O Peregrino e o Convertido: a religião em movimento | Danièle Hervieu-Léger

A obra o Peregrino e o convertido foi publicada pela primeira vez no ano de 1999, tendo posteriormente traduções para várias línguas, como o português, italiano e alemão. Dentre outras publicações importantes da autora estão: Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental (1986); De l’émotion en religion (1990); La religion pour mémoire (1993); Sociologies et religion: Aproches classiques en sciences sociales des religions (2001); La religion en miettes ou la question des sectes (2001); Catholicisme français: la fin dun monde (2003); Quest-ce mourir? (2003) (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 07).

A autora demonstra uma vasta experiência nos estudos da religião desde a década de 70, tornando-se uma referência no estudo da modernidade, memória e tradição religiosa. A socióloga é presidente da École de Hautes Études de Sciences Sociales (Paris) e diretora da revista Archives des Sciences Sociales des Religions. A apresentação da segunda edição da obra é de autoria do professor Faustino Teixeira da PPCIR / UFJF, que realiza uma descrição do currículo da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger.

Faustino Teixeira em seu prefácio debate o tema central da obra de Hervieu-Léger: a dinâmica religiosa na modernidade, os seus processos de construção e fruição de identidades. Há uma recomposição de um imaginário religioso no decorrer do século XX marcado pela crise das religiões institucionalizadas aliado a uma religiosidade individual, surgindo a figura do que a autora denomina de “crentes passeadores” (HERVIEU-LÉGER, p. 08). Formou-se uma religiosidade flutuante em um contexto de sincretismos inéditos.

As publicações da autora e mais especificamente a sua obra O peregrino e o convertido remontam a um contexto marcado pela laicidade francesa, em que várias manifestações religiosas têm se mostrado com um caráter diferenciado das convencionalidades (principalmente quando se percebe a perda das identidades herdadas do contexto familiar). Modernidade não significa o desaparecimento da religião, muito pelo contrário, significa uma religião presente e em movimento, pois se tem verificado um levante de denominações religiosas diversas e o fascínio por assuntos espirituais e sobrenaturais.

Hervieu-Léger relata na introdução de sua obra uma experiência que vivenciou durante um curso de verão em um pequeno Estado chamado Principauté, localizado nos Pireneus, os vales de Andorra. Na região existem vilarejos isolados que já foram povoados no século passado, e a autora imaginava como seria essa vida isolada dessas comunidades, principalmente no inverno. Cada um desses vilarejos possui uma igreja, que seria o ponto central das comunidades, pois elas eram o centro de suas existências. Hoje, as igrejas se tornaram verdadeiros museus, lugares de memória dessas comunidades, que atrai um público diferente daqueles que as frequentavam: turistas, ambientalistas, viajantes sem destino, e pessoas em busca de uma peculiar espiritualidade com a inspiração dos Pireneus. Hoje as vilas são apenas a memória daquelas comunidades religiosas fervorosas cuja vida era regulada pela igreja. Hoje, esses visitantes que se sentem atraídos pela região, são aqueles oriundos de centros urbanos próprios da modernidade. Esse exemplo citado pela autora é crucial para entendermos a sua tese. Esse caso de Andorra, para a autora, é uma parábola da modernidade religiosa.

Os anos 70 foram marcados por mudanças nos estudos de Sociologia da Religião, ao se depararem com a modernidade secular, que ao mesmo tempo em que a ciência estava no seu altar, as crenças apareciam de forma flexível e ululante. Ao mesmo tempo em que as mudanças ocorriam em velocidade inalcançável, crescia uma aparente incerteza da sociedade. Na França, os estudos sobre religião no campo da Sociologia já auferiam destaque após a Segunda Guerra Mundial, quando a França, imergindo no ambiente moderno, percebeu o início do declínio paroquial.

