Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century South America | Nadia R. Altschul

Nádia Altschul é uma estudiosa que atua no campo do neomedievalismo. Com doutorado na Universidade de Yale, é autora de livros como La literatura, el autor y la critica textual, de 2005, e Geographies of philological knowledge: postcoloniality and the transatlantic national epic, de 2012, e coeditora de Medievalisms in the postcolonial world, de 2009. É também professora na Universidade de Glasgow, onde se dedica à pesquisa sobre os efeitos colonialistas do medievalismo e do orientalismo na América Latina.

Seu mais novo livro, Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century South America, lançado em 2020 pela University of Pennsylvania Press, traz novas perspectivas aos estudos de neomedievalismo, enfatizando uma abordagem que incorpora o olhar da América Latina. Se pensarmos no conjunto da produção da autora, este estudo marca seu posicionamento teórico em relação aos estudos sobre o neomedievalismo, posto que, embora já tivesse realizado trabalhos sobre autores sul-americanos, em Politics of temporalization ela se dedica exclusivamente à região, considerando especificamente o Chile, a Argentina e o Brasil.

Altschul faz críticas à teoria da modernização, segundo a qual a história humana é compreendida de acordo com estágios de desenvolvimento. Ela se baseia em dois princípios: o de que certos países estariam adiantados e outros atrasados na escala do desenvolvimento mundial e o princípio da dualidade social, por meio da qual se entende que, especialmente nos países subdesenvolvidos, convivem instâncias modernas e outras que ainda vivem no passado, como componentes do atraso. Com base nisso, entendia-se que existiriam legados vivos do passado que não foram incorporados à modernidade nacional em países considerados subdesenvolvidos.

O livro representa uma inovação nos estudos de medievalismo no contexto latino-americano, posto que traz uma crítica à perspectiva que vincula tais pesquisas ao passado medieval europeu sem incorporar uma reflexão sobre os motivos e as intencionalidades dessa vinculação. Com efeito, a construção da disciplina no contexto da América Ibérica passa, segundo Altschul, por uma investigação dos usos da Idade Média e do Oriente como categorias políticas nas nações ibero-americanas. Em diversos aspectos, podemos dizer que se trata de um livro fundacional no campo do neomedievalismo, uma vez que a autora toma uma posição crítica em relação à definição clássica de medievalismo proposta por Workman, ainda nos anos 1970.

Com um instigante estudo de intelectuais do Chile, da Argentina e do Brasil, Altschul analisa a medievalização de diversos elementos no contexto da América Latina do século XIX. Ela parte da chamada Lenda negra, responsável por justificar o atraso ibérico frente ao Renascimento que ocorria no restante da Europa devido ao caráter mourisco da Península Ibérica. Essa região não era vista somente como medieval e católica durante o período colonial, mas também como contaminada, devido aos séculos de contato com o Islã e com a África, o que a autora chama de temporalidade fora de sincronia, isto é, a civilização ibérica teria “renascido” em um tempo mais tardio se comparada ao restante da Europa e foi essa civilização, ainda medieval e mourisca, que desembarcou na América.

Não se trata, contudo, de um estudo sobre a Longa Idade Média, ao contrário: é uma crítica a esse tipo de proposta que, na versão colonialista, vinculou o passado de culturas não europeias diretamente à história da Europa. A originalidade de Políticas da temporalização está na crítica de tal perspectiva e na possibilidade de compreender a Idade Média como uma categoria simbólica que é mobilizada em função dos usos políticos que podem ser feitos dela.

O livro é uma contundente reprovação ao lugar-comum segundo o qual a Península Ibérica ainda era medieval quando os seus pares europeus já tinham progredido à modernidade. Isso é um exemplo de negação da coetaneidade – a ideia de que uma sociedade estaria em uma linha do tempo anterior às outras sociedades. Segundo essa perspectiva, a Península Ibérica, nos séculos XVI e XVII, estaria marcada por seus aspectos medievais, o que a impediria de viver no mesmo tempo em que as outras regiões da Europa. Altschul critica a quebra de coetaneidade praticada por autores que defenderam a existência de diferentes temporalidades, mas vai além disso, pois mostra os interesses neocolonialistas que fomentaram tal debate.

