Pesquisa (Auto)biográfica em educação na Europa e América | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2018

Não há dúvida de que a pesquisa biográfica se tornou cada vez mais importante em todo o mundo, nas ciências educacionais e sociais, nos últimos 50 anos, e que os padrões metodológicos e teóricos deste campo de pesquisa foram consideravelmente consolidados. Não obstante, permanecem os preconceitos culturais sobre as abordagens particulares. Essas culturas de pesquisa com certa influência internacional – como a pesquisa (auto)biográfica de língua alemã, francesa e inglesa – que, em sua maioria, remontam a uma longa tradição de pesquisa, mantiveram seu próprio perfil.

E mesmo que as atividades de pesquisa cooperativa tenham se intensificado internacionalmente – como na pesquisa biográfica comparativa centrada no estudante, a longo prazo, entre o Reino Unido, Alemanha, Suécia, Espanha, Polônia e Irlanda, ou a pesquisa de migração centrada na biografia entre Alemanha, Itália, França e na Grécia – os perfis de pesquisa “clássicos” das três culturas de pesquisa mais influentes permanecem em vigor por algum tempo.

Sem dúvida, as tradições de pesquisa mais jovens, no campo da pesquisa biográfica, tornaram-se mais importantes. Há muito que discutem e pesquisam ao nível dos seus predecessores. Itália, Espanha e Portugal desenvolveram seus próprios perfis. No Brasil, a realização bianual do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA) estabeleceu um “movimento científico” para a pesquisa (auto)biográfica. E, no entanto, os vestígios de influência, como a tradição de pesquisa francesa, que possibilitou diálogos com o movimento de pesquisa biográfica na Espanha, Portugal ou América Latina, não podem ser negligenciados, como a tradição germânica, que foi fortemente recebida na Escandinávia ou na Grécia e o discurso inglês, na Irlanda ou na Polônia.

O dossiê sobre Pesquisa (Auto)biográfica em Educação na Europa e América [(Auto)biographical Research in Education in Europe and America], que ora apresentamos, tem como objetivo fornecer uma primeira visão geral dos discursos “clássicos”, mas também recentes, neste campo de pesquisa. O dossiê começa com as três tradições acadêmicas mais influentes: uma breve história da pesquisa biográfica em países de língua alemã, que passou por processos notáveis de transformação, nos últimos três séculos; uma visão histórica da tradição (auto)biográfica inglesa e uma introdução muito particular à maneira francesa de entender e interpretar o conceito de biografia. Tais contribuições são seguidas pelo estado da arte da pesquisa biográfica, em Espanha, Portugal, Itália e Grécia, bem como por abordagens muito interessantes e específicas – reflexões sobre pesquisa-ação como disposição narrativa, no contexto americano, o conceito de “drama acadêmico” nos EUA e um estudo qualitativo da “cultura biográfica” de estudantes universitários na Espanha – concluindo o dossiê com reflexões bastante pertinentes e implicadas dos pesquisadores sobre o contexto de produção em seus países.

Certamente, é apenas um começo. A Europa está obviamente super-representada e a América do Norte marca sua presença com duas contribuições muito especiais. Outros dossiês seguirão ampliando as discussões e possibilidades de mapeamento de pesquisa e da consolidação de redes de pesquisa no domínio dos estudos (auto)biográficos. O objetivo desta documentação, no entanto, não é harmonizar os perfis de pesquisa desenvolvidos. A pesquisa biográfica permanece ligada à cultura em que é realizada. Em vez disso, pretende divulgar as várias abordagens internacionais do fenômeno da “biografia” e aprender com as diferenças interessantes das diversas tentativas. Aceitar a estranheza e a alteridade, trazendo ideias para o próprio trabalho a partir dos diferentes acessos – esta é a preocupação do nosso dossiê.

Assim, iniciamos com as reflexões de Peter Alheit e Bettina Dausien que, no texto Uma breve história da pesquisa biográfica na Alemanha (A brief history of biographical research in Germany), situam as discussões sobre a biografia e os modos como esta é abordada pela “pedagogia” alemã, desde os seus primórdios históricos, no final do século XVIII. O texto assinala as disposições sobre a descoberta do sujeito autônomo, a crítica pós-moderna do “sujeito” e sua instrumentalização pela “governamentalidade”, mas também os modos como o processo de biografização implica olhares outros sobre a sociedade e as singularidades dos sujeitos.

