Os Índios na História do Brasil | Maria Regina Celestino Almeida

Durante longo período na historiografia brasileira convencionou-se estudar os povos indígenas como meros apêndices sem vontade de uma sociedade conquistadora e dominante. Vistos enquanto vítimas passivas de um processo assimilador, os mesmos acabavam submetidos e incorporados ao sistema colonial, perdiam sua identidade, sua língua, deixando de ser índios e desaparecendo da história. Na atualidade, felizmente, tais ideias já não se sustentam mais, tendo em vista o avanço das concepções teórico-metodológicas das investigações realizadas em diferentes centros de ensino e pesquisa, sobretudo a partir dos últimos 20 anos. Cada vez mais, diferentes pesquisadores revelam a imensa capacidade dos povos indígenas de agir com movimentos próprios, diante das mais adversas situações, criando múltiplas estratégias de sobrevivência que incluem negociações, conflitos, rearticulações culturais e identitárias.

Entre os pesquisadores desta nova corrente historiográfica que vem quebrando preconceitos e visões estereotipadas sobre as populações indígenas, está Maria Regina Celestino de Almeida, professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Em seu livro Os Índios na História do Brasil, a autora analisa a trajetória da inserção dos povos indígenas na historiografia brasileira, enfocando os avanços conceituais dos últimos anos e trazendo a tona o que John Manuel Monteiro chama de uma “nova história indígena” (2001, p. 5). Nesta concepção, é uma tarefa para os historiadores refazer as trajetórias múltiplas para entender que a história dos índios também faz parte da história do Brasil.

A motivação para a construção do livro, segundo a autora, surgiu através de uma revisão das leituras tradicionais, associada com as novas interpretações sobre a história indígena, imbuídas de um intenso diálogo entre história e antropologia. Esta interdisciplinaridade vai aos poucos desconstruindo interpretações simplistas e/ou equivocadas sobre os povos indígenas e suas relações com o universo dos “brancos”. Ao mesmo tempo, a formulação de novos conceitos ajuda a compreender as diferentes leituras sobre os distintos papéis atribuídos aos indígenas ao longo dos tempos.

Já a partir do 1º capítulo, Maria Regina Celestino de Almeida, apresenta a tese central de seu livro, demonstrando de que forma os povos indígenas vem alcançando seu lugar na história, saindo dos “bastidores” e entrando no “palco”.

A autora relega às abordagens assimilacionistas e aculturacionistas o afastamento que durante muito tempo marcou a relação entre historiadores e antropólogos. Nestas perspectivas, a cultura dos povos “primitivos” foi entendida como pura e imutável pelos antropólogos, que se preocupavam com suas características originais e autênticas, ignorando, quiçá propositalmente, a série de processos históricos, resultado de interações dinâmicas nas diferentes conjunturas dos povos indígenas. Os processos históricos de mudanças foram vistos, pelo menos até a segunda metade do século XX, como propulsores de perdas culturais sucessivas, às quais, indelevelmente, levariam à extinção dos povos pesquisados. Este tipo de abordagem possibilitou o surgimento de dualismos que contrapunham o estereótipo do índio puro e do índio civilizado, aculturado.

De forma clara e concisa, a autora lembra que a herança deste tipo de abordagem vem desde os tempos de Francisco Adolfo de Varnhagen e do IHGB em meados do século XIX, quando a visão predominante era a do dualismo simplista, o qual estabelecia rígidas oposições entre o índio bravo, encarado como obstáculo a ser ultrapassado e o índio manso, colaborador dos portugueses. Tais categorias generalizantes compartilhavam da percepção assimilacionista, que previa o gradual desaparecimento dos povos indígenas. Esta visão predomina até pelo menos a década de 1970, inclusive tendo como representantes defensores importantes da causa e dos direitos indígenas, como Florestan Fernandes, que mesmo tentando quebrar com algumas visões equivocadas da historiografia quanto ao comportamento passivo dos índios face à colonização, considerava que ao perderem sua cultura “autêntica”, os índios passavam a fazer parte de um outro sistema, no qual eram derrotados e não tinham possibilidades de escolha (p. 17).