Um dos pontos centrais de Políticas da temporalização é a percepção de que a construção da temporalidade na Europa ocidental moderna se baseia na premissa de uma unidade de tempo homogênea. O centro já seria moderno enquanto na periferia vigoraria a noção de que a modernização capitalista está em curso e que existem populações vivendo uma realidade socioeconômica que é feudal em certos aspectos. Essa temporalização não seria, assim, um dado natural.

Altschul critica as chamadas políticas de temporalização, isto é, quando certos elementos são associados ao passado e entendidos como manifestações de um passado vivo no presente. Neste sentido, predomina uma percepção de que o presente é feito de temporalidades distintas das que coexistem no agora. A defesa de uma total coetaneidade pode dar a impressão de um achatamento da profundidade histórica, adverte Altschul. Todavia, essa postura permitiria reconhecer o que ela chamou de política da temporalização. O estranhamento da naturalização do esforço de temporalizar passa, segundo a autora, por identificar precisamente por quem, como e para que determinados aspectos do presente ganham status de pertencentes ao passado.

Subjacente ao debate sobre as temporalizações, Altschul analisa a conexão entre medievalismo e orientalização. A relação revela como os dualismos medieval/ moderno e oriental/ocidental produziram, no encontro da Europa com outras sociedades, a perspectiva de que estas viviam no passado. Políticas da temporalização, nesse sentido, investiga a medievalização e orientalização e suas relações com o neocolonialismo. O projeto de modernização da sociedade passava pela homogeneização do tempo e, na Ibero-américa, ser moderno é o oposto de ser medieval e mouro.

De acordo com Altschul, a construção de um estereótipo da região ibérica como medieval e moura iniciou nos círculos ilustrados franceses como uma representação negativa que se tornou, pela primeira vez, positiva no romantismo alemão. Entre os britânicos, a medievalização da Espanha, a partir de 1830, está atrelada à ideia da persistência de “uma tirania feudal e católica” (ALTSCHUL, 2020, p. 26, tradução nossa). Nos anos 30 do século XIX, os estereótipos estavam consolidados e os habitantes da península eram representados como preguiçosos, fanáticos e cruéis devido à herança dos mouros.

Altschul adverte que a lenda negra entre o medievo e o Oriente nos permite compreender os estereótipos sobre a perversão dos espanhóis, incluindo a sua preferência por governos despóticos, o fanatismo, o preconceito religioso, a crueldade e a indolência combinada ao amor pelo luxo. Por intermédio do medievo e do mouro, podemos entender a criação do lugar-comum romântico pelo qual a lenda encapsulou a Espanha como cavalheiresca (medieval) e mourisca (oriental) (ALTSCHUL, 2020, p. 32). Para Altschul, uma categoria pode ser temporalizada como cristã ou moura a depender do momento histórico. Assim, estamos diante de uma das principais teses defendidas no livro: “a orientalização tornou possível reconhecer uma mesma prática cultural como moura ou cristã, dependendo do contexto e da genealogia dos produtores” (ALTSCHUL, 2020, p. 35, tradução nossa). Seu objetivo é demonstrar como a orientalização adquiriu aspectos próprios na América Latina. Assim, orientalizar equivale a temporalizar.

O Chile, por meio da obra de Maria Graham, foi o primeiro exemplo analisado no livro. Embora assuma, do ponto de vista teórico, uma perspectiva latino-americana do neomedievalismo, no primeiro capítulo Atschul analisa a obra de uma autora britânica sobre o Chile. Altschul destaca como os(as) intelectuais britânicos utilizaram o conceito de Idade Média para construir uma narrativa sobre a Índia, que passou a ser definida como medieval e islamizada. Assim, a região passou a fazer parte do passado medieval europeu. Algo similar ocorreu no Chile, no início do século XIX. Altschul apresenta a hipótese de que as noções de medievalização e orientalização fizeram parte da narrativa imperialista inglesa.

Maria Graham, filha de um oficial da marinha britânica, iniciou a circulação pelo Império Britânico ao lado do pai em 1808, quando viajou para a Índia. Após três anos de inúmeras viagens, publicou uma espécie de diário e uma série de cartas – Journal of a Residence in India, em 1812, Letters on India; with Etchings and a Map, em 1814. Na mesma época em que ela escrevia o seu diário, a guerra de independência havia sido vencida. Nesse contexto, o Reino Unido se transformou na principal fonte de capitais e no principal comerciante de produtos europeus na América do Sul. Para o capitalismo britânico, o caráter intocado da natureza na América do Sul era um símbolo do fracasso humano, o que tornaria legítima a intervenção europeia.

