O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/XVI) | Mário Jorge Motta Bastos

O professor Mário Jorge da Motta Bastos tem atuado no estudo da doença (a peste1), tema que o move desde sua graduação no ano de 1989 até o termino de seu doutorado e também hoje como professor associado II na Universidade Federal Fluminense onde atua desde 1992. Em seus estudos juntamente com seus alunos nos laboratórios de pesquisa que integra, procurou desenvolver conhecimentos sobre a sociedade do medievo, principalmente nas sociedades ibéricas, acerca dos impactos das levas epidêmicas tiveram sobre as populações, seu imaginário e as produções artísticas sobre o tema, e sobre a atuação do poder monárquico junto aos súditos a fim de deter as epidemias, seus efeitos danosos ao corpo social e como meio e desculpa para acelerar o processo de unificação do poder na figura do suserano. Todos estes estudos resultaram em dois livros sendo o primeiro e nosso objeto de estudo O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/XVI)2 de 2009. O volume começa com o prefácio do celebre historiador marxista Ciro Flamarion Cardoso cujo autor fora aluno e que faz questão de ressaltar que apesar de focar massivamente na questão do discurso régio – construído para legitimação das ações de combate ao contágio e a sucessivas investidas de centralização do poder sob a figura real- o professor Mário não agiria à maneira dos pós-modernos que creem ser o discurso que constitui a realidade e não o contrário. Que buscaria “… estabelecer nexos.” “… entre a perspectiva cristã relativa à doença e à peste em particular…”. O prefaciador ressalta também que não se detendo somente no discurso, mas que estariam embasados em dados estatísticos e demográficos demonstrando a articulação entre o discurso e a materialidade a que ele representa.

O autor procura na primeira parte de seu livro demonstrar que a doença é o discurso que se constrói sobre ela, ou seja, ainda que não negasse a materialidade das chagas e da experiência dolorosa que é individual e também coletiva uma vez que se abate no corpo social e vítima entes queridos, o “o que é”, “como se pega”, “como evitar” são fruto do discurso que se constitui sobre ela e o estudo sobre a produção do discurso não pode prescindir da análise das condições em que este discurso foi construído tais como condições sociais, seu trânsito na sociedade e as interferências que sofre e ocasionam. O professor Mário demonstra, até pela apreciação de obras de outros autores que se debruçaram sobre o fenômeno da peste e da história cultural como Burke, Chartier entre outros, que não havia um discurso único sobre o aparecimento do contágio e seus vetores e formas de debelarem- na, porém, esses discursos não eram únicos e tendiam a interagir, muitas vezes as explicações expostas tinha um caráter místico, religioso como a ação do mal, a punição divina. Havia também o discurso de fundo médico- científico que provinha da tradição hipocrática- galênica e que apesar da interação existente entre os diversos discursos, isto não se dava de maneira pacífica e por vezes resulta em embates.

O autor ressalta como o termo peste3 pode ser polissêmico, ainda que seus efeitos sejam bem precisos e conhecidos, e como a sociedade do medievo conviveu constantemente com cataclismos e epidemias, Mário levanta diversas correntes interpretativas do peso que os ciclos epidêmicos tiveram nas profundas mudanças que esta vinha sofrendo, ou se foram resultantes da “depressão do fim da idade média” (BASTOS apud FLAMARION; BRIGNOLI et al., 1984). Os dados levariam enganosamente alguns autores a pensar que foram nos grandes centros urbanos que o flagelo teria sido mais fatal, mas os dados espaços coletados recentemente demonstram a grande letalidade da pestilência também no campo e diverge também quanto o peso da peste na queda demográfica de Portugal cuja qual não seria fator único ou primordial, mas que viria a acirrar esta tendência. Muitos dos que viam seu fim se aproximar com o contágio legavam seus bens na terra para irmandades e confrarias a fim de alcançar graças nos céus o que fez com que a igreja fosse a maior beneficiada dos testamentos dos vitimados pela chaga.

O autor salienta que a partir do século XIV deixaram de ocorrer pandemias (surtos de caráter mundial – para o território mundial conhecido até então) e que a peste agora passava a ocorrer com menor intensidade, numa constância que até então era desconhecida, mas que por vezes era mais fatal do que nos períodos de pandemia. Mário Jorge debate e se posiciona de maneira contrária aos que dizem que o desenvolvimento da epidemia teria sido autônomo e não devido a fragilidade dos organismos desnutridos, debilitados por longos períodos de extenuante trabalho como ocorre hoje, ressalta o autor. Ele afirma ainda que sobreviver a pestilência era mais provável não só para as pessoas de organismo mais robustos e nutridos, como os das classes abastadas, como estes podiam também transladar seus organismos para locais onde a praga estivesse menos potente ou onde tenha arrefecido, como é o caso da própria família real que se deslocava pelo reino para fugir à pestilência. Neste caso sim, a morte era atenuada no campo pela própria capacidade de produção e ou de coleta de algum meio de subsistência tal como no litoral. A necessidade de definição e sistematização da doença para seu efetivo combate possibilitou e viabilizou a supremacia da monarquia nessa empreitada de constituição do que era a doença e por fim erradica- lá. Sua afirmação como discurso qualificado se fez muitas vezes pelo uso da força com penas físicas e pecuniárias.