Passou a se analisar a religião na modernidade além do desencantamento weberiano, analisando que existe um processo de recomposição de crenças a nível individual, com um caráter fluído e disperso. “A secularização dessas sociedades não se resume unicamente, já sabemos disso, ao encolhimento de uma esfera religiosa diferenciada. Ela se faz notar, igualmente, na disseminação dos fenômenos de crença […]” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 25).

A autora realiza alguns questionamentos fundamentais para o desenvolvimento de sua obra: como pensar nessa religiosidade individualizada em relação à pluralização de identidades religiosas que viajam na contramão das tradições políticas nacionais? Como podemos compreender nesse contexto secularizante o desdobramento de diversas religiosidades inéditas e móveis?

Em um primeiro momento em que se poderia estranhar a ideia de uma forte religiosidade na modernidade, temos que analisar a priori o que é a modernidade, e foi isso com o que a autora se preocupou. A primeira das características da modernidade no Ocidente, é definida por Hervieu-Léger pela racionalidade, pautada no pensamento científico. A segunda, seria o rompimento com a tradição, já que o homem passa a ser o condutor de seu próprio caminho e escolhas. A terceira característica seria a secularização, que promove uma cisão entre política e religião. Assim temos o que os sociólogos denominam de laicização, em que a sociedade não se submete mais às regras de instituições religiosas, deixando as suas tradições, normas e valores, vivenciando a sua própria espiritualidade, quando se torna assunto privado e autônomo. O indivíduo tem agora a plena capacidade de orientar seu destino. E para isso, foi a própria modernidade que contribuiu para que ocorresse, já que a autonomia do homem é afirmada quando o pensamento iluminista propõe a emancipação do homem em relação à religião. A própria modernidade tem ao longo do século XX possibilitado novas descobertas científicas anteriormente questionadas pela Igreja Católica, estimulando a curiosidade do homem contemporâneo na busca por respostas a fatos sobrenaturais. Esse seria um dos paradoxos da modernidade, que apesar de sua racionalidade científica e técnica, têm libertado o espaço para o imaginário porque também se mostrou um universo de incertezas. Os homens procuram preencher determinadas lacunas e cria expectativas que se desenvolvem através de novas formas de religiosidade. Assim, ele realiza “[…] novas apropriações das tradições das religiões históricas” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 40).

Por um lado, a modernidade desqualifica as grandes narrativas religiosas do mundo, e por outro, possibilita a expansão de diversas crenças. Por isso a autora julga importante esclarecer que secularização não significa uma queda da religião, mas um processo de reconfiguração das crenças. Assim, Hervieu-Léger propõe o que muitos sociólogos denominam de ‘modernidade religiosa’, a partir de inúmeros estudos realizados nas últimas décadas em vários países, que apesar das suas especificidades, pode-se perceber que há traços em comum. A modernidade religiosa parte do princípio de que há uma tendência geral à individualização e à subjetividade das crenças.

Hervieu-Léger esclarece que ocorre uma “bricolagem de crenças”, que caracteriza um período de desregulamentação da religião no seio tradicional. Esse fenômeno social é assinalado pelo movimento e mobilidade de crenças, que possibilitou o surgimento de dois sujeitos distintos: o peregrino e o convertido. São ambos os personagens deste novo panorama sociológico que fizeram o título da obra. O peregrino é um religioso em movimento, que realiza seu percurso a partir de suas escolhas individuais. Ele é caracterizado pela postura de “crer sem pertencer” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 12) e parte de percursos individuais espirituais, chegando a desenvolver uma sociabilidade religiosa, que passa a assumir também uma forma coletiva, ao agrupar-se com outros indivíduos por afinidades. Esses novos agrupamentos representam novas comunidades que se formam por afinidades sociais, espirituais e culturais. Esses agrupamentos são denominados por Michel Maffesoli (2014) de tribos pós-modernas, caracterizadas pela sociabilidade própria do findar do século XX, em que as pessoas podem mover-se entre grupos identitários. As sociedades contemporâneas estão vivenciando novas formas de agrupamentos sociais a partir da emoção compartilhada coletivamente. Esses grupos sociais assim agregados através da emoção e da sensibilidade comum, ao realizar atos e hábitos em conjunto, permitem criar uma “aura específica que serve de cimento para o tribalismo” (MAFFESOLI, 2014, p. 38).