Graham qualifica o Chile como pré-moderno e pré-capitalista, cuja colonização foi feita por uma Espanha ainda medieval. Todavia, ela temporaliza o seu texto, pois cria uma hierarquia entre o modo de vida britânico, apresentado como superior, e aspectos da vida quotidiana dos chilenos. Às vezes, insiste em criticar a autossuficiência deles em artigos como vestuários, tapeçaria, entre outros pontos. Por meio das críticas, faz um deslocamento temporal para ressaltar como os chilenos estavam presos ao passado.

Esse tipo de associação está presente no pouco estudado prefácio do Sketch e nos apêndices do Journal. No caso do Sketch, Graham evidencia o seu interesse em assuntos políticos no contexto das independências na América do Sul. No fundo, a situação de um Chile pré-moderno, que é apresentado aos britânicos como uma oportunidade de trocas comerciais, é uma explícita razão para o seu trabalho. Graham escreveu sobre o contexto da guerra de independência afirmando que todas as nações esperavam a promessa de um livre-comércio no Pacífico. A única solução para o atraso era a abertura total dos mercados, e esse tipo de narrativa ia ao encontro dos seus leitores.

Graham apresenta uma reflexão sobre as elites crioulas do Chile, associando- -as ao despotismo espanhol, oriundo de um passado autoritário e inquisitorial, cuja natureza era per se retrógrada e uma herança ibérica. É como se a herança colonial tivesse impedido a formação de uma elite governamental com ideias coligadas ao capitalismo. Em seu texto, insinua que apenas homens com uma educação britânica estariam em condições de liderar as nações recém-independentes na América do Sul. Imbuída desse espírito, representa personagens da política chilena de forma positiva ou negativa.

Altschul sustenta que o diário, embora seja aceito como um relato de uma testemunha ocular, contém uma “invenção de um Chile mouro” (ALTSCHUL, 2020, p. 58). Altschul sublinha que, mesmo entre os estudiosos da obra de Graham, muitos reproduziram a ideia de um Chile orientalizado como verídica. Mas, para Altschul, tais narrativas são aspectos da mitologização realizada no diário. Assim, em diversos momentos, a autora traz exemplos sobre a forma como Graham interpretou inúmeros elementos da vida quotidiana chilena e utilizou-os como “provas” do estilo de vida oriental herdado dos espanhóis. Ainda que os costumes espanhóis pudessem ser também europeus, Graham os considerava como um outro dentro da Europa e reproduzia a visão de relatos do século XIX, em que o estilo de vida da Península Ibérica era descrito como um estilo de vida orientalizado e medievalizado.

Para Altschul, o diário de Graham tem um caráter político, uma espécie de justificativa para a derrubada do governo crioulo. Nessa racionalização para a “conquista”, encontra-se uma lógica de temporalização. Assim, surge a América espanhola como pré-moderna, estagnada e necessitada de ser transformada em um território industrializado e civilizado e o estilo de vida britânico é alçado como o estilo de vida civilizado. Portanto, a ideia da “legenda negra da América hispânica” foi uma efetiva ferramenta instrumentalizada nas antigas colônias espanholas.

Em seguida, Altschul inicia a sua reflexão sobre a Argentina por meio de um exemplo de cronopolítica. Ela analisa a obra de Domingo Sarmiento, Facundo: civilização e barbárie (nome como a obra é conhecida atualmente), a fim de demonstrar a existência de temporalidades anacrônicas vivas no presente. Em Facundo, formas de vida não orientadas pelo capitalismo foram consideradas como resíduos do passado que precisavam ser modernizados, isto é, trazidos à temporalidade do século XIX.

A diferenciação entre as duas temporalidades observada na obra de Sarmiento partiria do entendimento da mãe Espanha como temporalmente medieval e ontologicamente mourisca. O ponto central, segundo Altschul, é observar em Facundo a divisão da Argentina em duas temporalidades distintas: a medieval e a contemporânea, a bárbara e a civilizada. Essa divisão pressupõe um espaço-tempo representado por Buenos Aires do século XIX, contemporânea do autor, e outra do século XII, que se observa, nas pastagens rurais do interior da Argentina e, principalmente, na cidade de Córdoba, o interior vivendo em uma imitação grotesca e distorcida da Idade Média.

