O norte do Rio de Janeiro no século XVI: à luz da história mundial e da eco-história

O movimento histórico de estruturação e institucionalização da História Ambiental, iniciado em meados da década de 1970, traz transformações importantes no campo historiográfico. A abordagem ecológica insere no trabalho do historiador novos modelos interpretativos para o estudo dos comportamentos sociais, do local ao global. O Norte do Rio de Janeiro no Século XVI à luz da história mundial e da eco-história, apresenta-se como um exemplo de trabalho sobre as contribuições metodológicas que ambas as abordagens podem proporcionar para o estudo da História.

A leitura do texto mostra-se um exercício para a compreensão do que se propõe a história ambiental. O conhecimento sobre as produções humanas e os processos de territorialização abarcam as interações entre homem e natureza e a construção de ambientes equilibrados ou não entre eles. Os elementos que formam o meio em que os seres humanos se apropriam interferem em seus comportamentos, suas ações coletivas, suas produções materiais e culturais, atribuindo ao mundo natural influência significativa para o entendimento das civilizações.

Publicada pela editora Autografia, em 2019, o livro contém, ao todo, 146 páginas compostas por breves ensaios divididos por temáticas, com mapas e ilustrações, sobre as características naturais da região. Estabelecer a relação entre homem e natureza, suas transformações e consequências para a formação do atual norte do Rio de Janeiro aparecem como objetivo central nesse trabalho. O recorte do século XVI abarca as características nativas naturais e antropológicas do território e as interferências causadas pela chegada dos europeus e seu estilo de vida.

Um dos principais desafios destacados no trabalho está na análise das fontes. Os documentos utilizados para o estudo são depoimentos de navegadores, mapas e, principalmente, cartas náuticas. Tal condição é justificada pelas poucas marcas físicas devido ao difícil acesso no território e pelos escassos documentos deixados. Acerca dos depoimentos, Soffiati reforça o exercício crítico pelo qual deve ser realizado pelo historiador durante a análise desse tipo de fonte.

A proposta inicial da obra é apresentar as características geológicas nativas da ecorregião de São Tomé no século XVI, localizada entre os rios Itaperimim e Macaé. O primeiro capítulo apresenta-se como o mais técnico exigindo alguns conhecimentos específicos da geografia ao conter informações sobre os elementos naturais. A presença dos mapas e imagens auxilia na compreensão das transformações na ecofisionomia, na distribuição hídrica da planície dos Goitacazes e dos ecossistemas nativos.

Após a descrição da formação geológica da região, o autor se detém na apresentação dos povos que habitavam o território no período anterior a chegada dos europeus. O maior destaque está para a tribo dos Goitacás cujas características físicas e comportamentais culminaram na criação no imaginário europeu como indivíduos dotados de crueldade. A relação entre homem e natureza nativos é apresentada como equilibrada, marcada pela adaptação dos povos indígenas aos componentes de ocorrência natural disponíveis.

Como havia discutido Warren Dean (1996), a presença humana na América gerou modificações no meio natural desde o início. Contudo, a exploração da natureza e a mão de obra escravizada pelos europeus evidenciam maior devastação de vidas americanas, humanas e não humanas. A demonstração de equilíbrio, levantada por Soffiati, pode ser entendida ao comparar a relação dos indígenas e dos portugueses com a natureza.

A obra destaca a abundante presença de rios, alimentos e animais para caça na região. Esse dado pode ser interpretado para justificar, ainda dialogando com Warren Dean, a ausência da preocupação dos povos nativos em “preservar” o meio. Esta característica contribui, de acordo com Soffiati, para o estilo de vida semissedentário dos grupos nativos, abrindo debate sobre a existência de uma economia paleolítica e neolítica específica da América. Dadas as características do continente, o autor aponta a inviabilidade de comparação com os modelos econômicos europeus.

Ao identificar as características dos povos nativos e sua relação equilibrada com o meio ambiente, parte-se para as transformações causadas no território após a chegada dos europeus, discutindo a relação entre portugueses, indígenas e natureza. De acordo com o autor, a disseminação do mito do mau selvagem atribuído aos Goitacás no século XVI, serviu de justificativa para a dominação desses povos na região. As causas do extermínio destes grupos indígenas são elencadas pela violência dos portugueses devido ao medo gerado pelo mito do mau selvagem, a resistência ao estilo de vida europeu e as novas doenças vindas da Europa.

O desequilíbrio com a natureza é marcado pelo autor como fruto das atividades desenvolvidas pelos colonizadores. A chegada de novos animais, como ratos e baratas e algumas espécies de plantas, causaram modificação e degradação dos ecossistemas. Esses acontecimentos levam a conclusão de que a chegada dos europeus no território causou o empobrecimento da biodiversidade e o extermínio dos povos nativos.

O capítulo reservado para a temática indígena é o mais longo da obra e aborda ainda a transfiguração do mito do mau selvagem, no século XVI, para o mito do herói fundador. Usa-se como ponto de partida a seguinte reflexão: “que fatores de ordem política e cultural levam os europeus dos séculos XVI e XVII a temê-lo e detestá-lo e a partir de fins do XVIII, os herdeiros dos europeus começam a construir o mito do bom selvagem e elegê-lo como herói fundante?” (SOFFIATI, 2019, p.52).

