O que o dinheiro não compra – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: BERTONCELLO, Leandro da Silva Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 191-194, jan/abr, 2014.

Michael Sandel é uma das mais renomadas autoridades da filosofia no contexto atual. Ele é mais conhecido em função do curso Justice, ministrado na Universidade de Harvard, disponível na internet no site <http://www.justiceharvard.org/>. Para um auditório lotado, Sandel lança a polêmica sobre questões, como: A tortura é justificável? ou Você furtaria um remédio de que seu filho necessita para sobreviver? ou, ainda: Às vezes é errado dizer a verdade? No seu mais recente livro, O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado (traduzido para o português por Clóvis Marques e publicado em 2012 pela Civilização Brasileira), Sandel analisa e critica a crescente mercantilização da vida moral. Demonstra, por exemplo, que, em algumas unidades carcerárias nos EUA, os presos podem pagar para desfrutar de acomodações melhores; casais estadunidenses podem pagar por uma barriga de aluguel na Índia, onde tal prática é permitida; na União Europeia, uma empresa pode pagar 13 euros pelo direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera.

O autor reflete que, após o fim da Guerra Fria, quase tudo passou a poder ser comprado e vendido, e que os mercados passaram a governar nossa vida como nunca. Dois motivos são apontados para a preocupação com a invasão pelo mercado: a desigualdade, pois os pobres ficam cada vez mais afastados da influência política, de um bom atendimento médico, de uma casa em um bairro seguro e de escolas de qualidade (a distribuição de renda adquire importância maior); e a corrupção, pois os mercados corrompem ao estabelecer preços para coisas da vida, com o descarte de valores não vinculados à compra e venda.

Sandel discute que certas coisas não podem ser colocadas à venda, como a natureza, a saúde, a educação, a vida familiar e os deveres cívicos.

Afinal, para decidir o que o dinheiro pode e o que não pode comprar, é necessário ter em mente que nem tudo pode ser tratado como mercadoria, ou como instrumentos de uso e de lucro. A escravidão era ultrajante porque não tratava os seres humanos de maneira adequada. Não se colocam à venda os deveres da cidadania: se alguém for convocado para participar de um júri, não poderá contratar um substituto. Os eleitores não têm o direito de vender seu voto, pois não é propriedade privada, mas sim, dever público.

Alguns casos, nos quais sobressai a lógica de mercado, são estudados no decorrer do livro. O Teatro Público de Nova Iorque apresenta encenações gratuitas de peças de Shakespeare. Formam-se filas para a obtenção de senhas, o que deu origem a pessoas que entravam na fila para vender seu lugar por até 125 dólares. A maioria dos economistas não veria nada de errado nisso. Há dois argumentos a favor: um é a liberdade individual, segundo o qual as pessoas são livres para comprar e vender o que quiserem; outro, de caráter utilitário, afirma que as trocas no mercado da fila beneficiam tanto compradores como vendedores.

Ocorre, porém, que a prática acaba sendo injusta para quem pretende ver a peça gratuitamente ou não pode pagar os 125 dólares. Além disso, algo se perde quando o teatro público e gratuito se transforma em mercadoria e deixa de ser uma celebração cívica.

Uma fundação caritativa oferece a mulheres viciadas em drogas a quantia de U$300 para serem esterilizadas, sendo que mais de três mil mulheres já aceitaram a proposta. Muitas críticas são feitas, por entender que o dinheiro não ajuda as mulheres a superarem o vício, mas antes o financia; além disso, o programa está voltado a bairros pobres, o que aumenta o caráter coercitivo. A fundação se defende dizendo que ninguém é esterilizado contra a vontade, e que se as viciadas não estão em condições de fazer uma escolha quanto à oferta financeira, também não estariam quanto à gestação e criação de filhos.