Altschul observa que a cidade de Córdoba foi medievalizada por Sarmiento. Nela, é possível encontrar uma catedral de estilo medieval, além das prisões subterrâneas que ilustram aquilo que Sarmiento entendia como métodos medievais dos jesuítas. Embora os jesuítas não representem historicamente o passado da Idade Média, Altschul observa como a cidade foi medievalizada por Sarmiento numa associação com práticas cristãs medievais. Para o estadista argentino, visitar a cidade era experenciar um passado vivo, posto que os cordobeses teriam sido influenciados pelas construções medievais do entorno; o claustro blindava as novas ideias e enclausurava suas mentes no passado.

De acordo com Altschul, Sarmiento escolheu justamente a cidade de Córdoba para sediar a Exposição Nacional de 1871, pois pretendia que a ciência pudesse livrar a cidade do atraso medieval. As feiras internacionais, afinal, representavam o progresso sobre o passado. O progresso devia impor-se ao caráter medieval da cidade e o capitalismo às forças da oligarquia agropecuária conservadora. Para Altschul, a medievalização da Argentina do XIX tem duas facetas: a continuidade com a Espanha pré-moderna, representada por Córdoba, e a anarquia feudal observada nas pastagens rurais. O projeto nacional de Sarmiento dependia da remoção das múltiplas temporalidades que ele identificava na Argentina, já que a ideia de progresso esbarrava em uma temporalidade pré-capitalista. Observamos neste capítulo sobre a Argentina como a cronopolítica de Sarmiento identifica-se pela necessidade de remover as reminiscências de um passado vivo.

Altschul também se concentra no “orientalismo” de Sarmiento, classificado por ela como auto-orientalização. Para a autora, ele faz uma identificação ampla das colônias espanholas como intimamente orientais, sendo possível distinguir em Sarmiento o orientalismo, no sentido do proposto por Edward Said, e a auto-orientalização, compreendida como elemento interno para compreensão da Argentina. Ela observa que, por meio da experiência de viagem à África, Sarmiento teria passado de uma visão orientalista clássica sobre os Pampas para uma visão auto-orientalista da Argentina com uma profunda herança árabe.

Em viagem à Espanha, o aspecto mourisco chamou muito a atenção do argentino, particularmente os traços da dominação árabe nos costumes, nas roupas e na arquitetura. O espanhol do século XIX é, aos olhos de Sarmiento, o habitante da Espanha islâmica da Idade Média. Entretanto, o passo mais largo que Sarmiento deu em direção à auto-orientalização foi quando cruzou para o Norte da África. Em conversa com um residente das colônias francesas africanas, Sarmiento foi identificado com fisionomia e traços árabes característicos. Ele, que inicialmente recusou a associação, acaba vendo a si mesmo como oriental ou mourisco. Assim, segundo Altschul, Sarmiento aprende que os ibero-americanos carregam o Oriente no sangue crioulo. Ele auto-orientaliza não apenas a si, mas também a América espanhola. Ao se orientalizar, Sarmiento não pode simplesmente continuar aplicando a visão orientalista clássica que vê no Oriente o outro.

Por último, Altschul centra a sua reflexão no Brasil. Ela discute Os sertões: campanha de Canudos, de Euclides da Cunha, um livro fundamental da cultura brasileira, reconhecido por suas conexões com Facundo, de Sarmiento, o que a leva a fazer um paralelo entre o pensamento dos dois autores.3 Na obra de Euclides da Cunha, a figura do sertanejo foi identificada com o atraso. Para entender o argumento da autora, é preciso compreender que os sertanejos resistiram ao regime republicano estabelecido em 1889, o qual consideravam como a representação do Anticristo. Resistiram também à interferência do novo governo na região, às novas taxações e ao secularismo. Euclides da Cunha chega a Canudos – chamado de Belo Monte por seus habitantes – antes da última batalha e assiste à destruição da cidade e da sua população. O livro em que relata os eventos que assistiu foi escrito em 1902, a partir de suas notas de 1897 e, assim como Sarmiento, Euclides associou as populações sertanejas à permanência de elementos dos séculos passados.

De acordo com Altschul, na nota preliminar de sua obra Euclides estabelece uma temporalidade dividida. De acordo com o autor, sertanejos são atrasados em relação a “nós” – esse “nós” entendido como brasileiros modernos vivendo na costa Atlântica e em contato com a Europa. Altschul observa, especificamente, como esse primitivismo atávico – ou o que seria o estágio inicial da evolução dos sertanejos vivendo no passado – é descrito no texto de Euclides da Cunha como uma continuação de formas de vida medieval trazida pela colonização portuguesa e que permaneceu imutável.