A guinada decisiva para devolver aos indígenas sua historicidade, segundo a autora, acontece quando os pesquisadores percebem que os índios não irão desaparecer como se pensava. Foi necessário então reformular conceitos e teorias e repensar os instrumentos de análise para refletir sobre a relação entre povos. Destarte, os antropólogos passam a interessar-se pelos processos de mudança social, percebendo que seus objetos de estudo não são estáticos e imutáveis e os historiadores, por sua vez, passam a valorizar os comportamentos e crenças cotidianas dos homens comuns, antes considerados irrelevantes. Neste rol, torna-se importante destacar a influência de E. P. Thompson, que enfatizou a importância de se considerar a historicidade da cultura. A cultura, para Thompson (1987, p. 21), é um produto histórico, dinâmico e flexível que deve ser apreendido como um processo no qual homens e mulheres vivem suas experiências.

Quando aborda a questão dos indígenas na América Portuguesa, no capítulo 2, a autora chama a atenção para a designação de muitos dos grupos indígenas do Brasil, cujas divisões étnicas foram estabelecidas por diversos cronistas. As identidades étnicas apontadas pelos cronistas não devem ser vistas como categorias fixas, uma vez que muitas delas devem ter sido criadas a partir das situações vivenciadas pelos índios e pelos portugueses. Elas podem ser entendidas, isto sim, como construção histórica de caráter plural, dinâmicas e flexíveis, priorizando as dimensões políticas e históricas de cada povo. Para exemplificar, a autora cita o caso do contato entre portugueses e os tupinambás, como sendo visto de forma diferente pelos dois lados. Pelo lado dos portugueses, a relação era vista como o domínio de um povo inferior, onde com pequenas bugigangas poderiam obter escravos, mulheres e madeiras. Pelo lado dos tupinambás, a lógica das negociações estabelecidas parecia tão ou mais favorável para si do que para os lusos, pois obtinham objetos raros e desejados, por produtos tão fartos em sua terra (p. 40-41).

Ao analisar as guerras indígenas pré e pós-coloniais, no 3o capítulo, Celestino de Almeida destaca a construção histórica e política dos indígenas através das revoltas coloniais. Muitos grupos indígenas aliaram-se aos europeus para lutar contra indígenas de outros grupos, geralmente considerados hostis por não atender ao interesse dos europeus. Mesmo os aliados conseguiram obter seus próprios ganhos a partir das alianças com os europeus. A autora demonstra muito bem a complexidade deste processo, pois aborda ainda os mecanismos através dos quais os índios se apropriaram das revoltas, alianças e dissidências, utilizando-as como base para elaborar as suas próprias estratégias para interagir com a sociedade colonial. O fato de muitos grupos indígenas terem assumido uma nova identidade étnica perante os europeus, não quer dizer que tenham abdicado de outras formas de identificação entre si e com os demais grupos com os quais interagiam. Se as identidades são históricas e múltiplas, os indígenas podiam também adotar identidades variadas conforme as circunstâncias e interesses.

No capítulo 4, a autora apresenta sua hipótese de estudos sobre a política de aldeamentos desde os tempos coloniais. Segundo ela, apesar dos imensos prejuízos causados aos índios aldeados, havia também o interesse de muitos índios nos aldeamentos e nas novas práticas culturais e políticas que apreendiam e exercitavam. Logicamente não se pode afirmar que os aldeamentos trouxeram mais benefícios do que carências para os indígenas. O que a autora procura reforçar é a adaptação e a transformação dos valores dentro de uma perspectiva dos próprios indígenas, que à sua maneira aprenderam a conviver com eles, e, muitas vezes, controlar as políticas internas dos aldeamentos. As leis indigenistas caracterizaram-se por uma infinidade de decretos, alvarás, cartas régias, bandos, que continuamente se estabeleciam e se anulavam ou se cumpriam conforme o jogo de força na colônia entre os agentes interessados. É importante salientar que entre estes agentes encontravam-se os próprios índios, que participavam das disputas em uma posição subordinada e desvantajosa, mas aproveitavam as possibilidades a seu alcance para amenizar as perdas e alcançar possíveis vantagens.

Um ponto importante destacado pela autora, e ainda bastante polêmico, é que o conhecimento do passado constitui elemento fundamental para as disputas por terras e negociações políticas na atualidade. Dessa forma construiu-se uma memória coletiva dando ideia de procedência dos grupos. No presente, este artifício leva ao processo conhecido por etnogênese, ou seja, grupos considerados extintos ressurgem através da conscientização étnica de alguns indivíduos que afirmam suas origens nos aldeamentos missionários (p. 105-6).