Uma história da pesquisa biográfica no Reino Unido (History of biographical research in the United Kingdom), escrito por Barbara Merrill e Linden West, parte de experiências empreendidas em diferentes redes de pesquisa e, especialmente, da Sociedade Europeia de Pesquisa na Educação de Adultos – European Society for Research in the Education of Adults (ESREA) –, situando as influências sofridas por pesquisadores britânicos que têm se dedicado aos estudos biográficos, a partir de contribuições do interacionismo simbólico e do feminismo, da história oral, da sociologia crítica e da psicanálise, e do que nomeiam de imaginação autobiográfica. Para os autores, a imaginação autobiográfica implica processos de reflexividade entre pesquisador e pesquisado, na condição de co-construção de histórias, através de suas histórias, narrativas e escrita.

Christine Delory-Momberger, em Pesquisa biográfica em educação na França (La recherche biographique en education en France), discute questões atuais da pesquisa biográfica em educação na Europa, com ênfase no contexto francês, ao destacar contribuições e diálogos com temas e questões que cruzam a reflexão e o trabalho realizado na América Latina. A autora teoriza sobre noções e apropriações da pesquisa biográfica em educação, situando suas origens, orientações teórico-epistemológicas e territórios, em interface com o campo educacional.

No artigo A pesquisa (auto)biográfica e narrativa em Espanha: principais áreas de desenvolvimento na educação, Antonio Bolívar e Jesús Domingo Segovia apresentam uma revisão sistemática da bibliografia sobre pesquisa biográfica-narrativa, na Espanha, situando o estado de desenvolvimento desta linha de pesquisa, no campo da educação, e demarcando as principais áreas de pesquisa narrativa e (auto)biográfica, suas abordagens, grupos de pesquisa e orientações teóricas, bem como disposições sobre emergências em desenvolvimento. Destacam, da mesma forma, as raízes e as razões relacionadas à atual relevância desta abordagem na pesquisa social da Espanha, com ênfase nos temas, abordagens, dilemas e razões que sustentam a pesquisa.

Em A investigação biográfica em educação no contexto português, Carmen Cavaco analisa as dimensões da pesquisa biográfica desenvolvida em Portugal, nas últimas décadas. Através de levantamento nos Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP) e na base de dados da Biblioteca Nacional, configura uma meta-análise, que se inscreve nos campos das Ciências da Educação, da Sociologia e da Antropologia. Destacam-se as temáticas do desenvolvimento profissional e da identidade docente, como mais recorrentes no conjunto de teses analisado e a utilização das narrativas de si como perspectiva teórico-metodológica e epistemológica.

No texto Inquérito cooperativo orientado biográficamente: uma mudança para a complexidade nas teorias da aprendizagem (Biographically oriented cooperative inquiry: a shift to complexity in theories of learning), Laura Formenti reflete sobre o poder dos métodos biográficos na recomposição das dicotomias que dominam a principal corrente da educação e da pesquisa, especialmente em tempos de crise e conflitos sociais e políticos, e de seus impactos no campo educacional, com forte influência dos ditames neoliberais. O texto confronta princípios da epistemologia ocidental hegemônica e defende uma mudança epistemológica através de disposições epistêmico-metodológicas das teorias da complexidade, seus conceitos de auto-organização, emergência e cognição incorporada. Situa, da mesma forma, o trabalho com (auto)narrativas, através dos modos individuais, coletivos e sociais como os sujeitos narram suas histórias e como aprendem com suas narrativas de vida, diante das diversas e múltiplas interações sociais que se entrelaçam na complexidade das dinâmicas sociais. Ao defender a noção de pesquisa cooperativa orientada pelo método biográfico, toma como referência experiências de pesquisa sobre educação de adultos, mediante a necessidade de aportes e métodos que possibilitem a superação da visão dominante em pesquisa e o reestabelecimento da justiça social e da coexistência humana e de suas experiências cotidianas, como mudanças necessárias para uma vida digna.