A autora analisa como nos sertões da Bahia descritos por Euclides da Cunha essa temporalidade desarticulada dos habitantes é visível em suas roupas, seus costumes, em sua aderência às tradições remotas, ao misticismo ou mesmo ao fanatismo religioso e em sua exagerada defesa da honra. Um ponto central dos argumentos de Políticas da temporalização é que a percepção do tempo “nós somos modernos, eles são medievais” representa a herança ibérica do atraso, que se opõe a uma modernidade inevitável. Altschul defende que esse legado medieval que se quer exterminar também oferece alternativas antagônicas à modernidade: as sociedades que vivem no atraso medieval apresentam modelos sociais comunais, sem propriedade privada e com vidas alheias ao consumo. Neste sentido, a modernização do país passa por eliminar a temporalidade que traz opções diferentes das oferecidas pelo mundo capitalista.

A autora interpreta o medievalismo no pensamento de Sarmiento e de Euclides da Cunha como se a realização da unidade nacional dependesse da remoção dos obstáculos temporais identificados com as alternativas políticas não capitalistas. Esse dualismo de Euclides encontra eco em grupos de medievalistas brasileiros do século XXI, nos quais os nordestinos são associados a uma continuação medieval diante do sudeste atlântico moderno.

Altschul analisa, ainda, a orientalização acompanhada de uma temporalização medieval na obra Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. O seu principal argumento diz respeito ao modelo usado por Freyre para pensar a sua própria contemporaneidade. A luso-brasilidade é uma forma medieval inspirada na visão acerca dos “moçárabes” do pós-reconquista. Segundo Altschul, embora Freyre, tal como os demais autores analisados no livro, elabore o Brasil como medieval e orientalizado, ele, ao contrário dos demais, sustenta que a identidade brasileira seria uma forma de contrapor a supervalorização da modernidade capitalista trazida pelos britânicos.

De acordo com Altschul, para Freyre, no passado, Portugal pertencia à Europa, mas também à África. Os portugueses eram menos europeus e menos góticos do que africanos e mais semitas do que os espanhóis. Teriam decorrido disso os sucessos para a colonização portuguesa. Há três grandes razões para tal: mobilidade, miscibilidade e a aclimatação. Soma-se às razões o fato de que os portugueses foram preparados para a miscigenação brasileira, porque, na Al-Andalus, experimentaram uma proximidade sexual com os não europeus na península, desenvolvendo um catolicismo flexível e gerando um sincretismo sintetizado nos “moçárabes”.

A autora observa na obra de Freyre como o hibridismo andaluz dos portugueses era visto como o melhor da nacionalidade portuguesa desenvolvido antes da reconquista. Foi o contexto da escravidão pós-reconquista que possibilitou a orientalização portuguesa como patriarcal, agrária, escravocrata e polígama. No Brasil, as culturas mudéjares ou islâmicas, chamadas por Freyre de moçárabes, explicam muito sobre o que ele considera cultura moura na vida privada colonial do Brasil. Ao descrever o patriarcado escravocrata no Brasil, Freyre usou a imagem de um harém onde os mestres brancos tinham uma vida poligâmica ao estilo muçulmano de vida. O cerne da miscigenação brasileira é identificado, assim, ao modelo medieval português semiafriacano, orientalizado e pautado em uma cultura híbrida, o que explica a auto-orientalização realizada pelo colonizador.

O argumento defendido por Altschul é o de que o orientalismo é um aspecto dominante no paradigma da identidade cultural brasileira de Freyre, que teria uma forma particular de representar a orientalização: ele não a utiliza no sentido de nomear uma região como oriental, mas como um dado mourisco mais amplo, um “componente genético” oriental e um substrato sociocultural brasileiro. Portanto, o processo iniciado em 1808 teria sido responsável por “desorientalizar” o Brasil.