Fazendo uma retrospectiva histórica sobre as políticas indígenas e indigenistas, Maria Regina Celestino, destaca no capítulo 5 as políticas indigenistas do Marquês de Pombal, no século XVIII. Segundo a autora, a mudança mais significativa do diretório pombalino foi a proposta de assimilação. Foram proibidos os costumes indígenas nas aldeias, impôs-se o português sobre a língua geral, houve um incentivo à miscigenação, foi decretado o fim da discriminação legal contra os índios, minimizando sua situação de limitações imposta pelo estatuto de limpeza de sangue. A substituição de religiosos por leigos na administração das aldeias era orientada pela proposta iluminista de civilização preponderante à catequese. Na avaliação de Pombal, os Jesuítas representavam uma força política poderosa que desafiava o poder monárquico, daí a urgência em extinguir sua ação entre os indígenas (p. 112).

A autora chama a atenção para a divisão rígida, feita por muitos pesquisadores, sobre o mundo da barbárie e o mundo da civilização. Para a maioria dos indígenas, estar na aldeia não significava necessariamente abandonar a chamada vida errante, assim como fugir para o sertão não queria dizer o abandono definitivo da aldeia. Para Maria Regina Celestino de Almeida, a oposição rígida entre barbárie e civilização, desde os primórdios da colonização, apresentava-se muito mais nas legislações e nos discursos das autoridades, intelectuais e viajantes do que na realidade cotidiana dos sertões.

No 6º e último capítulo, a análise é centrada no século XIX, onde são focalizadas as diferenças entre as políticas imperiais relacionadas aos índios do presente e o lugar a eles destinado na identidade nacional, então em construção. A grande diversidade de populações indígenas no território brasileiro dificultava não apenas a ação política, de forma geral, como também a construção de uma única imagem de índio condizente com os ideais da nova nação. Do ponto de vista político, a ideia era continuar o processo de assimilação do período pombalino, do ponto de vista ideológico, estudavase a possibilidade de tornar o índio um símbolo nacional (p. 136). Celestino de Almeida considera possível identificar pelo menos três imagens de índios nos discursos históricos, literários e políticos do século XIX: os “idealizados do passado”, os “bárbaros dos sertões” e os “degradados” das antigas aldeias coloniais. Todas estas imagens tinham em comum, fundamentalmente, a proposta de assimilar os índios, transformando-os em produtivos cidadãos do novo Império.

Finalizando seu livro, a autora enfoca o movimento de etnogênese que ocorre na atualidade em todo o Brasil, mas com particular força no Nordeste. Ela afirma que este movimento vem confirmar a capacidade de rearticulação cultural e identitária dos povos esquecidos por muitos anos pelos historiadores. Tal processo se deve, sobretudo, aos avanços conquistados em termos constitucionais a partir de 1988, assim como pelas novas abordagens teórico-metodológicas e conceituais da história e da antropologia. Este é um campo polêmico, e mereceria um aprofundamento maior no livro, pois, dadas às demandas por demarcações de terras indígenas, é cada vez mais comum a reivindicação de pertencimento a grupos considerados extintos a séculos, como é o caso dos Tupinambá de Olivença, na Bahia e dos Charrua no Rio Grande do Sul.

O grande mérito do livro Os índios na História do Brasil, consiste em revelar o papel das populações indígenas na construção histórica do Brasil. Ao contemplar diferentes conjunturas, interesses e agentes, Maria Regina Celestino de Almeida traz à luz das discussões acadêmicas uma problemática indígena que ainda merece novas reflexões, visando desconstruir antigos e novos preconceitos. Com a leitura desta obra, tanto o leitor especialista quanto o leigo, percebem que não existe uma história indígena, mas sim várias histórias indígenas, cujas representatividades precisam ser consideradas para compreender o processo de construção da sociedade brasileira colonial e pós-colonial.

Referências

MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. 2001. Tese (Livre Docência em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2001.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


Resenhista

Sandor Fernando Bringmann – Doutorando em História Cultural – PPGH/UFSC. Bolsista CAPES.


Referências desta Resenha

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.  Resenha de: BRINGMANN, Sandor Fernando. Quando a história e antropologia se unem para contar uma ‘nova história’ dos Índios no Brasil. Revista Mosaico. Goiânia, v. 4, n. 2, p. 245-248, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

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