A resposta está nas correntes de pensamento de cada período. O século XVI é marcado pela hostilização ao diferente. Os anos seguintes, influenciados pelo Iluminismo e Romantismo e pela necessidade de formação de identidade dos Estados Nacionais, constroem a imagem dos indígenas como heróis fundadores dessas regiões. Para ilustrar a influência desses mitos no tempo presente, o autor apresenta a substituição dos símbolos portugueses para símbolos dos Goitacás na sociedade fluminense.

Após apresentar as características naturais e antropológicas nativas e a influência europeia no território, o autor discorre sobre a influência do meio ambiente sobre os portugueses. Representada por Pero de Góis, a capitania de São Tomé é discutida nos três próximos capítulos, nomeados A invasão europeia do norte-noroeste fluminense, O norte fluminense no século XVI e O norte fluminense num antigo roteiro náutico, respectivamente. O modo pelo qual as informações estão dispostas nos capítulos permite ao leitor visualizar como se deu a permanência dos portugueses na planície dos Goitacazes.

Nessas páginas são discutidos os caminhos traçados pelos portugueses para o conhecimento da costa do Brasil, o estabelecimento dos limites da capitania, os modos de ocupação portuguesa e a influência das condições naturais durante sua permanência. Uma das principais características da região estava na dificuldade de acesso, resultando na ausência europeia nos primeiros anos do século. A presença dos Goitacás foi outro fator que fez da passagem de Pero de Góis breve, desencadeando uma colonização tardia da região.

A incorporação do estudo do norte fluminense no processo de colonização da América relembra as pretensões dos portugueses anteriores à sua chegada no território. Esta abordagem possibilita a inserção do estudo local no global. A produção de mapas e cartas náuticas, bastante ricas no período, serviu de guia para o autor delinear o entendimento que os europeus tinham sobre a planície. Examinando os registros deixados pelos navegadores em diferentes épocas, Soffiati expõe o conhecimento que se tinha sobre a região, a partir das observações deixadas pelos colonizadores.

Os acidentes geográficos da costa brasileira foram, aos poucos, reconhecidos e orientavam a passagem europeia pelo território. A partir dessas reflexões, são identificadas e descritas algumas regiões específicas presentes nos mapas europeus sobre a planície, são elas o Baixo dos Pargos e o Cabo de São Tomé. O Baixo dos Pargos tinha seu perigo de navegação conhecido pelos portugueses, enquanto o Cabo de São Tomé servia como guia para os pilotos.

Os impactos das formações naturais são analisados por Soffiati para compreender as ações dos portugueses. A construção da sede da capitania na planície dos Goitacazes recebe o nome de Vila da Rainha, em homenagem à rainha de Portugal e, sua localização, também é influenciada pela formação geológica da região. Diferentes visões são expostas sobre o surgimento da comunidade, no entanto, os recursos metodológicos da Geografia e da História Ambiental são utilizados pelo autor para interpretar as informações sobre as descobertas do local.

No capítulo correspondente à sede da capitania, o que busca ser respondido é o ponto inicial da colonização da capitania de São Tomé. A tentativa de delimitar o local parte de análises arqueológicas que provocam no autor um incentivo aos estudos arqueológicos sobre a região, ressaltando as possíveis contribuições que a disciplina pode acrescentar para a história do Rio de Janeiro e do Brasil.

Por fim, o trabalho é encerrado com apontamentos sobre a incorporação da globalização ocidental no restante da América, na Ásia e na África. Os fenômenos discutidos estão concentrados nas relações culturais entre povos nativos e colonizadores, a cristianização, a exploração de mão de obra e de recursos naturais e a expansão do território português para a dominação das regiões.

A leitura da obra leva a conclusão de que os condicionantes que justificam a ausência europeia na planície dos Goitacazes nos primeiros anos do século XVI estão nas esferas ambiental, antropológica e econômica. O difícil acesso à região, o mito do mau selvagem e a facilidade de recursos para enriquecimento abundante em outros territórios, afastaram os portugueses do território fluminense. Essa perspectiva destaca o enfoque ambiental na pesquisa histórica para constituição de um saber geográfico e no estudo comparativo das regiões.

A obra do historiador Arthur Soffiati é um exemplo sobre as contribuições da história ambiental, ou eco-história, e da inserção da história regional em um movimento histórico mais amplo. Sua leitura é recomendável àqueles que buscam compreender às diretrizes metodológicas da eco-história e a perspectiva da história regional nos processos globais para o estudo das civilizações.


Referências

SOFFIATI, Arthur. O norte do Rio de Janeiro no século XVI: à luz da história mundial e da eco-história. Editora Autografia, 2019.


Resenhista

Cíntia Verza Amarante – Mestranda em História – Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho UNESP/Assis – Graduação em História – UNESP/Assis – Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SOFFIATI, Arthur. O norte do Rio de Janeiro no século XVI: à luz da história mundial e da eco-história. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2019. Resenha de: AMARANTE, Cíntia Verza. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 15, n. 29, p. 250- 253, Jan./Jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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