O rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América: 1640-1720 | Rodrigo Bentes Monteiro

Publicado em 2002, O rei no espelho, de Rodrigo Bentes Monteiro, parte da análise de movimentos de caráter contestatório, ocorridos em Seiscentos e Setecentos, nas possessões americanas de Portugal, a fim de perscrutar as relações entre os vassalos sediados em diferentes regiões da América portuguesa e o Estado metropolitano, em momentos de crise política no âmbito europeu.

O autor parte da assunção de que, no tocante ao Brasil, há de fato possessões coloniais, não possessão, pois, adotando a formulação de Ilmar Rohloff de Mattos referente à noção de região, concebe social, política e economicamente a colônia americana como conjunto de enclaves de colonização lusa na América e busca, a partir de tal assunção, compreender como as diferentes realidades regionais implicaram formas diferenciadas de relacionamento entre vassalos e Coroa.

Uma outra questão a ser destacada no trabalho ora analisado é a exploração, por parte do autor, da relação entre os enclaves de colonização lusa na América e sua maior ou menor inserção na dinâmica do império lusitano, voltado cada vez mais para a exploração e para o controle das relações comerciais no Atlântico Sul. A participação no mundo atlântico e no projeto de complementaridade de funções atribuídas pelo Estado luso às suas colônias na África e na América acabam por dar maior relevância a algumas capitanias em detrimento de outras, na América portuguesa, e explicam as deliberações da Coroa no que diz respeito a escolhas por ela efetuadas relativas à premência pelo controle direto de áreas que precisavam estar integradas de fato ao império. A integração no projeto atlântico do Estado explica, portanto, a maior fragilidade institucional do poder estatal em áreas então julgadas periféricas para os interesses imediatos da Coroa que, como se verá adiante, era o caso de São Paulo.

A inovadora interpretação de Bentes Monteiro, que também apresenta os movimentos contestatórios da autoridade portuguesa como formas de negociação entre vassalos – ciosos de resguardar seus interesses não coincidentes, necessariamente, com a política metropolitana – e Estado, apesar de merecer uma detalhada discussão, será por nós tratada, de forma a otimizar os limites de uma resenha, a partir da apresentação de sua proposta aplicada a um dos casos exemplares por ele analisados, ou seja, aquele da aclamação de Amador Bueno da Ribeira.

O autor busca, no primeiro capítulo do livro, empreender uma revisão do episódio da aclamação de Amador Bueno da Ribeira, ocorrido em 1641, em São Paulo, com o objetivo de compreender as relações existentes entre a Restauração portuguesa de 1640 e o movimento de nomeação de um novo rei em terras americanas. Bentes Monteiro destaca a especificidade da economia paulista frente às formas de produção agrícola vigentes nos enclaves litorâneos. Contrariamente, por conseguinte, às áreas produtoras de açúcar, que importarão, em número crescente, a partir sobretudo da segunda metade de Quinhentos, escravos africanos para tocarem as lavouras, os paulistas continuarão a ser preadores de índios, a despeito da legislação sobre a escravização dos indígenas. Os índios, em sua quase totalidade, e nisso Bentes Monteiro segue as conclusões de John Manuel Monteiro, não se destinavam ao mercado de escravos das áreas costeiras, mas à demanda de trabalho do próprio planalto com vistas à produção de excedentes, tais como o trigo, a serem exportados para outras áreas da América portuguesa.