A questão da individualidade do peregrino proposta por Hervieu-Léger não anula a sua jornada espiritual coletiva. Na verdade, o que a autora pretendeu esclarecer é que o peregrino se diverge do praticante, porque este último, exerce sua religiosidade regulamentado por uma instituição, uma prática fixa, repetida, e o mais importante, comunitária. No caso do peregrino, ele pratica sua religiosidade de forma voluntária, autônoma, variável, individual e móvel, tendo a plena liberdade de escolha individual de qual caminho quer seguir, sem receber qualquer influência externa em suas decisões, podendo traçar caminhos coletivos ou não. Mas o que temos percebido no panorama religioso contemporâneo é que existe uma tendência aos reagrupamentos emocionais, assim como nos mostrou Maffesoli.

Retornando às duas categorias sociológicas estipuladas por Hervieu-Léger, a segunda é a figura do convertido, que na visão da autora, é aquele que muda de religião, adere o caminho da religião ou se reafilia1 a uma mesma tradição religiosa que já possuía. A autora traçou esse segundo perfil porque percebeu que existe uma visível retomada das conversões a partir do final do século XX. Poderia aparentemente parecer um paradoxo, mas existem religiosos que buscam uma identidade religiosa, realizando a conversão. Mas essa conversão é marcada por uma “paisagem móvel de nossa modernidade religiosa” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 108). Assim, percebemos que o convertido também usufrui da liberdade oferecida pela modernidade, ao mudar de religião seja por rejeitar uma identidade religiosa herdada ou por simplesmente abandonar a sua religião atual por não concordar com ela em alguns aspectos, por se decepcionar com algo, e adotar uma nova. Outro indivíduo convertido pode ser aquele que nunca pertenceu a qualquer tradição religiosa e descobre a sua religiosidade em alguma identidade específica.

O que une ambas as categorias sociológicas é a questão da identidade religiosa que pode ser remanejada ou reconstruída a partir de “diversos recursos simbólicos colocados à sua disposição e/ ou aos quais eles podem ter acesso em função das diferentes experiências em que estão implicados” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 64). Os indivíduos passam a rejeitar identidades pré-definidas, construindo por conta própria seus caminhos. Essas duas figuras sociais ilustram o panorama religioso contemporâneo que está centrado no indivíduo. Esta é uma característica chamada pela autora de “nebulosa místico-esotérica” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 143), uma religiosidade centrada no indivíduo e na sua realização pessoal.

Então podemos conjecturar que o ambiente religioso contemporâneo não se concentra mais na figura do sagrado, ou a uma figura divina, mas se concentra na figura do próprio homem. Para Peter Berger e Anton Zijderveld (2012, p. 11) a modernidade foi associada ao declínio da religião, em vista do crescimento da fé na ciência. Mas essa teoria passou a ser refutada durante o século XX por muitos sociólogos da religião, já que se percebe a partir desse momento uma explosão de movimentos religiosos, principalmente no continente americano.

Então Berger e Zijderveld (2012) deixam claro que a modernidade não gerou o declínio da religião, mas a sua pluralização. Sua tese é a de que a modernidade pluraliza, refutando a tese de muitos sociólogos de que a modernidade seculariza (p. 12). Isso porque a modernidade e a globalização possibilitaram o trânsito e o dinamismo urbano, aliado ao advento da informatização, que possibilitou o acesso das pessoas à informação. Todos esses processos levaram a uma pluralidade inédita na história. A modernidade é marcada por um processo de reflexão pessoal permanente, pois as pessoas se questionam e redefinem a sua identidade constantemente.

