O poder na aldeia. Redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil-Itália) | Maíra Ines Vendrame

René Gertz, um dos maiores estudiosos da imigração e da colonização alemã no Rio Grande do Sul, recentemente elaborou uma catalogação e, com isso, tornou disponível on line a bibliografia científica editada no Brasil sobre seu principal objeto de pesquisa. Foram catalogados sobre o tema da imigração e colonização alemã em torno de 3750 publicações. iii

É muito provável que, se alguém se esforçasse para compilar uma bibliografia sobre a imigração e colonização italiana no estado do Brasil Meridional, o resultado seria análogo, ou o elenco de produções, quem sabe, ainda mais extenso. Frente a uma produção que poderíamos, sem dúvida, definir como “inacabada”, como fez alguns anos atrás Matteo Sanfilippo, referindo-se àquela relativa à emigração italiana tout court num único biênio iv, é justificável portanto perguntarmo-nos o que mais possa existir de um livro, como esse de Maíra Ines Vendrame, aprofundando un caso singular de estudo – o da Colônia Silveira Martins – num campo já amplamente discutido da historiografia, ou o que se pode dizer ainda da história da imigração italiana no Rio Grande do Sul?

Na verdade, por meio de uma análise que utiliza os melhores recursos da microhistória, como exemplo, o cruzamento de fontes de diversas matrizes, o livro de Vendrame apresenta resultados novos e originais, além de que oferece aos estudiosos do tema uma série de questões de extrema importância. v

O referido livro é constituido de sete capítulos. O poder na aldeia… toma característica de um fato jornalístico, acontecido em 1899, numa colônia riograndense habitada quase exclusivamente de originários do Vêneto, denominada Silveira Martins: o homicídio, envolto em mistério, do pároco local, o veronês Antonio Sorio. Partindo desse fato, Vendrame inicia suas buscas, de um lado, na biografia de Sorio, descobrindo ser uma figura complexa, capaz de constituir-se num leadership e exercitar um poder na comunidade a partir de seu status de religioso; de outro, em torno de duas hipóteses, muito diferentes entre si, sobre a responsabilidade do crime, formuladas, à época, e permanentes na memória da região como “crime de honra” cometido por familiares de uma moça que o padre havia engravidado, ou então, um crime ideológico, obra de membros expoentes da maçonaria local.

Desse modo, a autora reconstrói, com grande acuidade, as complexas relações familiares e sociais existentes na colônia com o objetivo não tanto, evidentemente, de resolver a controvérsia a favor de uma ou de outra versão, mas, sim, de interrogar-se sobre temas pouco questionados nos contextos de emigração, em particular, como foram as zonas de colonização do Brasil Meridional no período da imigração em massa (1875- 1920). Em particular, quais eram os códigos de comportamento moral aceitos e as “sanções sociais” aplicadas em caso de violação deles? Particularmente, como funcionavam os mecanismos de controle familiar e social nas comunidades rurais “transplantadas” e que eram verdadeiros enclaves em territórios de fronteiras, nos quais, o Estado não detinha ou não era capaz de exercer o monopólio da violência legítima?

Fruto de uma investigação e de uma pesquisa arquivística e bibliográfica de grande expressão, que, como não poderia deixar de ser, mas nem sempre presente em estudos como esse, foram conduzidos in primis no contexto de proveniência dos emigrantes radicados em Silveira Martins, ou seja, no Vêneto, em particular, na Província de Treviso, e, utilizando, como já falamos, diversidade de fontes como as de cunho judiciário (os autos dos processos), as cadastradas (os registros de compra e venda das terras), aos registros de batismo e matrimônio, Vendrame consegue oferecer um quadro das intensas ligações e vínculos, sobretudo familiares, que mantinham unida a colônia, mas também dos conflitos que se faziam presentes e as estratégias para sua resolução. Desse modo, a conclusão a que chega a autora é muito clara: “na sociedade colonial dos imigrantes italianos, punições privadas e violências fisicas eram praticadas como mecanismos de censura para resolver impasses ligados à questões de honra familiar” (p. 26).

Esse recurso à justiça ao modo “faça você mesmo” (fazer justiça com as próprias mãos), nas colônias de imigrantes, não tem sido analisado com profundidade por historiadores no contexto do Brasil Meridional. Vendrame o faz com grande propriedade, bem como, nos dois últimos capítulos do livro, analisa também outros casos de violência presentes na região de colonização italiana, em particular, em Silveira Martins e Caxias do Sul, todos correlacionados às presumidas violações dos “códigos de honra” das comunidades.

Um dos casos mais graves analisados foi um linchamento de um brasileiro (autóctone) considerado responsável pela agressão a uma adolescente de 14 anos, de origem italiana, a qual veio a falacer em razão dos ferimentos. Sem aguardar as investigações das autoridades locais, familiares e vizinhos da vítima organizaram uma verdadeira caça ao homem, a qual se conclui somente com o linchamento do presumido autor do crime, que teve seu corpo brutalmente esquartejado, queimado e exposto por vários dias como macabra admoestação em toda a colônia.

Em torno da especificidade da colonização Vêneta no Brasil, Vendrame coloca em xeque, ou seja, demonstra que não são verdadeiras uma série de simbologias e representações das classes dirigentes vênetas e brasileiras, mas também autorepresentações da parte dos mesmos imigrantes, as quais descreviam o camponês vêneto como trabalhador indefeso, dócil e submisso, que não fazia uso da violência senão quando era obrigado a exercê-la. Tal interpretação também é discutida e contestada nos estudos pioneirísticos de Piero Brunello.vi Esse demonstrou que a representação do camponês vêneto como dócil foi produzida e retratada de uma forma imaginada, sem correspondência com a realidade. Dentre outras questões, basta ver as relações que se produziram com a população indígena local, em que os ditos dóceis e indefesos vênetos estiveram manchados de crimes e omicídios.

Frente a todos os estudos, como esse de Vendrame, que adotam um referencial micro-histórico, muito próximo a um singular case study, torna-se inevitavel que nos interroguemos sobre em que medida tal caso possa ser considerado singular ou, ao contrário, paradigmático? Pode-se dizer que o livro responde fazendo surgir outras questões e colocando outros interrogativos que se tornam um bom ponto de partida para novas pesquisas.

Notas

iii Cfr. http://www.renegertz.com/publicacoes/textos/17-textos/96-bibliografia-imigracao-colonizacaoalema-rs.

iv Matteo Sanfilippo. Una produzione sterminata: 2009-2010. In: “Archivio storico dell’emigrazione italiana”, n. 7, 2011, pp. 150-156.

v É importante enfatizar que o livro é uma versão reelaborada de sua tese de doutoramento em História, defendida em 2013, junto a Pontifície Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

vi Piero Brunello. Pionieri. Gli italiani in Brasile e il mito della frontiera, Roma: Donzelli, 1994.


Resenhista

Federica Bertagna – Doutora em História. Università degli Studi di Verona. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VENDRAME, Maíra Ines. O poder na aldeia. Redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil-Itália). Prefácio de Giovanni Levi. São Leopoldo: Anpuhrs-Oikos, 2016. Resenha de: BERTAGNA, Federica. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 19, n. 2, p. 352-355, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

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