O trabalho índio, como se vê, é fundamental para a manutenção da economia paulista e para sua inserção, como área periférica, no comércio entre as capitanias. Se os índios formam a base produtiva da economia paulista, as tentativas da metrópole para exercer o controle sobre o uso da mão-de-obra indígena, ou mesmo aquelas objetivando aboli-la, acabariam por ser ajuizadas intromisões nos negócios dos colonos, intromissões essas motivadas as mais das vezes pelos jesuítas. As intromissões referir-se-iam também à tentativa do governador Salvador Correia Sá e Benevides para exercer sua autoridade sobre os paulistas. As intromissões explicariam, por exemplo, a expulsão dos jesuítas, em 1640, para o Rio de Janeiro, assim como a rebeldia paulista frente à autoridade do Governador Salvador Correia Sá e Benevides, amigo dos jesuítas, acusado, pelos paulistas, em defesa de seus próprios interesses – e aproveitando-se da conjuntura política que se lhes apresentava – de estar interessado em preservar a causa castelhana frente ao movimento restaurador, já que era casado com uma rica criolla, para além de outras acusações que lhe foram assacadas. Os paulistas rebeldes se negavam a receber de volta os padres da Companhia, mesmo após tentativas do Governador visando a tal fim; barraram o caminho à Vila ao Governador e se mostraram irredutíveis no que tange à questão da escravização dos índios, na medida em que se tratava de um costume da terra que eles sobrepunham à legislação.

É preciso ressaltar que as acusações levantadas contra o Governador referentes à sua indecisão de prontamente manifestar-se a favor da Restauração, após tomar conhecimento de que ela ocorrera (10 de março de 1641), revelam a indecisão dos representantes do Estado português no além mar em aceitar a nova dinastia aclamada.

A contribuição dos jesuítas à Restauração também é explorada por Bentes Monteiro para ressaltar o quanto ela pode ter influído os habitantes de São Paulo a resistir ainda mais à autoridade metropolitana, já que associavam os jesuítas à negação do livre exercício da exploração da mão-de-obra indígena.

A aclamação de Amador Bueno da Ribeira ocorre, portanto, em um momento conturbado da história portuguesa, momento em que Portugal tinha de fazer frente à Espanha, às Províncias Unidas e a movimentos de insatisfação no interior do próprio Império. Frentes demais para a dinastia brigantina há pouco entronizada. A aclamação, segundo Bentes Monteiro, para além de ter sido utilizada, nos séculos XVIII e XIX, para justificar diferentes projetos políticos – ver, por exemplo, o uso que da aclamação fizeram os genealogistas em prol de importantes troncos paulistas – revela a fragilidade do poder institucionalizado, em São Paulo, na primeira metade de Seiscentos.

A não intervenção direta do governador Salvador Correia Sá e Benevides, em São Paulo, e a decisão da Coroa em enviar, em 1648, a guarnição sediada no Rio de Janeiro para Angola, a fim de reconquistá-la, patenteiam, nas palavras de Bentes Monteiro, a importância de Angola como centro fornecedor de mão-de-obra escrava para a América portuguesa, a prevalência desta região africana sobre São Paulo, que permanecia ligada ao tráfico ameríndio, além das ligações comerciais entre o Rio de Janeiro e Luanda.

O Estado metropolitano tentará, diante de quadro que lhe era tão desfavorável, contemporizar com os colonos de São Paulo enquanto procurava restaurar a triangulação Metrópole-África-Possessões americanas, vital para a sobrevivência do Reino.

São também inovadoras as abordagens propostas por Bentes Monteiro para a Guerra dos Mascates e para as revoltas do Maneta, entre outros movimentos contestatórios por ele analisados.

O autor, no capítulo destinado ao estudo da natureza do poder em Portugal, no Antigo Regime, poderia, contudo, ter empreendido um levantamento mais exaustivo dos tratados teológicos e políticos que versam sobre a arte de reinar, a fim de apresentar um quadro mais detalhado do pactismo, em Portugal, que apresenta nuanças não discutidas.


Resenhista

Marcello Moreira – Professor da UESB. Doutor em Literatura Brasileira pela USP. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América: 1640-1720. São Paulo: FAPESP; Hucitec; Instituto Camões, 2002. Resenha de: MOREIRA, Marcello. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 2, n. 1, p. 203-206, 2002. Acessar publicação original [DR]

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