Poder e religião na Antiguidade Tardia / Dimensões / 2010

Ao longo das duas últimas décadas, tem-se observado, nos meios acadêmicos brasileiros, um notável aumento do interesse pelos estudos de Antiguidade e Idade Média, como se pode constatar por intermédio da quantidade crescente de artigos, teses e dissertações dedicados à reflexão científica de objetos atinentes às sociedades antigas e medievais, com destaque para as civilizações grega e latina, embora o foco já esteja se deslocando para outras realidades menos estudadas entre nós, como é o caso da egípcia, mesopotâmica, celta, judaica e bizantina. Dentre as razões desse “despertar”, uma das mais importantes é a atuação aguerrida de um conjunto de pesquisadores oriundos de diversas áreas, a exemplo da História, Arqueologia, Letras, Filosofia e Pedagogia, que tem levado a cabo – e com sucesso, poderíamos acrescentar – a tarefa de formar profissionais especializados em uma modalidade de História que, se não espelha a história nacional, posto que a terra brasilis nunca fez parte do Império Romano ou se organizou em termos feudais, como sugeriram, no passado, alguns autores, nem por isso deixa de ser relevante ou significativa pelo simples fato de nos permitir ter acesso a experiências milenares que, embora constituam matrizes quase arquetípicas da História do Ocidente, com a qual muitas vezes gostamos de ser identificados, são diferentes o bastante dos usos e costumes contemporâneos para nos afrontar, confrontar e desinstalar, obrigando-nos a reconhecer que, conforme propôs certa feita Paul Veyne com a sua habitual perspicácia, o estudo da História não implica, a princípio, uma operação de reconhecimento do Eu, pois se assim o fosse bastaria escrevermos a nossa própria biografia para nos apoderarmos do código que rege o presente, o passado e o futuro. Pelo contrário, a História é antes a busca por aquilo que não somos, pela diferença que torna tão interessante as investigações que tem ao mesmo tempo os homens como os seus agentes e pacientes.

Dentro desse panorama de expansão dos estudos da Antiguidade e Idade Média no Brasil, uma área merece, sem dúvida, uma menção especial, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, por representar uma espécie de elo, de passagem, entre um período que se convencionou designar como “antigo” para outro, qualificado como “medieval”, com toda a singularidade que uma situação como essa comporta. Em segundo lugar, por constituir um domínio que, situado numa zona de transição, carece muitas vezes de uma definição precisa, confundindo um pouco consciências que têm por hábito optar pela comodidade dos rótulos em detrimento da complexidade que envolve amiúde a fixação dos marcos cronológicos. Trata-se, aqui, da assim denominada Antiguidade Tardia, uma tradução do alemão Spatantike, empregado para designar grosso modo o amplo lapso de tempo situado entre a fase final do Império Romano e os séculos iniciais da Idade Média, num arco temporal compreendido entre o III e o VII (ou mesmo o VIII século, de acordo com o ponto de vista e os interesses do historiador). Como toda zona de fronteira, de deslocamento, de passagem e que, por isso mesmo, se encontra em busca da sua própria identidade, a Antiguidade Tardia ainda luta, não apenas aqui, como alhures, nos países do Velho Mundo onde floresceu pela vez primeira, para se afirmar como uma especialidade que não é nem propriamente clássica nem medieval, na medida em que seu objeto (ou objetos) apresentam um hibridismo evidente entre tradições romanas, judaico-cristãs e germânicas que desafiam qualquer taxonomia apressada. Como nos ensinou Marrou, a Antiguidade Tardia é um mundo que não devemos observar nem com as lentes da Antiguidade nem com as do medievo. Ela é antes um mundo que deve ser captado a partir dos seus próprios cânones, da sua própria dinâmica, sob pena de não sermos capazes de discernir, nele, aquilo que é mais criativo e original.

Pois bem, nossa principal intenção ao organizar esse dossiê foi proporcionar aos leitores uma visão de conjunto dos estudos levados a cabo por pesquisadores brasileiros e estrangeiros comprometidos com a investigação de temas próprios da Antiguidade Tardia, com especial destaque para os vínculos entre poder e religião devido à recorrência com que, nesse momento, as experiências de organização política se ancoram em princípios de natureza religiosa, sejam elas de ascendência cristã, pagã ou judaica. Desse modo, o leitor encontrará, nos artigos que seguem, múltiplos approaches da questão político-religiosa entre os séculos III e VII, incluindo reflexões de caráter específico, tendo como referência o governo de um determinado soberano ou a obra de um autor, e reflexões de caráter geral, que buscam aclarar as linhas de força de um ou outro processo histórico. Conjugados, ambos os enfoques são capazes de ampliar sobremaneira nossa compreensão a respeito de um período tão importante, mas que carece ainda de maior atenção, como é a Antiguidade Tardia. Esperamos que a leitura desses textos seja capaz de estimular jovens pesquisadores a somar esforços na consolidação de uma área de conhecimento da qual, em nosso país, a maioria dos colaboradores deste dossiê foram os pioneiros.

Gilvan Ventura da Silva

Organizador


SILVA, Gilvan Ventura da. Apresentação. Dimensões. Vitória, n.25, 2010. Acessar publicação original [DR]

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