Poder e construção social na Idade Média: História e Historiografia | N. B. de Almeida, M. Candido da Silva

Há alguns anos o Laboratório de Estudos Medievais (LEME– USP/UNICAMP) movimenta o mercado editorial brasileiro com publicações instigantes sobre a Idade Média. Textos como Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição, organizado por Monique Zerner (2009), A Cavalaria, de Dominique Barthélemy (2010) e Cidades e Sociedades Urbanas na Itália Medieval: séculos XII-XIV, de Patrick Gilli (2011) contribuem para a renovação de bibliografia disponível em português e para a aceleração do intervalo entre as publicações originais e as traduções. Mas o grupo organizado e dirigido pelos professores Marcelo Cândido da Silva (USP) e Néri de Barros Almeida (UNICAMP) também publica obras coletivas que visam a reflexão historiográfica. Por exemplo, a obra A Idade Média entre os séculos XIX e XX (2008) e, mais recentemente, Pourquoi étudier le Moyen Âge? Les médiévistes face aux usages sociaux du passé (2012). Nesse contexto, a obra Poder e construção social na Idade Média: história e historiografia (2011) é uma interessante contribuição. Resenhar esta obra é o objetivo deste texto.

Um dos objetivos da obra é propor uma reflexão sobre as tensões entre a história cultural e a história política tradicional e, com isso, explorar a chamada nova história política. A coletânea é dividida em duas partes: as especificidades do poder na Idade Média e a construção historiográfica da Idade Média e sua relação com conflitos políticos contemporâneos. No primeiro aspecto, os problemas abordados são “as formas de atuação do poder responsáveis pela instituição de categorias sociais que reordenam, em um dado momento e de forma eficaz, toda a sociedade” e “a relação entre ideologia, gêneros textuais e categorias tradicionais de interpretação historiográfica”. No segundo aspecto, a construção contemporânea da Idade Média é considerada a partir das implicações de concepções como nação e Europa.

Sete textos compõem a primeira parte da obra, que é dividida em dois blocos temáticos. O primeiro conjunto de textos oferece-nos um panorama que abrange desde o reino dos francos à formação dos juristas no século XV. O segundo bloco apresenta questões relacionadas a processos de cristianização no século VII, a entronização da batalha de Ourique como mito fundador da monarquia portuguesa no século XII e a construção de uma tradição hagiográfica no século XV. A segunda parte da obra é composta por dois textos.

De uma maneira geral, a obra aresenta estudos com recortes cronológicos e temáticos diversificados: as penínsulas ibérica e itálica; o reino dos francos e dos capetíngios. Os capítulos também refletem a diversidade institucional dos autores colaboradores. São quatro instituições brasileiras (UFGM, UnB, UNICAMP e USP) e cinco instituições francesas (CNRS/Auxerre-Dijon, Université de Lyon, Montpellier III, Paris I e X).

Essas características impõem um questionamento: há um conceito homogêneo de poder que permeia a obra? Não existe um conceito de poder capaz de abranger diferentes corpora documentais para diferentes sociedades em momentos distintos. Sendo assim, Poder e construção social na Idade Média revela sua principal característica: a pesquisa empírica e a reflexão aprofundada para cada contexto e documentação analisados pelos autores.

No capítulo “A ideologia do poder no reino dos francos”, escrito por Régine Le Jan, o tema principal é a relação entre poder e registro de acontecimentos para a construção de ideologias e identidades. A autora, professora de história medieval na universidade Paris I, aborda as relações entre a realeza e as elites na época merovíngia para a formação de “uma poderosa ideologia monárquica”. Segundo o texto, a memória coletiva no caso das identidades dos povos bárbaros está “pautada em um passado reconstruído, e a fundação de um reino”. Esse processo traduz “a emergência de uma consciência comum que se funda nas origens, se constrói no reino e se projeta no futuro”.2 Esta passagem permite a análise de aspectos da relação que os francos estabelecem com o passado troiano, por exemplo.