Destacamos que o livro sublinha como o estudo do neomedievalismo e da medievalização na América Latina surpreende pela capacidade de se contrapor aos paradigmas do medievalismo de língua inglesa. Certamente, essa é a maior originalidade trazida pelo livro, e daí o seu caráter fundacional que mencionamos anteriormente. Altschul traz uma discussão decolonial sobre o próprio conceito de neomedievalismo, sustentando que as bases do medievalismo clássico não são capazes de oferecer uma reflexão sobre a América Latina como um todo. O modelo da teoria do medievalismo tem como base, em sua maior parte, os falantes de língua inglesa, abordando em alguma medida a língua francesa e demais centros europeus. Portanto, em sua definição mais canônica, o medievalismo é a persistente/continuada recepção da cultura medieval em períodos pós-medievais, tal como Leslie Workman definiu ainda nos anos 1970 (ALTSCHUL, 2020, p. 174).

Em relação à América Ibérica, a situação é diferente, pois as especificidades da região não permitem a simples importação do conceito criado no contexto anglo falante. A região foi por um longo tempo percebida como se houvesse sido plantada pelos espanhóis no Novo Mundo – e por isso vários aspectos podem ser pensados como medievais. Tal visão baseia-se em noções da existência de diferentes estágios e ritmos de progresso. O medievalismo dependeria do fim da Idade Média histórica para existir. Assim, a Idade Média pode ser manipulada e reformulada segundo diferentes interesses. Para Altschul, os exemplos de Workman excluem os usos do medievo em partes não hegemônicas do mundo.

A autora critica a identificação do passado ao presente como uma forma acrítica de temporalização. Uma das propostas do livro foi a insistência na tese segundo a qual o neomedievalismo não é sobre um período histórico conhecido como medieval ou uma referência cronológica pós-medieval, mas sim como um chamado ao medievo em determinado contexto, isto é, como, onde, quando e por que algo foi transformado em medieval.

A teoria elaborada por Altschul se contrapõe às perspectivas que abordam as reminiscências do passado medieval na América Ibérica – que ainda se encontram vivas na historiografia medieval, como nos exemplos do livro de Jérôme Baschet, publicado na França, em 2004, ou no estudo de Hilário Franco intitulado Raízes Medievais do Brasil, publicado na Revista USP, em 2008, em que são analisadas as permanências medievais na América. Considerando o contexto brasileiro, a proposta de Altschul, trazida neste livro, oferece uma possibilidade teórica de contrapor perspectivas como as de Jérôme Baschet e de Hilário Franco, disseminadas entre os historiadores brasileiros. A reflexão da autora possibilita uma crítica a essa visão, demonstrando a vinculação desse tipo de perspectiva a uma postura colonizada da historiografia brasileira, que não conseguiu perceber como a simples incorporação das premissas de reminiscências ou permanências trazem consigo a aceitação implícita de uma divisão temporal que nos coloca sempre um passo atrás da Europa, reafirmando, portanto, o nosso “atraso”, que precisa ser superado.

Altschul insiste na compreensão do neomedievalismo não como referência a um período cronológico, mas como os motivos que levaram determinados aspectos ibero americanos a serem considerados medievais, isto é, as motivações políticas e ideológicas que temporalizam determinados aspectos da sociedade latino-americana. A medievalização no contexto latino-americano é, assim, uma categoria que não se refere à Idade Média como um passado europeu, mas ao seu uso vinculado aos interesses colonialistas de homogeneização do tempo, no caminhar em direção ao progresso e a modernização. Para Altschul, o medievo é uma categoria simbólica utilizada por distintas ideologias, em diferentes contextos e temporalidades; a Idade Média como um conceito que se usa.

Nota

3 Segundo Altschul, a aproximação entre as duas perspectivas já havia sido feita anteriormente. A autora cita, por exemplo, o estudo de Leopoldo M. Bernucci, que reconhece as similaridades entre estes dois textos fundadores de seus respectivos Estados-nação.


Resenhistas

Clínio de Oliveira Amaral – Professor associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), pesquisador do Linhas – Núcleo de estudos sobre narrativas e medievalismos, da UFRRJ, e coordenador do Laboratório de estudos dos protestantismos (LABEP). E-mail: [email protected]

Maria Eugenia Bertarelli – Doutora em História Medieval, professora da Universidade do Grande Rio (Unigranrio) e pesquisadora do Linhas – Núcleo de estudos sobre narrativas e medievalismos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ALTSCHUL, Nadia R. Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020. Resenha de: AMARAL, Clínio de Oliveira; BERTARELLI, Maria Eugenia. Revista de História. São Paulo, n. 181, 2022. Acessar publicação original [DR]

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