O artigo de Giorgos Tsiolis, O campo da pesquisa biográfica na Grécia: desenvolvimento histórico e perspectiva atual (The field of biographical research in Greece: historical development and actual perspectives), mapeia experiências de pesquisa no domínio dos estudos biográficas na Grécia, tendo iniciado nas ciências sociais, nos anos de 1990, através da utilização de histórias de vida e narrativas biográficas, em uma perspectiva crítica e em confronto com padrões positivistas predominantes na pesquisa social quantitativa, trazendo para o centro dos estudos histórias e narrativas de grupos sociais que foram excluídos do discurso das ciências sociais tradicionais. A análise apresentada no texto demarca, ainda, o desenvolvimento da pesquisa biográfica na Grécia, nos últimos 15 anos, através de apropriações e da utilização de princípios metodológicos do campo biográfico, de publicações, do surgimento de grupos de história oral, de ações de cooperação internacional, no campo da educação, implicando na consolidação de uma corrente de pesquisa biográfica reconstrutiva, com forte influência de pesquisas de tradição alemã.

Daniel Johnson-Mardones, em Algumas notas sobre pesquisa-ação como (auto)narrativa (Algunas notas sobre investigación-acción como auto-narrativa), discute a pesquisa-ação e outras abordagens teórico-metodológicas que têm sido influenciadas pela chamada virada narrativa, apoiando-se em trabalhos publicados no contexto anglo-saxônico. Noções de (auto)narração, experiências e mudanças de postura epistemológica do pesquisado-colaborador e do pesquisador são enfocadas na vertente da pesquisa-ação como uma forma de pesquisa narrativa.

Jairo Isaac Fúnez-Flores, no texto Histórias intelectuais e o drama acadêmico da pesquisa narrativa (Intellectual histories and the academic drama of narrative inquiry), toma o conceito heurístico de drama social de Victor Turner (1980)1, para construir um drama acadêmico entre genealogias intelectuais divergentes. A centralidade do artigo incide sobre a análise do inquérito narrativo, com ênfase na história intelectual, em uma perspectiva dramatúrgica, face aos diferentes caminhos narrativos desta forma de investigação.

José González-Monteagudo finaliza o dossiê, com Objetos em contextos culturais e educativos. Uma perspectiva biográfica no ensino superior em Espanha (Objects in cultural and educational fields. A biographical perspective in higher education in Spain), onde analisa 154 narrativas de estudantes universitários da Espanha, através de objetos-chave e escritas narrativas relacionadas aos objetos selecionados e suas histórias de vida, aprendizagem, identidade e cultura. A síntese apresentada pelo autor recai sobre os modos próprios como os jovens se formam e aprendem nos contextos geracionais, sociais e culturais, demarcando, assim, contribuições do trabalho biográfico para os campos da formação, da educação formal, da educação de adultos e dos estudos culturais.

As contribuições, sistematizadas por pesquisadores da Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Espanha, Portugal, Grécia, Estados Unidos e Chile, demonstram modos de trabalho que têm se constituído em seus espaços acadêmicos e nacionais, mas refletem, também, redes de cooperação acadêmico-científicas presentes no domínio da pesquisa biográfica, biográfico-narrativa e mesmo em diálogos fecundos entre pesquisadores em seus diferentes locus de produção e nas redes que integram.

O dossiê, busca assim, ampliar as discussões sobre os domínios dos estudos (auto) biográficos no contexto europeu e norte-americano, contribuindo para a apropriação das formas singulares em que os pesquisadores vêm desenvolvendo estudos em cada país e possibilitando-nos mapear os modos próprios de trabalho, de formação e de constituição da pesquisa (auto)biográfica. Desejamos que o dossiê possa alargar leituras, diálogos e ampliar as redes de pesquisa no cenário global em que vivemos.

Nota

1 TURNER, V. Social Dramas and Stories about Them. Critical Inquiry, 7 (1), p. 141-168, 1980.


Organizadores

Christine Delory-Momberger – Universidade de Paris XIII

Peter Alheit – Universidade de Göttingen

Daniel Johnson-Mardones – Universidade do Chile


Referências desta apresentação

DELORY-MOMBERGER, Christine; ALHEIT, Peter; JOHNSON-MARDONES, Daniel. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 03, n. 09, p. 745-748, set./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

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