A questão das origens comuns e o processo ideológico para a fundação de uma identidade também são temas abordados por Bruno Dumézil no texto sobre a “conversão dos varasques do Jura no século VIII”. O autor, maître de conférences de história medieval na universidade Paris X, analisa as relações entre paganismo, heresia e cristianização no Além-Jura e constata que a instrumentalização discursiva – “mítica ou histórica” – dos varasques (que seriam acusados de “heresia” e seriam pagãos convertidos que podiam apresentar um cristianimo sem “grande pureza doutrinária”) é importante no sentido de que “seu nome servia provavelmente de fundamento a uma identidade regional, assentada sobre o sentimento de uma origem étnica comum”. Sendo assim, Dumézil aborda o processo de cristianização naquela região e os conflitos e acusações de “desvio religioso” dos varasques jurassianos. O autor conclui que “o argumento do desvio religioso servia para concluir o disciplinamento das elites locais” e que serviu para “justificar a integração mais estreita de uma região marginal ao seio do regnum Francorum”.3

Também tratando de questões ideológicas Eliana Magnani, pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique/Auxerre, apresenta uma análise de uma imagen em um manuscrito do século XI. Trata-se da imagem da doação feita por Felipe I (1052-1108) a São Martinho de Champs. Segundo a autora, a imagem possui uma relação com um diploma real e está imbricada no texto, não sendo uma imagem com um “discurso autônomo”. Sendo assim, analisa como se dá a relação entre texto e imagem e conclui que a imagem apresenta um “círculo alargado e ordenado hierarquicamente em torno do rei e, consequentemente, da abadia que ele patrocina”.4

As reflexões realizadas por Néri de Barros Almeida e Maria Eurydice de Barros Ribeiro sobre Portugal no final da Idade Média também tratam de questões relacionadas à ideologia. No primeiro caso, a autora aborda o contexto de literalização da Vida de Santo Amaro no século XV e a atuação dos cistercienses do mosteiro de Alcobaça na construção de um conjunto de textos “ideológico-propagandísticos produzidos em ambiente monástico, ligados à política real portuguesa durante o final da Idade Média”.5

No segundo caso, a professora da UnB, Maria Eurydice Ribeiro trata das implicações das constantes referências à batalha de Ourique, ocorrida em 1139, tanto para a história de Portugal quanto para a historiografia sobre Portugal. A autora analisa a “importância histórica que o acontecimento adquiriu ao longo do tempo” e como a fixação da data em 25 de julho daquele ano, do local, e, principalmente, do suposto juramento prestado pelo rei Afonso Henriques acalentaram debates que perpassam desde a concepção da história como ciência no século XIX à renovação de áreas como a heráldica para o entendimento do passado medieval. Sendo assim, a autora apresenta os argumentos que consideraram como “falsas” as crônicas e documentação produzida nos séculos finais da Idade Média sobre a batalha de Ourique. Ao final do texto, analisa a construção iconográfica dos símbolos da monarquia portuguesa como reino independente.6 Neste aspecto, o texto de Maria Eurydice dialoga com o texto de Eliana Magnani. Embora as autoras tratem de representações iconográficas em diferentes suportes e cronológica e espacialmente distintas, as leituras sobre os símbolos apresentados pela doação de Felipe I e dos escudos dos reis de Portugal revelam a importância desse tipo de análise tanto para o entendimento do universo simbólico medieval quanto para o entendimento da construção de ideologias.

Esses textos explicitam a proposta da obra: analisar as relações entre identidade, memória coletiva e poder, na Idade Média, considerando a dimensão literária e imagética utilizadas como recursos de linguagem.

Os textos de Patrick Gilli e Carlos Roberto Figueiredo Nogueira tratam da formação do universo jurisdicional e da alta complexidade de conflitos, como as tensões entre poder temporal e espiritual. O primeiro, especialista da história urbana da península itálica, analisa o surgimento do jurista a partir do renascimento do direito no século XII com a redescoberta do Corpus iuris civilis. Segundo Gilli, que é professor na universidade de Montpellier III, a complexidade comunal refletida nas tensões entre a “aristocracia tradicional”, a “nova cavalaria” e a ascensão de um “grupo mercantil poderoso” configurou uma multiplicidade de conselhos representativos e, consequentemente, o aumento do recurso às instâncias judiciárias para a resolução de conflitos. Sendo assim, juristas e especialistas, os doutores das leis assumiram postos de nobreza. Patrick Gilli considera, então, como os doutores constituem-se como um grupo que visava esta proeminência e se inseria naquelas relações conflituosas. O autor conclui que o enraizamento dos juristas nas sociedades urbanas e como grupo de nobres deu-se a partir da utilização de textos justinianos para a criação de uma identidade de nobreza. Identidade esta calcada na “utilidade social” e na “dignidade do saber”.7

Carlos Roberto Nogueira examina as atitudes de D. Pedro I (rei português no século XIV) frente à Igreja e à religiosidade. Essa proposta, que trata do mesmo período que o capítulo escrito por Patrick Gilli, está relacionada às pesquisas sobre “poder e relações de solidariedade no Portugal Medieval” desenvolvidas pelo professor Nogueira na Universidade de São Paulo. Segundo o autor, as tentativas de D. Pedro I de limitar o controle do clero e a necessidade de preservar privilégios legitimados pela tradição concomitantes às atitudes de uma suposta “proteção real às minorias religiosas” produziram uma “tentativa frustrada de obter um equilíbrio social”.8 As considerações do autor são importantes, principalmente se considerarmos também a análise de Gilli. Ou seja, a presença de tensões jurídicas nas relações entre Rei e Papa dão a dimensão da importância do universo jurídico e dos juristas na sociedade medieval.