Das explicações mais comuns para o flagelo era o do pecado cometido que provocaria a ira divina da qual a peste era prova inequívoca. Esta era uma das diversas tentativas de explicação para a origem do mal. Mário Jorge nos lembra de como já nos é bem conhecido a instituição nesta época da sociedade tripartida (Oratores, Belatores e Obratores) era de se esperar que a igreja tentasse tomar para si a primazia de compor o discurso orientador da causa e tomar a direção dos “trabalhos” para sanar o mal, contra um campesinato que ainda tinha sua religião muito ligada ao que Jacques Le Goff chamou de cultura folclórica, este era um momento chave para a cristianização dessas populações. O discurso cristão de peste como castigo divino caiu do céu. Inscrito numa longa duração o discurso punitivo inscrevia a peste num contexto de punições divinas como as do antigo testamento, donde as vagas da epidemia seriam como presságios. Por vezes as homilias arrolavam o “envenenamento do ar” como uma das causas do contágio, está era uma das explicações de fundo científico, mas como foi dito nenhum dos discursos estava solto no ar, estavam interagindo e se retroalimentando, contudo, na versão religiosa o envenenamento era fruto de um mal oculto. O medo ocasionado pela epidemia podia suscitar ondas de fúria, desesperança e relaxamento dos costumes e uma vez definida a causa, reduzi- se a cura a deliberada vontade e da medicina divina.

O autor nos dá conta de que foi ainda durante a grande epidemia de 1348 que o discurso médico requisitou para si a autoridade de verdadeiro conhecimento sobre a pestilência, pretendendo afirmar- se como um conhecimento diverso dos de origem religioso e supersticioso. A divulgação desse tipo de conhecimento e de seu jargão, até então restrito as universidades, foi importante não só como tentativa de minimizar os efeitos do surto como também proliferar uma maneira cientificista de pensar, o que viria a tornar- se um gênero literário que iria se espalhar por todo o ocidente donde o Regimento proueytoso contra ha pestenença, Recopilaçam das Cousas que convem guardarse no modo de preservar a Cidade de Lixboa: E os são E curar os que esteuerem enfermos de Peste e Portugal Cuidadoso, e lastimoso(sic)4 são os exemplos mais destacados para o caso português. A partir deste ponto Mário Jorge passa a discorrer sobre algumas ações tomadas pelo poder régio em face e orientado pelo discurso científico do qual procura se cercar sem, toda via, dispensa o discurso religioso sobre o qual se funda a própria autoridade régia. O autor também diverge de posições que criam ser a medicina da época pedante e ineficaz como o querem fazer crer outros autores, para tanto basta ver que ao lado de atitudes completamente ineficazes estavam outras muito proveitosas como os mutirões de limpeza pública, a demolição de imóveis onde se manifestava a peste que podiam ser tocas de roedores contaminados, ainda que somente no fim do século XIX que se viria, a saber, que eram os roedores os hospedeiros do bacilo pestoso que causava a doença descoberto por Yersin e Ktasato. Muito das explicações científicas sobre a doença bebiam nas tradições da antiguidade como o próprio discurso religioso.

Mário nos relata que com o intuito de impedir as levas epidêmicas, o poder régio obteve o ensejo para levar a curso a política de centralização do poder que já era central na figura do monarca, mas que tinha de ser compartilhado com os nobres, e mais, obteve a oportunidade de conformar ações e hábitos de grupos tidos como perigosos. Dentre as ações estavam à limpeza pública, a proibição de aglomerações como bailes, festas, mas principalmente, possíveis aglomerações de negros e a atuação de prostitutas, ou seja, os históricos indesejados, mas necessários. Na parte de seu livro reservada ao discurso no nível da autoridade e interdições o autor procura por meio de tabelas referentes a levantamentos estatísticos de usos de certas palavras fazer um levantamento semiótico do discurso a fim de identificar o caráter normatizador e a ênfase imperativa das sentenças. “Ambos, discurso e doença, produzem- se numa relação dialética” (Bastos, 2009, pp85). Segundo Mário a doença legitimava o discurso, mas impunha- lhe o desafio de sua superação, já o discurso científico começa a fundamentar- se sobre o medo das populações abatidas, contudo, havia a necessidade de não sublevar este medo para que o mesmo não se tornasse meio para a negação do próprio discurso.

