdade e direitos. Para saber mais, verificar: FRASER, Nancy. The old is dying and the new cannot be born: From progressive neoliberalism to Trump and beyond. New York: Verso Books, 2019; e BROWN, Wendy. Undoing the demos: Neoliberalism’s stealth revolution. New York: Mit Press, 2015.

9. É possível estabelecer relações entre essas reflexões da autora e as práticas de feminismo comunitário encontradas em países latino-americanos: o pensamento do feminismo comunitário é bastante amplo e tem diversas ramificações, como o empregado pelas mulheres trabalhadoras na Bolívia. Na comunidade Mujeres Creando, o feminismo comunitário começa epistemologicamente empregando a descolonização do próprio feminismo, partindo do pressuposto que esse carrega consigo diversas formas de opressão, principalmente originários do sistema capitalista de produção. Para além desse esforço, as próprias categorias de gênero e patriarcado são repensadas. Tal discussão relaciona-se ao conceito de comuns de Frederici, na medida em que, para se atingir as expectativas postas sob a construção de uma sociedade comunitária, devem-se rever os conceitos estruturantes que a sustentam. Para saber mais, verificar: PAREDES, Julieta. El feminismo comunitario: la creación de un pensamiento propio. Corpus, vol. 7, n. 1, 2017.

Referências

DALLA COSTA, Mariarosa; JAMES, Selma. The Power of Women and the Subversion of the Community. Bristol: Falling Wall Press, 1975.

ESCOBAR, Arturo. La invención del Tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007.

LISBOA, Teresa Kleba. Fluxos migratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 805-821, set./dez. 2007.

SCHILD, Verónica. Feminismo e neoliberalismo na América Latina. Nueva sociedad, Buenos Aires, Edição Especial, p. 98-113, jun. 2017

Eduardo Gern Scoz – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Pesquisa Individual sob a orientação da Profª Drª Ana Paula Vosne Martins.

Letícia Barreto Assad Bruel – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.

Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR.

Vitória Gabriela da Silva Kohler –  Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR.


FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2018. Resenha de: SCOZ, Eduardo Gern; BRUEL, Letícia Barreto Assad; ZIMKOVICZ, Rafaela; KOHLER, Vitória Gabriela da Silva. Cadernos de Clio. Curitiba, v.9, n.1, p.133-143, 2018. Acessar publicação original [DR]