A obra finaliza com dois capítulos sobre a historiografia medievalística. Daniel Valle Ribeiro, professor titular aposentado de história medieval da UFMG, analisa a construção da Alta Idade Média como um objeto de reivindicação de um passado identitário para a Europa e, com isso, sintetiza um conjunto de reflexões feitas por autores de diferentes regiões.9 Denis Menjot, professor de história medieval da universidade de Lyon II, apresenta um texto sobre a historiografia espanhola sobre a Idade Média. O autor apresenta sua contribuição com o objetivo e “risco de apresentar um ensaio de interpretação e de síntese”. Para Menjot, a relação da historiografia espanhola com a “diferença” é a principal característica no início do período compreendido na sua análise, o século XIX. A “diferença” está expressa no processo de constituição tanto de uma identidade espanhola quanto das identidades regionais na Espanha. O autor aponta que os séculos finais da Idade Média são mais estudados pelos historiadores espanhóis e uma das razões apresentadas é a profusão de fontes e o “desaparecimento” do latim na Castela do século XIII, o que facilita, inclusive, o acesso. A argumentação ganha fôlego e respaldo no detalhado levantamento bibliográfico apresentado ao final do texto. Além disso, o autor aponta que o excesso de regionalização ou diminuição da amplitude espacial do alcance das análises dos estudos mais recentes produz uma historiografia marcada por certo “isolamento disciplinar e pela ausência de diálogo com as outras ciências sociais”.10

A conclusão de Menjot é salutar e serve para a discussão sobre constituição de uma “medievalística brasileira”. Os estudos sobre a península ibérica, principalmente nos séculos finais da Idade Média, predominam na temática de teses de doutorado e dissertações de mestrado defendidas no Brasil. Certamente, a relação histórica que o Brasil possui com seu passado colonial português é um importante argumento para explicar essa característica. Há, nesse predomínio, também a questão do idioma, como aponta Menjot para o caso espanhol.

A obra Poder e construção social na Idade Média: história e historiografia atende às necessidades que emanam dos congressos e reuniões de grupos de pesquisa brasileiros sobre a Idade Média: a necessidade de refletir sobre o fazer historiográfico, sobre as características e limites da nossa produção, bem como é mais um indício da profícua internacionalização da formação de pesquisadores brasileiros e seus interlocutores fora do país.

Notas

2 LE JAN, R. “A ideologia do poder no reino dos francos”, p. 19-46.

3 DUMÉZIL, B. “A conversão dos varasques do Jura no século VIII: missão ou cristianização?”, p. 109-126.

4 MAGNANI, E. “Hierarquia e autoridade capetíngia no século XI: imagem e texto”, p. 47-62.

5 ALMEIDA, N. de B. “Narrativa mítica e dimensões da unidade política cristã: a Vida de Santo Amaro no contexto ibérico de sua literalização (século XV)”, p. 127-157.

6 RIBEIRO, M. E de B. “A Batalha de Ourique: entre o acontecimento e o mito”, p. 159-178.

7 DUMÉZIL, B. “Dignidade e nobreza dos juristas: lugar e formação da ciência legal na Idade Média, especialmente na Itália (séculos XII a XV)”, p. 63-91.

8 NOGUEIRA, C. R. F. “Tradição jurisdicional e conflito social durante o reinado de Pedro I de Portugal”. p. 93-105. 9 RIBEIRO, D. V. “A Alta Idade Média e os prenúncios da ideia de Europa”. p. 181-210.


Resenhista

Igor Salomão Teixeira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ALMEIDA, N. de B.; CANDIDO DA SILVA, M. (Orgs.). Poder e construção social na Idade Média: História e Historiografia. Goiânia: UFG, 2011. Resenha de: TEIXEIRA, Igor Salomão. Signum- Revista da ABREM, v. 13, n. 2, p.190-195, 2012. Acessar publicação original [DR]

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