Na segunda parte de sua obra Mário mostra o desdobramento dos discursos na ação do poder régio a fim de viabilizar a primazia no combate contra o mal de forma centralizada e para tanto se procurava ligar a figura da realeza e suas ações ao combate e eventual recuo da pestilência, como por meio das sagrações e entradas nas diferentes regiões do reino, pois o soberano “[…] encarnava o bem-estar do povo” (BASTOS apud FEDOU). Todo este rito e as ações de saneamento a ele vinculado tinha um caráter utilitarista orientado a um fim que era o de saneamento e proteção do reino e seus membros como se todos pertencessem a um mesmo corpo social e do qual o monarca seria a cabeça, todas essas ações seriam guiadas pelo direito de conquista de uma monarquia que estaria em vias de tornar- se absoluta. As imagens vinculadas ao soberano eram várias e podiam receber reforço dependendo das ocasiões e dos ocorridos, havia a imagem do rei guerreiro, justiceiro, sagrado e sábio, todas capazes de serem mobilizadas quando necessário para a legitimação e reforço dos laços de fidelidade ao monarca. Outra faceta atribuída aos monarcas dessa época e que se cria ser uma especificidade dos monarcas ingleses e franceses foi a taumaturgia legada a D. Pedro duque de Coimbra pelo papa Martinho V, ou seja, a cura das escápulas pela imposição das mãos do nobre, e apesar de em Portugal esta prática não ter sido corrente não deixa de ser interessante como mais esta faceta agregava a figura real. Também eram atribuídos aos soberanos, qualidades que os ligavam as artes e a cultura, donde o próprio príncipe podia ser fonte de inspiração e produtor de tais obras de bons ensinamentos. Mário ressalta que todas estas inovações e centralização com seus avanços e retrocessos foram levadas a curso pela dinastia de Avis que promoveu e viabilizou as camadas de “filhos segundos” da nobreza que antes eram legados à vida monástica ou obscuridade e que esta nobreza de agora era tão conturbada como a sua predecessora.

Assim como nesse momento as diversas imagens que eram empregadas serviam para a efetivação dos atributos conferidos a realeza, este foi um momento histórico para utilizar estas conformações para o combate à peste e o medo que dela suscitava como meios de enfrentar um desafio tão grande quanto, se não maior, que era o embate à aristocracia e seus poderes senhoriais que se mostravam verdadeiro entrave ao absolutismo e ao fim do antigo regime. A ação foi efetiva no sentido de centralização “… num polo único” (BASTOS, 2009, pp. 110) e excludente de alternativas à vias concorrentes como dos demais aristocratas, unidade construída sob a hedges do soberano seguindo a lógica do monarca sendo o primo entre pares, portanto, primeiro dentre outros como ele. Mário Jorge refuta ser esta perspectiva um retorno à hipótese de aliança da monarquia e da municipalidade contra os poderes senhoriais e sim que a centralização foi um processo que se deu paulatinamente desde a instituição monárquica, faces opostas e complementares, de continuísmo e renovador do poder monárquico. Estas ações estariam em curso logo nas primeiras dinastias. Sinal desta fértil articulação que se deu ao redor da figura do monarca foi a ação das municipalidades em produzir emendas legais que seguiam linhas gerais semelhantes as das produzidas pelo poder central. A redução da autonomia das câmaras pode explicar esta tendência uma vez que na tentativa de seguir os ditames do monarca procurariam evitar a nomeação de algum funcionário régio em seus domínios. Mas a vereança foi se restringindo a uma oligarquia cada vez mais ligada ao Monarca.

O que Mário tenta demonstrar é que a doença não funda a autoridade, reforça- a. Era necessário poder e habilidade para lidar com a peste e sua capacidade de desarticulação da vida cotidiana daquelas populações, logo naquelas localidades onde a praga se fazia sentir com mais força era onde se podia potencialmente levar a as ações régias mais facilmente a cabo. Procurou-se manter registros de mortes, organizar limpezas urbanas, interditar imóveis e punir fisicamente quem desobedecesse aos ditames régios a fim e combater a epidemia. Até o discurso religioso sobre a doença foi apropriado com o intuito de legitimar a figura real, como no caso do cerco de Lisboa pelo reino de Castela que se seguiu um surto da doença e teria ferido mais o exército invasor do que aos portugueses demonstrando o favor divino à dinastia de Avis. Tanto o é que o próprio monarca teria se intitulado um defensor da fé, condenando os atos de idolatria e outros erros que pudessem atrair a “doença castigo”. Portanto para Mário Jorge fica claro que:

Não se trata, portanto, de negar o recurso ao sagrado, o recurso da fé e da piedade individual como pauta fundamental à preservação da ordem e da saúde, mas de ancorá-lo num suposto livre arbítrio, que retira força das referências médico e religiosa submetendo-as a deliberação monárquica. O discurso régio elabora- -se num processo dialético no qual investe e desinveste as autoridades correntes, impondo a sua, reforçada pelo poder do Estado (BASTOS, 2009, p. 121).

Quando a realeza investia mais em um discurso em detrimento de outro, como nos caso da oposição entre os discursos médico e religioso, podia correr o risco de ser atacado por uma das partes ou por ambas, mas tinha a capacidade de reação e autoridade para chamar um dos grupos à reflexão como foi o caso do documento “Leal Conselheiro5 ” que procurou resgatar a orientação do clero. Quanto ao discurso médico: o monarca o utilizava, mas não dava autonomia de ação a seus interlocutores sempre os mantendo dependentes da sanção do poder real. Buscou coibir práticas tidas como pagãs de produção de remédios com ervas selvagens, outras beberagens e práticas curandeiras. Nomeou cidadãos com poder de polícia para investigar e zelar pela higiene pública. O rei educava pelo exemplo. Quando alguns religiosos diziam que a peste era sinal da ira divina e que ficar era sinal de resignação aos desígnios divinos os próprios monarcas fugiam das cidades onde houvesse infestação e passou a estimular esta fuga “temente” a quem a pudesse praticar segundo fontes foi também por ordem do monarca que se erigiu o primeiro hospital de infectados, instituição de caráter segregado onde eram internados de forma compulsória adoentados que logo faleciam e tinham os leitos ocupados por outros desafortunados.

Mário termina por concluir que a doença vinha desarticular a vida cotidiana e seus efeitos surto após surto eram entronizados pelas populações que procuravam construir elas próprias um discurso seu de explicação para as vagas epidêmicas. Que discurso religioso, por meio da igreja, exortava a utilização da “doença castigo” a fim que o homem retornasse a deus, donde ela seria a guia. “O tempo da peste era o tempo da purificação […]” (Bastos, 2009, p. 131). O discurso médico, ainda que não negasse a dimensão religiosa, procurava angariar para si a premissa de discurso orientador das ações de combate à doença. Por sua ação um novo conjunto de palavras e ideias foi difundido no ocidente tornando os textos e ideias científicas mais populares. Por seu turno os monarcas, da dinastia de Avis principalmente, em seu curso de centralização Estatal subjugara e articularam ambos os discursos e seus produtores que foram postos em ação por duas causas, o combate a peste e a valorização do poder central que os articulavam em uma relação dialética que fez fortalecer a realeza em seu processo de avanço sobre os poderes senhoriais dispersos e construção da figura monárquica como articulada e intimamente ligada a cada instância da vida cotidiana, religiosa, cultural, estatal entre outras. Para Mário “Centralização em tempos de peste” seria um título possível pela atuação do poder monárquico e o Estado que dele resultou.

Notas

  1. A peste negra, peste bubônica, ou por vezes apenas Peste, é uma doença provocada pelo bacilo (bactéria com formato de bastonetes) Yersinia pestis que tem como hospedeiro roedores. A doença pode ser transmitida pelo consumo de carne destes animais portadores do bacilo e, principalmente, pela picada de pulgas que habitam os corpos desses animais. Diversos surtos epidêmicos varreram a Europa no século XIV. A peste era chamada de negra porque ela causava manchas negras na pele das pessoas, fruto da infecção provocada pelo bacilo. Conhecida também como peste bubônica por provocar bubões ou bulbos, ou seja, infecções no sistema linfático, sobretudo nas axilas, virilhas e pescoço. Já o termo Peste, unicamente, se configurou como uma personificação da doença como possibilidade cotidiana de morte.
  2. Grifo meu.
  3. Idem.
  4. Ibidem.
  5. Ibidem.

Resenhista

Carlos Alberto dos Santos Muniz – Licenciado e bacharel em história, pós-graduação em educação. Professor de educação básica e educação popular.


Referências desta Resenha

BASTOS, Mário Jorge Motta. O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/ XVI). Niterói: Coleção Biblioteca; EdUFF, 2009. Resenha de: MUNIZ, Carlos Alberto dos Santos. Contraponto. Teresina, v. 10, n.1, p.563- 568, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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