Esses novos fluxos culturais são caracterizados por Lyotard (2009, p. 07-09) como um conjunto de mudanças socioculturais que caracterizam o rompimento de paradigmas modernos. Essas mudanças configuram uma reação aos problemas causados pelos ideais progressistas e positivistas da modernidade, desconstruindo as metanarrativas como o Iluminismo ou a religião. A ciência também perpassa por mudanças epistemológicas, caracterizadas por um momento de incerteza e autorreflexão.

Em relação a essa relação entre religião e ciência, assunto colocado por Lyotard, Hervieu-Léger acredita que existe uma nova aliança entre ambas. A autora propõe que o objetivo científico está de acordo com o objetivo da religião no contexto do século XX para o XXI: as novas práticas religiosas buscam a realização total das capacidades físicas humanas, como as experiências extra-corporais, comunicação com espíritos ou seres extraterrenos.

As correntes religiosas contemporâneas demonstram essa tendência a combinar a busca espiritual com um poder sobre o mundo e si mesmo, sendo para a autora, um aspecto essencial da reestruturação do individualismo religioso na modernidade. Muitos cientistas se interessaram por fenômenos sobrenaturais procurando explicá-los através da ciência, como as atividades cerebrais de médiuns. Diversas correntes acreditam que essas experiências são atribuídas apenas ao mundo espiritual, outras acreditam que são os mistérios da complexidade do cérebro humano que o conduz a determinadas experiências. Mas esses fatos nos remetem a uma aproximação entre ciência e espiritualidade, mostrando que ambas não se excluem, mas estão se comunicando. Esse é o cerne para entendermos a obra de Hervieu-Léger ao postular a modernidade religiosa que é a base epistemológica de seu livro.

A abordagem é inovadora e lança uma nova perspectiva para os estudos de religião na contemporaneidade. Mesmo que a pesquisa tenha se desenvolvido na década de noventa, ela traz uma discussão para o contexto religioso atual, pois os dados do Censo do IBGE de 2000 mostraram que a religiosidade no campo brasileiro está cada vez mais diversificada.

Hervieu-Léger tornou-se, portanto, referência nos estudos de Sociologia da Religião, compreendendo o contexto europeu e suas especificidades de forma global. Suas pesquisas influenciam muitos sociólogos brasileiros quando estes analisam o panorama religioso contemporâneo em seu território, devendo, portanto, entender que a modernidade não aconteceu da mesma forma nos dois continentes. É de extrema importância termos essa referência e nos dar conta dos estudos realizados na Europa, principalmente a esse de tamanha envergadura como a pesquisa de Hervieu-Léger, mas ao tratarmos a modernidade no Brasil precisamos nos libertar das amarras epistemológicas ocidentais, entendendo que existem outras modernidades, gerando formas específicas de religiosidade, o que cabe mais pesquisas futuras no assunto.

Nota

1 Nesse caso a autora cita o exemplo do protestantismo, em que o indivíduo possui essa mobilidade de transitar entre as suas vertentes.

Referências

BERGER, Peter; ZIJDERVELD, Anton. Em Favor da Dúvida: como ter convicções sem se tornar um fanático. Tradução Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. 171 p.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O Peregrino e o Convertido: a religião em movimento. Tradução de João Batista Kreuch. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015. 238 p.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Posfácio por Silviano Santiago. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 131 p.

MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. 338p


Resenhista

Pepita de Souza Afiune – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES/FAPEG. Mestra em Ciências Sociais e Humanidades pela Universidade Estadual de Goiás. Especialista em Tecnologias em EAD. Graduada em História. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O Peregrino e o Convertido: a religião em movimento. Trad.  João Batista Kreuch. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. Resenha de: AFIUNE, Pepita de Souza. Revista Mosaico. Goiânia, v. 12, p. 241-244, 2019. DOI 10.18224/mos.v12i0.6740. Acessar publicação original [DR]

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