No âmbito da preservação ambiental, a lógica de mercado também se faz presente. Sandel questiona se os governos deveriam multar empresas que excedem os limites de emissão de gás carbônico, ou então, criar autorizações de poluir negociáveis. Esta última foi a proposta estadunidense na Conferência de Kioto, em 1997. Em 1990, o presidente Bush já havia promulgado uma lei que, em vez de estabelecer limites de emissão de dióxido de enxofre nas usinas de energia a carvão, autorizava a comprar e vender licenças para poluir com empresas congêneres. A ideia foi bem-sucedida, mas ainda na década de 90 as atenções se voltaram para o aquecimento global. A autorização para que um país polua mais caso compre de outros o direito de poluir, faz com que a natureza seja tratada como mero instrumento e afasta o espírito de sacrifício necessário a uma ética ambiental global. Além disso, é mais barato substituir lâmpadas de querosene em aldeias indianas do que reduzir as emissões de carbono nos Estados Unidos. Os países ricos podem seguir poluindo, dessa forma.

Por que não pagar uma criança para tirar boas notas ou ler um livro? A economia ensina que as pessoas reagem a incentivos e, nesse caso, a criança seria motivada a estudar. Mas a preocupação é que essa norma de mercado poderia levar as crianças a pensarem no estudo como uma forma de ganhar dinheiro e, assim, comprometer o gosto pela leitura.

Na proteção do rinoceronte negro, espécie em extinção, também houve adesão aos recursos de mercado. Em 2004, o governo sul-africano passou a autorizar caçadas a esse animal pela polpuda quantia de U$ 150 mil. O rinoceronte negro é muito valorizado pelos caçadores devido à sua periculosidade e dificuldade de abate. O sistema funciona assim: os fazendeiros são autorizados pelo governo a vender aos caçadores o direito de abater rinocerontes e, desse modo, têm um incentivo para criá-los, cuidar deles e afastar os caçadores ilegais. Sandel argumenta que a lógica de mercado fica incompleta sem uma perspectiva moral.

Embora haja o efeito positivo de preservar a espécie, há também o fato de esse objetivo ser buscado pela via do prazer perverso de caçadores ricos.

O que o dinheiro pode e não pode comprar? Um exemplo: a amizade. Um amigo comprado não é a mesma coisa que um amigo verdadeiro. Um site utilizava fotos de modelos, sem autorização, para vendê-las como “amigos” no Facebook, de modo a aumentar a popularidade de quem as comprava. Há também o Prêmio Nobel. Suponha-se que alguém desejasse muito ganhar o prêmio e estivesse disposto a comprá-lo. Não teria o mesmo valor, pois o comércio faria com que o prêmio perdesse seu caráter honorífico.

Sandel aponta dois argumentos como objeções ao mercado. Comprar um rim, por exemplo, não compromete seu valor, mas esse mercado explora os pobres, cuja decisão de vender um rim pode não ser inteiramente voluntária. Trata-se do argumento da equanimidade, segundo o qual o contexto da desigualdade gera condições injustas de barganha. Ou então, esse mercado promove uma visão degradante da vida humana, como se fosse uma coleção de partes avulsas. É o argumento da corrupção, que se centra no caráter dos bens e nas normas que devem governá-los, pois mesmo que as relações sejam justas, há coisas que o dinheiro não deve comprar, por estarem imbuídas de valores alheios ao mercado.

Por outro lado, há dois princípios do credo de mercado: o primeiro é que a comercialização de uma coisa não a altera. O dinheiro não corrompe, e as relações de mercado não sobrepujam normas alheias a ele. Ao contrário, o mercado aumenta a utilidade da qual as pessoas podem desfrutar. O segundo é que o comportamento ético é uma mercadoria que precisa ser economizada, ou seja, não devemos contar demais com altruísmo e atitudes semelhantes, pois são bens escassos que se esgotam com o uso. Assim, se as pessoas forem pagas para oferecer sangue, os impulsos altruístas estarão disponíveis para quando precisarmos.

Sandel critica a propaganda, que estimula as pessoas a satisfazerem seus desejos, ao contrário da educação que instiga a refletir criticamente sobre seus desejos para contê-los ou aprimorá-los. Aduz que está difícil formar cidadãos com capacidade crítica em relação ao mundo que os rodeia. Conclama a discutir abertamente o significado de bens e práticas sociais que merecem ser valorizados, para que o mercado não passe a tomar decisões em nosso lugar. É preciso pensar a sociedade como um todo. Queremos que tudo esteja à venda, ou preservaremos valores que estão acima do mercado?

Leandro da Silva Bertoncello  Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), RS, Brasil. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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